Não, nunca verás nos poemas do
Pozzo espalhados por aí, nas revistas, sites, plaquetes, muros e internets o fútil e frágil gozo da linguagem girando em falso, embevecida de seu
próprio fosso, da fera feliz ao roer seu próprio osso. Tens ali o poeta indignado,
num arco enorme que vai da carne nua, mulheres vibráteis e asselvajadas entre
(lições de) lençóis, passando pelas passantes baudelaireanas das ruas cruas,
molambos e parangolés em que a experiência, essa sim, gira no nada para
culminar em lugar nenhum, mendigos e seus cobertores de esgares, e chegando,
enfim, à distorção da civilização ocidental em sua imersão nos ódios do
interesse, nas fraturas do capitalismo, na distribuição desigual do trabalho
social. O ápice daquele arco de tensões empunhado por Pozzo parece estar em Libertação pela Simbiose Social, poema
cuja estrutura nos remete a outros indignados (ardendo de ironia) como
Sousândrade, Lorca, Neruda. Pozzo possui a palavra em explosão, rompendo com a
perspectiva tão canonizada entre nós da poesia coisificada, em si uma
reiteração na reificação, obediência cega à ideologia da técnica, cânone, de
resto, coerente com outras experiências sociais (penso em Mallarmé, em Celan),
mas não com a nossa experiência da diferença, da margem, do periférico. Poesia
aqui no Cone Sur corrói a pedra. E não, poesia aqui, portanto, não é só coisa,
pedra reclamando buril, torremarfilenha experiência do vazio. Poesia em Pozzo
quer ser signo signando, sim, na pulsação de coisa viva, experiência escarrando
no vão de essências. Há uma indignada profusão punk a estalar signos como
‘desafeto’, ‘corrosão’, ‘máscara hipócrita’, ‘desvelamento sádico’, ‘ilusões
predeterminadas’, ‘coração trancafiado’, ‘sparring arremessado’, ‘fabulosa
meretriz’, ‘criança carbonizada’, ‘generais covardes’, ‘florestas de gás’,
‘degredo’, ‘papelotes intoxicados’, ‘cadáveres calejados’, ‘albergues da
solidão’, ‘w.a.s.p.’, ‘faminto povo americano’, ‘casulo fascista’, ‘corrupção’,
‘zumbis feitos de susto’. Essa indignação, marca maior do discurso de Pozzo, no
entanto, corrói exatamente por estar formalizada e trazer também uma irritação
do estético: por isso Libertação pela
Simbiose Social parece ser o ápice deste livro. Pozzo consegue nesse poema
ser o homem-jornal (‘jornalizar’, pedia o outro corrosivo, Oswald de Andrade),
estraçalhando por referências estilhaçadas, nomes, notícias, acontecimentos,
toda a hipocrisia enfim do status quo contra o qual se erige o poético. Afinal,
e para que poetas em tempos de penúria? Exatamente para isso, dizer o indizível,
rastrear com a linguagem as possibilidades de um dito a ser transcendido, exato
justamente por ser fruto de uma concepção de forma que não abole o azar do sentido.
O jogo de linguagem, nesse contexto, tem uma fundamentação ética rara nas
praias nossas da obscuridade. O poeta corrói como rock, sem ceder, porém, ao
star system. Roqueiro que nunca quer ganhar dinheiro, formulando paisagens
transitórias diante do espetáculo do absurdo. Pozzo não é, assim, um poeta mudo:
ele quer a transcendência esquiva da iluminação profana. O discurso só é
poético, sabemos, se ronda as lindes do transe, carcomendo fragmentos de
beleza. A poesia em transe (crítica da terra em transe, das coisas como
supostamente são), intentada por Pozzo, quer ser a do reconhecimento da
possibilidade da transcendência diante do mundo hostil (reparem como ele almeja
ser o ‘agrimensor do absoluto’ diante de um rosto que ‘resplandece feito Luas’,
no ‘tule tenro do Céu’, na perspectiva de que ainda ‘resta a madrugada...’),
operando pelo fluxo e pela respiração entrecortados (Pozzo celebra o
fragmento), o ziguezaguear de fosforescências de sentido, espécie de
continuidade de quases, negando, desse modo, qualquer utopia da sistematização:
a poesia não diz nada com totalidade, é um ressoar quimérico de quases, fluxo
bordejante ancorado no impuro nosso de cada dia. A indignação do Pozzo postula
essa opalescência e lividez dos fundamentos: ressonância interna de sentidos,
ela tanto corrói como, identidade dissolvida, restitui o êxtase da textura.
quinta-feira, 8 de novembro de 2012
segunda-feira, 24 de setembro de 2012
tratado pequeno de wilson bueno
Há 16 anos
Wilson Bueno autografava meu exemplar de seu único livro de poemas publicado em
vida. O que não significou ausência de pegada de poeta em sua obra ficcional,
pelo contrário. É por isso mesmo que a obra de Wilson pode estar aqui, num
blogue de poesia. O texto a seguir foi publicado originalmente no suplemento
VAGAU (Curitiba, 2011), e é republicado aqui apenas porque hoje bateu a
saudade. Compõe-se de um perfil crítico, um percurso sentimental, uma
entrevista: acúmulos, nimbos, nebulosas de anilina e caramelos de saudade.
Wilson malíssimo portunhol Bueno, nem sei se roseno, nicolau vagau,
copista paraguayo, tankeiro com carícias, meu tio cristal a cavalo, cachorros
chuvosos, nem sei se com zoofilia, manual de brinquedos, boleros de amar-te a
ti, pequeno tratado do céu, zoológico’s bar, nem sei se mar, guaratuba, Velha
marafona, andradazil, andradazil, brinks’michimirá’itotekemi, tratado pequeno
de la malíssima literatura de Wilson Bueno, nem sei se. Bestial, bestiário,
homem das antologias Medusário, Caribe transplatino, Jardim de camaleões, publicado em penca
de países, lido por c. daniel e m. e. maciel, entre outros els, Bueno outro pai
de Azur, Bueno malíssimo, levíssimo.
