segunda-feira, 24 de setembro de 2012

tratado pequeno de wilson bueno



         Há 16 anos Wilson Bueno autografava meu exemplar de seu único livro de poemas publicado em vida. O que não significou ausência de pegada de poeta em sua obra ficcional, pelo contrário. É por isso mesmo que a obra de Wilson pode estar aqui, num blogue de poesia. O texto a seguir foi publicado originalmente no suplemento VAGAU (Curitiba, 2011), e é republicado aqui apenas porque hoje bateu a saudade. Compõe-se de um perfil crítico, um percurso sentimental, uma entrevista: acúmulos, nimbos, nebulosas de anilina e caramelos de saudade.
Wilson malíssimo portunhol Bueno, nem sei se roseno, nicolau vagau, copista paraguayo, tankeiro com carícias, meu tio cristal a cavalo, cachorros chuvosos, nem sei se com zoofilia, manual de brinquedos, boleros de amar-te a ti, pequeno tratado do céu, zoológico’s bar, nem sei se mar, guaratuba, Velha marafona, andradazil, andradazil, brinks’michimirá’itotekemi, tratado pequeno de la malíssima literatura de Wilson Bueno, nem sei se. Bestial, bestiário, homem das antologias Medusário, Caribe transplatino, Jardim de camaleões, publicado em penca de países, lido por c. daniel e m. e. maciel, entre outros els, Bueno outro pai de Azur, Bueno malíssimo, levíssimo. Levíssimo? Não se pode exagerar o lado bruxo de Wilson Bueiro (ainda mais destacado pela morte bestial, o suicidado pela sociedade como um nada, um cão escorraçado como cantou tão bem porejando sangria o poeta de Montes Claros, sangrando ainda). É o que faz, arriscando-se na superficialidade da classificação típica-ideal, José Kozer. O poeta cubano classifica em três categorias os autores neobarrocos, de Pesado a Leve. E situa Wilson Boreno entre os pesados. Wilson Bueijo busca o encanto, a leveza. Apesar de também se deixar levar pela gravidade, belezas carniças de passante passista baudelaireano que foi, em geral “alterado” pelo fluxo alucinado que empreende, por exemplo, num Cristal, encavalando metonímias páginas infindas, Bueno, como eu dizia, um pouco como o próprio Kozer, não abre mão do valor do pequeno (o mais profundo é a pele, escreve Gilles Deleuze; que seja tatuada, brocada, maquiada, dizem os neobarrocos), do cotidiano (tanto que foi um ótimo cronista), do ordinário, incompleto, fragmentário, diante do poder constituído do máximo e do pretensamente unitário e identitário. Kozer fala de uma aura infernal em Mar Paraguayo. Mas o que se destaca no livro unânime de Bueno, ao contrário, parece-me ser o leve: é o brinquedo brinks que é o cãozinho de nome imenso, no encavalamento do guarani, encavalamento do portunhol cavalgando o português e o currando o espanhol na dissolução do nome – na identidade gelatinosa, desmaiada e demasiada, repetida na diferença em Cristal e em Meu tio Roseno, a cavalo, onde os nomes de personagens se dissolvem na polifonia da nomeação (Ingengowd, Ingredvolk, Ingengod, Ingelbrood, Ingeldruck, um fetiche do nome, um desfazimento do nome, Bueno, Bualvo, Buvários; L. P. na identificação do manuscrito de Amar-te a ti nem sei se com carícias, quem?, Leocádio Prata?, Lavínia Prata?, Licurgo Pontes?, “o guarani Sumé, tido como Tomás ou Tomé, Chomé ou Chumé” de Meu tio Roseno Bueno bife a cavalo) –  identidade indecidível em Mar Paraguayo, é o brinquedo cão que se destaca na página de trama que desdenha a fábula, é o pequeno cão brinquedo jogo de linguagem construção de suspensão no tempo a verdadeira revolução e não a do tempo linear instantes pontuados (isso, fôlego fatigado, afago de ofego) ausência de presente do moderno desde o greco-romano, não, não, Wilson Buébrio quer o cairótico da suspensão do tempo pontuado e do elixir do gozo aberto – que homem não é um bicho, que bicho não é um homem?, o animal que logo sou – (também cicatriz, sim, costura, o tempo aberto, separação evitável pela linguagem de siameses no devir besta, mas menos) como propõe Giorgio Agamben desde Walter Benjamin e Martin Heidegger. Ah, Friedrich Schlegel, fazer crítica como quem faz criação, prosa como quem faz poema, crônica como quem faz reflexão... Arranjar o caos mantendo-o desregrado. Bueno é prosador? Pensar o Wilson Buego da prosa através de sua autognose da poiesis, entrevistando-o sobre poesia para o pensar aqui em sua prosa.