Levíssimo? Não se pode exagerar o lado bruxo de Wilson Bueiro (ainda mais
destacado pela morte bestial, o suicidado pela sociedade como um nada, um cão
escorraçado como cantou tão bem porejando sangria o poeta de Montes Claros,
sangrando ainda). É o que faz, arriscando-se na superficialidade da
classificação típica-ideal, José Kozer. O poeta cubano classifica em três categorias
os autores neobarrocos, de Pesado a Leve. E situa Wilson Boreno entre os
pesados. Wilson Bueijo busca o encanto, a leveza. Apesar de também se deixar
levar pela gravidade, belezas carniças de passante passista baudelaireano que
foi, em geral “alterado” pelo fluxo alucinado que empreende, por exemplo, num Cristal,
encavalando metonímias páginas infindas, Bueno, como eu dizia, um pouco como o
próprio Kozer, não abre mão do valor do pequeno (o mais profundo é a pele,
escreve Gilles Deleuze; que seja tatuada, brocada, maquiada, dizem os
neobarrocos), do cotidiano (tanto que foi um ótimo cronista), do ordinário,
incompleto, fragmentário, diante do poder constituído do máximo e do
pretensamente unitário e identitário. Kozer fala de uma aura infernal em Mar Paraguayo.
Mas o que se destaca no livro unânime de Bueno, ao contrário,
parece-me ser o leve: é o brinquedo brinks que é o cãozinho de nome imenso, no
encavalamento do guarani, encavalamento do portunhol cavalgando o português e o
currando o espanhol na dissolução do nome – na identidade gelatinosa, desmaiada
e demasiada, repetida na diferença em Cristal e em Meu tio Roseno, a cavalo,
onde os nomes de personagens se dissolvem na polifonia da nomeação (Ingengowd,
Ingredvolk, Ingengod, Ingelbrood, Ingeldruck, um fetiche do nome, um
desfazimento do nome, Bueno, Bualvo, Buvários; L. P. na identificação do
manuscrito de Amar-te a ti nem sei se com carícias, quem?, Leocádio Prata?,
Lavínia Prata?, Licurgo Pontes?, “o guarani Sumé, tido como Tomás ou Tomé,
Chomé ou Chumé” de Meu tio Roseno Bueno bife a cavalo) – identidade indecidível em Mar Paraguayo, é o
brinquedo cão que se destaca na página de trama que desdenha a fábula, é o
pequeno cão brinquedo jogo de linguagem construção de suspensão no tempo a
verdadeira revolução e não a do tempo linear instantes pontuados (isso, fôlego
fatigado, afago de ofego) ausência de presente do moderno desde o greco-romano,
não, não, Wilson Buébrio quer o cairótico da suspensão do tempo pontuado e do
elixir do gozo aberto – que homem não é um bicho, que bicho não é um homem?, o
animal que logo sou – (também cicatriz, sim, costura, o tempo aberto, separação
evitável pela linguagem de siameses no devir besta, mas menos) como propõe
Giorgio Agamben desde Walter Benjamin e Martin Heidegger. Ah, Friedrich
Schlegel, fazer crítica como quem faz criação, prosa como quem faz poema,
crônica como quem faz reflexão... Arranjar o caos mantendo-o desregrado. Bueno
é prosador? Pensar o Wilson Buego da prosa através de sua autognose da poiesis, entrevistando-o sobre poesia
para o pensar aqui em sua prosa.
Bueno um dos meus Laios (na verdade, Laios-mães) e heróis, como Waly
Sailormoon e Néstor Perlongher. Meus primeiros poemas impressos, em O
Estado do Paraná,
em 1988, tinham a vizinhança de Wilson Buúnico, constante naquela página. Eu,
guri, escrevia o que lia (e hoje não?), tinha principalmente curiosidade sobre
o autor admirado, o homem do Nicolau. Só nos conhecemos, no
entanto, dois homens de tugúrio, no lançamento de pequeno tratado de brinquedos
(Perhappiness, Curitiba, 1996). Eu havia publicado também pela Iluminuras meu
primeiro livro e me apresentei como poeta da editora e como seu leitor. O
Wilson poeta deixava a hibridez de gênero, embora continuasse invertido: um
volume exclusivo de tankas, bucólico e refinado. Um tempo depois nos reencontraríamos em sua
casa, para uma entrevista. No intervalo, me escreveu uma carta (junho, 96).
(irônico sobre seu livro de tankas): Livro
longa e sofridamente gestado (de 1992 ao final de 95) é, em minha pobre opinião,
o meu melhor livro de poesia, até mesmo porque é e provavelmente seguirá sendo
o meu único livro de poesia. Wilson, falseta... Seus poemas hoje são
descarregados das gavetas do tugúrio, poemas que ele já vinha soltando aos
poucos. Recomendo os intensos poemas na Coyote.
Em 1997, liguei e marquei um encontro. Transcreverei em aspas a entrevista.
Fora da transcriação da fala de gala que Wilson me concedeu para o Metáfora,
meu extinto programa de poesia na Educativa FM, ficam: o áudio da apresentação do
programa; a voz do entrevistado como palavra viva e cairótica no seu
brejeirismo algo empolado, emissão apaixonada, didática e mesmo artística, para
não dizer de seu carinho de Peixes; o meu silêncio mais minha escuta de ofego.
O programa foi ao ar sem minhas intervenções, a voz de Bueno ocupando todo o
tempo suspenso. Ler no que ele fala da poesia o que se pode ler também na
prosa, Wilson centáureo, siamesmo.
Voz de Bueno: Eu sou um
incorrigível lírico, não é? Eu sou um incorrigível lírico. É... por mais que eu
faça uma literatura de ponta, como dizem por aí, né? Por mais que faça uma
coisa assim mais experencial em termos de texto, tal, como é o Mar Paraguayo, como é o Cristal, né? Éééé, mas eu sou
essencialmente lírico. Né? Então, é, você pode observar que essa, a leveza
também se comunica, não é? com essa, com esse pendor lírico, digamos assim para
usar uma expressão até meio parnasiana, né?. (parece irritado, talvez não
comigo e minha pergunta, mas por ter usado “uma expressão até meio parnasiana”) Eu gosto, né?, eu gosto dessa coisa dos,
dessa experiênc..., dos limiiites dessa leveza, do paroxiiismo às vezes dessa
leveza, do tão perigoso paroxismo dessa leveza, não é? Então você veja, há um
contraponto realmente até com a poesia digamos, que anda por aí, porque ela às
vezes é dura na sua proposta, até geométrica, atéé, né?, é, de exasperação de
linguagem, não é? E ela é linda, ela, ela consegue ser linda, no meu entender,
quando ela também consegue ser bela, quando ela consegue extrair, disso aí, uuummm,
o dom da leveza, da in-sus-ten-tável leveza!
Recita “volta”: chove a chuva
fina/lua névoa na neblina/chegamos a Ikedo//a casa de meus pais/céu brincando
de brinquedo
Wilson Poiésico faz a
poesia progressiva do par Schlegel-Novalis, fragmentária. É que também a prosa
teve sua Crise de Verso quando Flaubert, em 1852, pretendeu um livro sobre
nada, descolando a prosa da pretensão de um além percebido (verdadeiro,
metafísico) a ser representado. Concordando com Marcos Siscar, a crise
detectada com esse nome de Crise de Verso por Mallarmé não designa uma
interrupção ou um colapso histórico do verso, mas uma irritação do verso,
interior ao verso, e sobre ele. Também com a prosa após a carta de Flaubert,
irritada em relação ao imperativo da mimese representativa, doxa burguesa. Se a poesia enquanto
gênero optou depois de Mallarmé pelo quase verso (do verso livre ao poema em
prosa, à linha e à reflexão), a prosa passou a tentar a apresentação para além
da representação. Uma irritação da prosa (obrigado, Siscar), uma quase mimese
da representação em conluio com uma quase mimese da linguagem. Uma quase trama
na mesma carne esponjosa de, O visível e
o invisível, uma quase fábula. A prosa se faz pensamento: ordenação de
relações entre significantes em busca de uma divinação. Entenda-se: quer-se
substituir a progressão lógica, como em Mallarmé que busca uma finalidade pela
estrutura musical, em
Wilson Bielo, jazzística, fluídica, virgulada no tempo do
ofego, querendo que a imagem brilhe com mais e mais camadas até desmaios,
pequenas mortes. Wilson Buácido é (o-Eu) Leocádio Prata de Amar-te a ti nem sei se com
carícias, título decassilábico de sua homenagem ao velho Machadinho,
personagem que de início aponta o provisório como mote para o liberto que faz
par com a escritura, morte da esterilização das máscaras sociais da ordem.
Existe, porém, a proposição de outras máscaras. As máscaras balinesas, que
Artaud ensinou para o Ocidente, em Wilson Proseno são as atualizações significativas
(o que o afasta da complacência do mercado de repertórios da pós-modernidade
estética) de formas de priscas eras, como o tanka ou o livro que faz o
artesanato molecular da linguagem oitocentista ou o livro de viagem rosiana ou
o bestiário escorrido – escorreito de atualidade – do medievo para a operação
de travestimentos e hibridizações sul-americanas (ivitus, êulikes, nácares,
agoalumens, catoblepas, zembras, lazúlis e limosos), política do (des)autor de
afirmação do direito e da contribuição perlongadamente portunholada da
linguagem cruzada de incaico e negróide e guarani e português e teutônico e
brasiguaio e, e, e, :::::, a dobra neobarroca de entre-fronteiras, limes da convivência afirmada – ciente
porém da destruição via homogeneização operada pelas forças da ordem
eurocentrada –, a deriva nossa latino-americana para o patrimônio (também
negando-o, propondo sua explosão ou corrosão) ocidental da literatura.
Literatura afirmativa e que finca pé no seu direito expressivo do diverso
entre-rios, entre-américas, terra do transe em trânsito nosso antropofágico.
Voz de Bueno: O lance com a leveza,
o mais fascinante com a leveza, no meu entender, é que, ele, ela é sempre um
projeto de conquista. Você nunca tem a leveza nas mãos, você tá sempre
perseguindo, é um jogo de de de, de caça e caçador.Eu acho que a poesia, de uma
forma geral, talvez eu diga uma coisa, até meio dura, não sei, mas eu acho que
aaa, que a poesia (está mais calmo agora na segunda questão, respira leve,
parou de usar os conciliadores e pedagógicos “né?”), de uma forma geral, no Brasil e não fora, e não só no Brasil, fora
dele também, tem sido muito vulgarizada, Ricardo, tem sido muito ba-na-li-zada,
todo mundo é poeta, sabe?, a senhôra do Rotary é poeta, a mulher que promove o
evento da, sabe?, na, na, da Prefeitura, da Secretaria da Prefeitura do não sei
daonde, do, o burocrata, é, todo mundo é poeta, quer dizer, houve uma banalização. Então quando eu me propus a
fazer um livro de poesia, eu falei puta merda, como é que eu vou fazer? Um livro
de poesia é, eu não posso, a poesia é muito transparente, cara, ela é muito
vi-sí-vel, ela não deixa mentir, ela não deixa esconder. Então eu falei, porra,
eu tenho que mostrar que eu sou capaz da métrica mais rigorosa, que é a métrica
oriental. Eu tenho que mostrar, nesses tankas, eu fiz noventa e nove tankas,
que é o número inclusive cabalístico de deus, né? E quando eu cheguei neste
noventa e nove, não é? que foi uma experiência muito incrível, falei, bom,
agora acabou a minha trajetória poética, lite..., objetivamente poética,
estritamente poética, a poesia de um verso
por cima do outro, não é? Então eu esgotei ali. Eu tenho muitos poemas,
as pessoas até me cobram, pessoas importantes até, até que eu respeito muito,
cobram, elas cobram não é? E eeuu não sei, sabe?, eu, pra mim, o pequeno tratado de brinquedos, porque
dentro dessa fôrma e dentro dessa forma, né?, ele, valeu nesse sentido... Eu
acho que um livro de poema tem que ser um livro de poema. Você tem que montar o
livro, você não pode pegar um monte de livro da gaveta e fazer, fiz um livro.
Não é assim. Poesia é uma coisa,
muito visível. Muito imediatamente, é, devassada. Sabe, então você tem que ter
todas as contenções, você tem que ter todas as, as fôôrrmas, nesse sentido. Até
mesmo pra não te dizer, não, ele fez qualquer coisa.
Tio Roseno, Rosemundo, Rosalvo, Rosinante, Rosamante etc. Tal profusão
discute a identidade, pois pode marcar tanto a inutilidade da nomeação-
identificação, quanto, em termos fenomenológicos, as diferentes
intersubjetividades em atuação na construção múltipla de identidades.
Labilidade do nomear que se estende numa constante e ritmada explicitação da
própria ficcionalidade do texto, apontando para a própria recusa de autoridade
do narrador em nomear, em indiciar uma origem a partir de uma “grande
narrativa” (nos termos de Lyotard em A Condição Pós-Moderna). Assim, o narrador vai,
espaçadamente, veiculando nomes para sua própria narrativa, mostrando como a
autoconsciência do texto é oscilante e também híbrida: “fábula ao relento,
lenda sem uso, raconto aragem, lenda de viés, história visagem, cuento índio,
lenda neblina, história a cavalo, história a esmo, fábula estrela”. Dissonante
a mensagem que a escrita manda numa garrafa para um leitor algum-nenhum.
Cito, de Wilson Puído outras missivas: carta amarela de agosto, 97: uma coisa fundamental das ditas narrativas
curtas – ritmo ágil, às vezes quase veloz, o que confere ao texto uma graça
assim espontânea, “fluídica”. V. sabe – não sou do varejo crítico, sou artesão.
E quando no varejo crítico (“Estadão”) não abro mão do artesanato. Carta
efusiva de novembro, 98: o saudável
caminho de “la malíssima literatura” que é como os argentinos abonam os relatos
mais inventivos, em oposição às letras caretas... Viva o Mar Paraguayo, deixa que em causa própria eu diga, e viva.
Voz de Bueno: Eu saí daqui. Eu, foi
uma coisa muito, muito engraçada. Mas, não, saí daqui na coisa mais búdica
possível, que é, estar in-ten-samente aqui. (o escritor fala sublinhando) O que, não, você sabe que eu não estou
fazendo um paradoxo. Sabe, uma coisa
dialoga e conversa com a outra. Estar profundamente aqui. Estar profundamente
na minha aldeia. Estar profundamente no meu subúrbio, no meu bairro, na minha
casa de madeira, no arrabalde. Estar profun... No mundo. É que este livro, é
incrível, sabe?, é incrível. Ele não tem uma pretensão estetizante. Ele não tem,
ele quer dizer apenas o seguinte: olha como é interessante estar aqui. O melhor
lugar do mundo é aquii e agoora. Então, no momento em que eu digo que é o livro
mais desprendido meu, é, ao mesmo tempo, o mais egóico, o livro mais
egocentrado. É um livro cheio de eus. Sou eu no sofrimento amoroso. O-eu. Não
é? O-eu. Na terceira pessoa. O-eu na terceira pessoa. Sou o-eu no sofrimento
amoroso, o-eu diante do encantamento, o-eu diante das miúdas coisas do
cotidiano. Né? Sempre, mas, a, ao, ao se pretender, essa coisa egóica, ele, se
pretendeu, tudo são pretensões, é, atravessar e ir purificando esses eus. Foi
uma forma de salvação, também. Então, foi uma forma de salvação. Eu passava o
dia inteiro, Ricardo, tamborilando os dedos dentro do ônibus, eu não tenho
carro, eu sou um pedestre por convicção, eu gosto de andar a pé, né? Então, eu,
passava os dedos tamborilando no, no, sabe, os, os dedos dentro dos ônibus, pra
achar, eu vinha o tempo inteiro na rima, e na, na métrica, né? É,
Eu-ea-mi-nha-mes-tra Sa-í-mos-ca-çar-cepilhos. E depois essa coisa com a
métrica é uma coisa muito séria, Ricardo. Porque vêm imagens e vêm versos
únicos, luxuriantes e preciosos! Meu deus do céu, como é que eu...? e você tem
que jogar fora. O que eu tenho de verso guardado. Pelo menos jogar fora, não,
deixa eu guardar! Quem sabe eu posso usar mais tarde nalguma outra coisa.
Porque de repente não tá na rima, é, não tá na métrica. E aí? Não tá na
métrica... dançou, já pode desprezar. Dançou. Tira fora.
Recita “exercício escolar”: trinta
tigres trêfegos/são mais que três tigres tristes/decora o menino//depois dorme
mansamente/e sonha com passarinho
O pensamento pensa através do ritmo, que é um quase, quase forma que já
nasce fragmentária, única possibilidade de uma ritualização atualizada dos
fragmentos tornados e tomados lidos no tugúrio e ouvidos na abertura, na escuta
de um “e para que prosadores progressivos em tempos de penúria?”. Exercendo a
negatividade (e é como negatividade que se morre, cão ouriço exposto, mas
fechado na estrada de Jacques se há pergunta é prosa Derrida), embora a
negatividade seja para o escritor aquela suspensão da autoridade do tempo
linear em nome do gozo da leve lava linguagem, leve lava, entrecruzamento de
desvios, como escreveu Perlongher sobre Mar Paraguayo, entre o devir animal
e o devir mulher, língua menor, elogio do indeterminado, além de lábios
lancinados de quem leu muito Manuel Puig, trocando dez mil toneladas de cartas
com João Antonio, bas-fond, certo guiñolesco e pitada de pós-Dalton Trevisan de
bicho urbano, luxuriante de lixo como o fato de intitular o primeiro livro de Bolero’s
bar, assumindo a marafonice, rindo COM o kitsch, a novela e o rádio e o
tarô e o Rotary, ironizando (despersonalizando)
COM o melodramático o melífluo filho da cultura de massa, ou da massa retorcida
da memória de província, sertão longínquo jaguarapitânico filho da Guerra do
Paranavaí e da cultura de entre-rios, portunholizada, devir híbrido e oxímoro,
lobisomem (morto) das madrugadas (vivas) como reescreveria hoje Leminski.
Elogio da térmita, elogio do riso, tesão pelo chiste e o espirituoso,
necessidade prazerosa de seus ditos. Necessidade da ironia, da linguagem do
artifício que não ilude, mas que goza em seu encadear vibrátil e paratático: em
Meu
tio Roseno, a cavalo, permitam-me a ironia do acadêmico, temos a
exibição deliberada da trama, ressaltando seus passeios pela intertextualidade,
o que torna irônica a própria representação da viagem, feita em busca de uma
continuidade marcada pela mistura, isto é, na própria descontinuidade, entre
branco, negro e índio, possibilidade que, no entanto, se mostrará fracassada,
abortada pela guerra de hegemonia branca num mundo de suposta pureza e convívio
edênico. Para além dos dados fabulatórios, estamos aqui num outro ambiente de
trama literária, que recusa, ou vê com restrições, a estratégia da
transparência realista. Sério? Bueno, com a força do pequeno, brinca. Seu
elevado (como pode se perceber pela entrevista) é sempre forçado, o que muitas
vezes dá um ar de velharia parnasiana tiazona ao seu artesanato de texturas e
personagens. Wilson Esboroando marafônico também. Ou Wilson Bambino então em Os Chuvosos. O
poeta é outros.
Voz de Bueno: A literatura é uma
coisa autônoma, a literatura é uma coisa fascinante nesse sentido. Não dá.
Olha, você pode mentir em moda, você pode mentir... no jornalismo, você pode
mentir no cinema, você pode mentir... (...) talvez no teatro. Mas na
literatura, Ricardo, jamais conseguirás. Nenhum de nós. Nenhum de nós. Nós
seremos desmascarados i-me-dia-ta-mente. É a transparência. É a ponta extrema
da expressividade. Já tá dito: é alii e é iisso.
Recita “magrura”: minha
meia-irmã/chegou de Piracicaba/ainda mais magra//corremos em seu socorro/de
magra voou pro morro
Voz de Bueno: Isso é real. Isso
aconteceu, ah ah ah ah ah.(o ar em A de sua risada: ouçam-no:::::).
Foi uma experiência saudosa ter conhecido Wilson Bueno no auge de seu
elogio ao pequeno, ao efêmero das folhinhas álulas do pequeno ipê amarelo no
copinho de iogurte porejando brilhos florescentes de fosfenos (na idéia de que
“há sempre algo que subverte na transgressão miúda – quieta e nada humilde”,
como escreve a respeito da grafitagem urbana em Diário vagau). Talvez por
isso eu tenha no meu livro barato optado
pela exclusividade da caixa baixa (copiando sem quereres o que ele fizera em pequeno
tratado de brinquedos, todo minusculado), caligrafia do ínfimo e do
efêmero, mínimo máximo poder da literatura malíssima: Pound citando nec spe nec
metu. O poeta não está. É outros, escreveu Perlongher. O-eu. Máscaras
balinesas, um gosto pelo ritual como possibilidade de despersonalização: o eu
do eu é a aceitação de “se há a há não-a” como propõem Schlegel-Novalis.
Forma ritualizada, aquela diminuição das possibilidades de incorrer na
literatura de confissão (tentando uma confissão da confissão, isso sim): o
tanka, o oitocentismo, o livro seriado (bestiário), a marcação despersonalizada
de nomes como Sirigaita e Velha em Cristal. Liturgia da revelação, linguagem
gnóstica. Narrar o narrar e narrar o narrado, oxímoro, ficções do intervalo,
clepsidra que leva do dilúvio de linguagem à fabulação esgarçada, que se faz
por uma dinâmica entre reiteração que se vai erodindo a partir de uma primeira
entrada em cena (o nome que se vai dilapidando, meta de formose e de morfose) e
encadeamento rítmico mítico (da ordem da circularidade e do final deceptivo em Meu
tio Roseno, a cavalo) ou esvaziado como em Amar-te a ti nem sei se com
carícias: “escrevinhações obsessivas, desditas de amor, passos turvos,
águas aéreas, fragmentos diversos, a viva lembrança dos meus”. A memória viva,
atualizada no sentido forte da proposta de Walter Benjamin, significativa e
refeita, em busca de, através da diferença, atingir (sem nunca atingir, e aí
sua beleza e seu convencimento) a unidade de origem, antes de Babel, nos dias
de Adão antes da Queda, caidinho na Eva, a memória viva que está atravessada em
cada escrito de Wilson Bodeado, mas que não é representada, é construída no
entretecimento (enternecido ou contorcido) de sua hibridização de idioletos.
Wilson no Diário vagau evoca o vagau, “do fundo de sua natureza lúdica”.
O Wilson Buélice de natureza búdica. O peso leve, pequeno cão, anfíbio, fluido,
liquefeito, lábil, delineado em raspas de geada (força do fraco), portanto, do
neobarroco.
Voz de Bueno: O cinema americano,
é, os gibis, os contos de fada, os programas de televisão, ééé, as série
dan-tes-cas que tem na madrugada, da Record, com, os, os, o, aaii os exorcismos
pra expulsar os demônios, eh eh eh. E são milhares de pessoas sendo exorcizadas
ao mesmo tempo, sabe? Éé, o cartaz, o outdoor, eu não desprezo a minha época.
Sabe, eu acho que um poeta (em vários dos trechos recentes resmungos e
partes de falas minhas são ouvidas no fundo),
é, não pode desprezar a sua época, é uma coisa... Imagine se o Machado de Assis
esquecesse do tílburi. Ele seria tão falso e tão inverossímil hoje se ele
esquecesse do tílburi. Ele não esqueceu do tílburi. Ele não esqueceu do canapé.
Não é? Que era o sofá da época. Ele não esqueceu do tílburi, que era a
carruagem da época, o meio de locomoção tal. Então eu acho que sabe eu sou, eu
acho que influência eu recebo até da tela acesa do computador. E eu vejo a
literatura como uma coisa assim mais a flor da pele. Eu acho que literatura tem
que ser uma coisa a flor da pele. Temos que ver que é uma, uma atividade
limítrofe da bruxaria. E ela só vai valer aí. Ela vai valer, só vai valer
enquanto alquimia. Ela só vai valer enquanto transformação, Ricardo. Ela só vai
valer enquanto busca profunda da modéstia. Sabe, quando eu digo que, quando eu
faço uma escolha, não estou dizendo que a outra escolha deva ser
necessariamente descartada. Eu apenas faço uma escolha. Minha escolha é outra.
Minha tribo, minha praia é outra. Né? Mas a poesia tem que estar em tudo. A poesia nos ônibus.
A poesia devia estar nos guardanapos, não é? Está. Sabe? Onde a poesia estiver
tendo vigência, estará tendo vigência a poesia. Muito melhor um mundo com
poesia do que um mundo sem poesia, não é? Literal e figurativamente, inclusive.
Recita
“mudança”: minha mãe nas
costas/atravessamos aldeias/mais de cem quilômetros//tanto a levamos nos
braços/que agora somos aéreos
Voz de Bueno: Ah ah ah Eu gosto
deste livro, Ricardo.
sexta-feira, 21 de setembro de 2012
Rilke Shake, de Angélica Freitas
a poesia não precisa ficar
enrolando. pode ser direta e reta. nem precisa ficar pintando quadrinhos
mostrando a corzinha neobarroca pra gente ver como o poeta é bom esteta e
conhece o japonismo no impressionismo. e olha que eu amo o neobarroco e o
excesso. mas fiquei tão impactado com o tom de “basta o corte preciso, com
toques de sujeira aqui e ali, pra disfarçar e tornar mais viva a conversa”. pq
não existe conversa geométrica. e é no dialogismo que os poemas de angélica
freitas melhor funcionam. ali a chave deles, as vozes que vêm de todos os lados
e mesmo do sujeito que não tem unidade, que se esquece e faz questão de frisar
isso no poema. que não só se esquece, mas não sabe direito quem é e que, para
além disso, queria ser outra coisa, um ser de bigodinho às vezes, outras alguém
do harém de stein. falar de poesia como conversa é retomar a ironia sacana que
vem de gregório e chega até cacaso ou francisco alvim. mas é uma ironia culta
como a de adília lopes. dizer o percurso e percutir o discurso ficam em tensão
nos poemas de angélica, tensão que está no próprio título, maravilhoso título
que eu queria ter inventado. há esse pop culto que na verdade não conjuga
exatamente os pólos e fica numa espécie muito interessante de talvez. sempre
achei interessante a arte que põe em circulação, ao mesmo tempo, diferentes
programações possíveis de sua própria recepção. então, aquilo que é
aparentemente direto, uma linha reta, tem sempre algo de torto, de instável. é
aquela velha conversa: “quem quer a voz?” (manoel ricardo de lima, entre outros,
e angélica freitas também parece optar assim, toma a posição da ausência de
voz: ele o diz, com sua voz, no vídeo de ricardo carvalho para o festival de
poesia de goyaz: alguém leia o “estatuto do desmallarmento” e entenderá o que
eu digo). raúl antelo tem, num instigante texto (“a fala do fora: uma lida”),
uma discussão com a poesia da estabilidade. ele propõe ali, no texto que é
prefácio a uma antologia de 6 poetas brasileiros em tradução ao inglês
(desencontrários-unencontraries, curitiba: 1995), que o percurso do
contemporâneo supõe um sujeito (em agamben o termo seria ‘espectral’)
desenraizado, desgeograficado, “um ser que passa por relações, declinações
(orfeu, orftu, orfele) catastróficas, flexões ou simples pré-posições de sua
fala. Seu lugar é o entre. Sua celebração, o entrudo. A estratégia oblíqua.” em
alguns momentos, angélica talvez tenha relaxado demais, e o que era pra ser um
acúmulo de desastres familiares ritmado pelo “vende tudo” de tempos
neoliberais, tensionando acúmulo e dispersão, encaminha-se, por fim, no poema “família
vende tudo”, para um desenlace banal e excessivamente espelhado na realidade
(ainda que ficcional) – mesmo a simulação do discurso publicitário fica nisso,
simulação. mas são escorregões menores (acho que o problema está nessa opção
por narrativas familiares, vejo o mesmo em “a mina de ouro de minha mãe...”: o
problema não está no universo familiar, ainda que certamente saturado, mas na
abordagem excessivamente condescendente e não mediada). felizmente aquela
agilidade na abordagem dos diferentes ritmos do cotidiano culto voltam nos
poemas subsequentes. dá pra entender o que eu prefiro em angélica quando surge
um poema como “sereia a sério”. de fato, há ainda um certo comedimento em
alguns momentos do livro e “sereia a sério”, ao contrário, cospe fogo (acho que
essa intensidade que aqui e ali se anunciam possa vir no novo livro de angélica
freitas, cujo título, ao menos, insinua isso: um útero é do tamanho de um
punho... preciso ler logo). outra coisa que me incomoda é uma espécie de
ditadura do humor. sim eu sei, amor, humor. e mesmo o discurso da violência e
da rapidez, da instabilidade e da dessincronização das sintaxes as mais
fraturadas que invadem os poemas, mesmo esse discurso forte só é forte se dito
com paixão, com amor. angélica não quer saber mesmo de tudo aquilo que é escuro
nas luzes da existência? alguns poemas de angélica queriam ser canções e “sashimi”
é um ótimo representante. alguém que ama “as canções do rádio” e que nunca leu
chaucer antes, consegue justamente ser pau-brasil: fala com o concretista e com
o repentista. assim, se há uma penúria respondida pelos poemas de angélica,
essa não é a do intelectual que fala em nome dos outros, mas a do discurso que
recusa a identidade. a política, portanto, comparece nesse outro nível. e é por
isso que considero os melhores momentos do livro justamente os dessa
explicitação de uma demanda da desrepressão. são os poemas que entram em livros
e vidas literárias, gertrude stein, liz e lota. quando a estratégia da máscara
é radicalizada, o ganho político é considerável ao desestabilizar a mimesis do
espelhismo. MAS CARAMBA. quando chega a página 32, daí em diante, a gente
parece estar diante, daí em diante, do melhor livro dos últimos tempos.
narrativa, poesia da fossa, humor, sexualidades, intertextualidades,
autobiobliografias, tudo explode sem que a forma exploda, e tudo se funde num
compósito muito charmoso, extremamente sensual, com toques de agressividade que
iluminam páginas inteiras (“lésbicas são um desperdício ele disse/você já ouviu
falar em mussolini?”). eu fiquei apaixonado por esse rilke shake da angélica
freitas (são paulo: cosac naify; rio de janeiro: 7letras, 2007) no miolo do
livro: poemas como “o que é um baibai?” são sensacionais. gosto de poemas como “treze
de outubro”, o desolamento combina com angélica e certa atitude passiva em
relação à linguagem, hesitando em prosseguir, em encetar narrativa, ganhando a
linguagem uma circularidade muito afeita à escrita de gertrude stein: acho que
seria um caminho legal para angélica explorar mais (*estou fazendo a leitura de rilke shake sem conhecer o livro novo da poeta). “(não consigo terminar este
poema).” é de uma simplicidade cortante e diz muito do que prefiro em relação
às narrativas prontas com as quais me incomodei. as narrativas prontas também
não têm o ar sacana de uma (quase) ladra de livros (e de citações, e de vozes),
de uma moleca que fumava escondido, de alguém de bigodinho, baseados no bolso e
que cola chicles no banco de alguém. um humor mais ferino se insinua aí, menos
apaziguador, que rima inglês e português com falta-de-caráter macunaímica, sem mímica, cara esperta de alguém que só foi “rir no elevador”. rsrsrs
segunda-feira, 10 de setembro de 2012
Musga, de Mário Domingues
Musga
é um livro tenso. A tensão que Mario Domingues impõe à criação poética é a
indecidibilidade proposital entre escrita e reescrita (ou tradução). O
procedimento é de extrema subversão dos conceitos de originalidade e de gênio,
tão caros aos lugares-comuns da poesia brasileira. A reescrita como processo
operativo impõe a tensão através de três movimentos: reescrita de um poema de
seu outro livro, paisagem transitória; reescrita por amplificação de poemas;
tradução de autores clássicos. Mas essa tensão é intestina, não vem à luz de
imediato se olhamos superficialmente os poemas concisos, de dicção clássica e
temática contemplativa com que Mario Domingues abre seu livro. A arte clássica
de Domingues parece querer uma clareza suave. A concisão, magrura da síntese,
quer afastar qualquer expressionismo. O poeta está-no-mundo para esculturas
precárias, que tendem a um tanto de dissolução oriental, esvaziamento como
resultante da construção pausada e pensada, que parece já se apresentar como
esvaecimento do eu. O zen não conclui e é uma das forças imprevistas diante do
que parece ser um projeto de poesia em que o clássico latino tem proeminência.
Ou não. A ausência, marca deceptiva dos finais de poemas de Musga,
segundo livro de Domingues, pode estar imbricada já no projeto dessa arte
escrita aparentemente no osso da linguagem.
Os poemas
iniciais projetam um bestiário suave, de organização atmosférica: a reescrita
aqui é a das poéticas do olhar. O estilo quer capturar o movimento de formas da
natureza: lince, alce, andorinhas, gaivota, beija-flor, percevejo, lesma, gato,
goiabeira, gelo, fonte; tudo na primeira parte de Musga é objeto de uma
contemplação onde o esforço de forma – sintética, fluida – consegue ser apagado
pela obtenção da leveza. Destaco os versos da metamorfose dinâmica do segundo
poema: “As andorinhas,/todas várias juntas,/desenham outra andorinha,//ou uma
tulipa,/que emerge do chão/e foge da chuva.” Os ricos dois últimos versos, de
fato, não terminam o poema, deixando o vazio (a fuga) como conclusão para o
fluir de formas desenhado pelas andorinhas. Se no poema famoso de João Cabral
de Melo Neto, os galos teciam pelo canto conjunto uma manhã, aqui não há
resultante, as andorinhas são a mutação de formas, captadas na sua própria
dança interna de figuras: a tulipa (andorinhas) que emerge/foge do chão/da
chuva. O poema não é um chamamento humanista, ele submete-se a ser um
configurador de sensibilidade para a dança metamórfica da percepção. A poesia
do livro expressa uma força da modéstia, o que contribui para a autonomia do
poético (sem a ambição de poesia como veículo discursivo). Trata-se de uma
circularidade (Domingues tenta recusar arestas e vertigens, embora elas atuem
como sintoma) operada pelo fragmento amaciado: o lince não devora o alce, as
andorinhas são metamorfoses, a gaivota “vai e volta”, o beija-flor brilha numa
piscadela do observador, o verde verte psicodelicamente do percevejo. A mutação
é sempre sem história, ela é quase um milagre: “A goiabeira/(como se
descolasse/de si uma serpente/seca/ou só sua carcaça)/descasca.” O poeta se vê
obrigado aos símiles no processo milagroso do descascar da goiabeira. Há algo
de mofo, fungo, musgo. Um tempo lesma, que de tão lento pode expressar melhor o
instante, seu relâmpago, seu coração palpitante. Também uma recusa da fala, um
alcance do silêncio dos seres: de um “céu-ressaca”, fórmula também da ordem da
condensação vibrátil.
Em “Paisagem
transitória revisitada”, Domingues reescreve um poema de seu primeiro livro (paisagem
transitória), iniciando o projeto interno de reescrita que atravessa Musga:
o procedimento agora é o do corte, sendo o resultado aquilo que o tempo entre
os dois livros depurou na concepção de poesia do escritor. O poema é reduzido à
metade. Algumas mudanças, inversão de alguns versos, eliminando algo de
discursivo da primeira versão. Tudo depurado para um único foco: a ondulação
das dunas, semoventes. Novamente, porém, como nos poemas já comentados, as
dunas são reduzidas, no último poema, ao mais molecular da duna, seu grão de
areia grávido de cristal, repentina e violenta mudança de foco (o átomo). De
fato, talvez não consiga ser tão arredondada a arte de Mario Domingues: arestas
irrompem travando o gozo desinteressado, da arte concebida como o prazer
ekfrásico. Um exemplo dessas arestas é o súbito corte no final desse poema
revisitado, em que se parte da ondulação da paisagem de larga escala para a
imobilidade do grão mínimo; outro é o “corte diagonal da sombra” que faz
desaparecer a lesma lenta e ondulante de outro poema. De fato, a tensão curva e
reta aparece no próprio projeto gráfico do livro, particularmente na capa, na
diagramação do título (arestas, M e A – esta letra, deitada, à maneira de uma
seta –, nas pontas, e os redondos U, S e G, meio que encavalados no centro da
palavra). Na contracapa, por sua vez, enquanto o poema fala em “insinuante e
sinuosa”, os grafismos desenhados explicitam vértices e arestas. Batalha
interna, incorporação naturalizada da contradição entre curva e reta.
As duas partes
seguintes do livro, “Relâmpagos” e “Noturnos”, explicitam outra tensão: parece
haver uma consciência de que a escrita é quase impossível. Persiste a secura
tensa nas duas partes, só rompida em “A vinha da baleia”, de resto, uma bela
anomalia em seu gozo da dobra e da dilatação sonora num livro de opção pelo
descarnado, uma possibilidade de respiro melódico num livro de leveza “bossa
nova” austera. Noutro poema, embora haja “respiros fortes”, a corporalidade
volta ser reduzida a “uma ossada de sonhos”. Em “Relâmpagos”, um mundo que gira
por si mesmo, num vazio da rotina cuja manifestação é vibrátil: “peixes
faca/feixes prata”. Em “Noturnos”, porém, os verbos anunciam a presença de um
corpo: “abre/e vibra/a carne de fogo.” O poeta está ali, afinal (“Sinto o
cheiro:”). Os poemas parecem seguir uma respiração corporal, contraindo-se e
dilatando-se. O processo é visível nos poemas das páginas, talvez as melhores
do livro, 49-51 e 53-55. O segundo poema de cada conjunto dessas páginas
amplifica e dilata o primeiro poema, como se o reescrevesse, operando
palimpsestos, anunciando, portanto, as traduções com que Domingues fecha seu
livro.
Luis Dolhnikoff,
em texto de apresentação, aponta o caráter contrastante das paisagens descritas
em Lucrécio com relação às fanopeias de Domingues (insinuando, assim, outra
reescrita): paisagem clássica de nuvens retumbantes e paisagem cansada do poeta
contemporâneo. Além disso, fica mais nítido, com as traduções, o projeto de
despersonalização como condição do poético presente no texto de Domingues. São
traduzidos poemas de Catulo e Lucrécio. Nos poemas do primeiro, do Cancioneiro de Lésbia, as opções de
Domingues tendem à síntese e a uma urgência do oral que as traduções de Paulo
Sérgio de Vasconcellos não têm. Os poemas ganham em agilidade, atualizados para
a concisão de Mario Domingues. Nos de Lucrécio, a tensão retorna sob a forma de
poemas que se querem, simultaneamente, proposições de ciência e obras de arte.
O que reitera o caráter extremamente vivo de Musga, uma vez que o
transe de matéria e linguagem e o trânsito entre escrita e reescrita mostram que
a ossificação e o mínimo (a melancolia, por exemplo, é rebatida pelos poemas de
Catulo) não são a única marca do livro (aquela “unidade ultra discreta”
apontada por Dolhnikoff). Deve-se atentar, além disso, para a saudável proposta
de fazer equivaler criação e tradução, em dia com a eliminação do
expressionismo. O livro faz sentido, portanto, como projeto de constelação de
tensões, potencializado pelas várias partes e pelo hibridismo que traz a
presença de algumas traduções: é naquela nebulosa tensão interna que os poemas
trazem seu maior valor.
Ficha: Musga - Mário Domingues - Primeiro de Maio - PR: Editora Mirabilia, 2010.
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