Bueno um dos meus Laios (na verdade, Laios-mães) e heróis, como Waly Sailormoon e Néstor Perlongher. Meus primeiros poemas impressos, em O Estado do Paraná, em 1988, tinham a vizinhança de Wilson Buúnico, constante naquela página. Eu, guri, escrevia o que lia (e hoje não?), tinha principalmente curiosidade sobre o autor admirado, o homem do Nicolau. Só nos conhecemos, no entanto, dois homens de tugúrio, no lançamento de pequeno tratado de brinquedos (Perhappiness, Curitiba, 1996). Eu havia publicado também pela Iluminuras meu primeiro livro e me apresentei como poeta da editora e como seu leitor. O Wilson poeta deixava a hibridez de gênero, embora continuasse invertido: um volume exclusivo de tankas, bucólico e refinado.  Um tempo depois nos reencontraríamos em sua casa, para uma entrevista. No intervalo, me escreveu uma carta (junho, 96). (irônico sobre seu livro de tankas): Livro longa e sofridamente gestado (de 1992 ao final de 95) é, em minha pobre opinião, o meu melhor livro de poesia, até mesmo porque é e provavelmente seguirá sendo o meu único livro de poesia. Wilson, falseta... Seus poemas hoje são descarregados das gavetas do tugúrio, poemas que ele já vinha soltando aos poucos. Recomendo os intensos poemas na Coyote. Em 1997, liguei e marquei um encontro. Transcreverei em aspas a entrevista. Fora da transcriação da fala de gala que Wilson me concedeu para o Metáfora, meu extinto programa de poesia na Educativa FM, ficam: o áudio da apresentação do programa; a voz do entrevistado como palavra viva e cairótica no seu brejeirismo algo empolado, emissão apaixonada, didática e mesmo artística, para não dizer de seu carinho de Peixes; o meu silêncio mais minha escuta de ofego. O programa foi ao ar sem minhas intervenções, a voz de Bueno ocupando todo o tempo suspenso. Ler no que ele fala da poesia o que se pode ler também na prosa, Wilson centáureo, siamesmo.
Voz de Bueno: Eu sou um incorrigível lírico, não é? Eu sou um incorrigível lírico. É... por mais que eu faça uma literatura de ponta, como dizem por aí, né? Por mais que faça uma coisa assim mais experencial em termos de texto, tal, como é o Mar Paraguayo, como é o Cristal, né? Éééé, mas eu sou essencialmente lírico. Né? Então, é, você pode observar que essa, a leveza também se comunica, não é? com essa, com esse pendor lírico, digamos assim para usar uma expressão até meio parnasiana, né?. (parece irritado, talvez não comigo e minha pergunta, mas por ter usado “uma expressão até meio parnasiana”) Eu gosto, né?, eu gosto dessa coisa dos, dessa experiênc..., dos limiiites dessa leveza, do paroxiiismo às vezes dessa leveza, do tão perigoso paroxismo dessa leveza, não é? Então você veja, há um contraponto realmente até com a poesia digamos, que anda por aí, porque ela às vezes é dura na sua proposta, até geométrica, atéé, né?, é, de exasperação de linguagem, não é? E ela é linda, ela, ela consegue ser linda, no meu entender, quando ela também consegue ser bela, quando ela consegue extrair, disso aí, uuummm, o dom da leveza, da in-sus-ten-tável leveza!
Recita “volta”: chove a chuva fina/lua névoa na neblina/chegamos a Ikedo//a casa de meus pais/céu brincando de brinquedo
Wilson Poiésico faz a poesia progressiva do par Schlegel-Novalis, fragmentária. É que também a prosa teve sua Crise de Verso quando Flaubert, em 1852, pretendeu um livro sobre nada, descolando a prosa da pretensão de um além percebido (verdadeiro, metafísico) a ser representado. Concordando com Marcos Siscar, a crise detectada com esse nome de Crise de Verso por Mallarmé não designa uma interrupção ou um colapso histórico do verso, mas uma irritação do verso, interior ao verso, e sobre ele. Também com a prosa após a carta de Flaubert, irritada em relação ao imperativo da mimese representativa, doxa burguesa. Se a poesia enquanto gênero optou depois de Mallarmé pelo quase verso (do verso livre ao poema em prosa, à linha e à reflexão), a prosa passou a tentar a apresentação para além da representação. Uma irritação da prosa (obrigado, Siscar), uma quase mimese da representação em conluio com uma quase mimese da linguagem. Uma quase trama na mesma carne esponjosa de, O visível e o invisível, uma quase fábula. A prosa se faz pensamento: ordenação de relações entre significantes em busca de uma divinação. Entenda-se: quer-se substituir a progressão lógica, como em Mallarmé que busca uma finalidade pela estrutura musical, em Wilson Bielo, jazzística, fluídica, virgulada no tempo do ofego, querendo que a imagem brilhe com mais e mais camadas até desmaios, pequenas mortes. Wilson Buácido é (o-Eu) Leocádio Prata de Amar-te a ti nem sei se com carícias, título decassilábico de sua homenagem ao velho Machadinho, personagem que de início aponta o provisório como mote para o liberto que faz par com a escritura, morte da esterilização das máscaras sociais da ordem. Existe, porém, a proposição de outras máscaras. As máscaras balinesas, que Artaud ensinou para o Ocidente, em Wilson Proseno são as atualizações significativas (o que o afasta da complacência do mercado de repertórios da pós-modernidade estética) de formas de priscas eras, como o tanka ou o livro que faz o artesanato molecular da linguagem oitocentista ou o livro de viagem rosiana ou o bestiário escorrido – escorreito de atualidade – do medievo para a operação de travestimentos e hibridizações sul-americanas (ivitus, êulikes, nácares, agoalumens, catoblepas, zembras, lazúlis e limosos), política do (des)autor de afirmação do direito e da contribuição perlongadamente portunholada da linguagem cruzada de incaico e negróide e guarani e português e teutônico e brasiguaio e, e, e, :::::, a dobra neobarroca de entre-fronteiras, limes da convivência afirmada – ciente porém da destruição via homogeneização operada pelas forças da ordem eurocentrada –, a deriva nossa latino-americana para o patrimônio (também negando-o, propondo sua explosão ou corrosão) ocidental da literatura. Literatura afirmativa e que finca pé no seu direito expressivo do diverso entre-rios, entre-américas, terra do transe em trânsito nosso antropofágico.
Voz de Bueno: O lance com a leveza, o mais fascinante com a leveza, no meu entender, é que, ele, ela é sempre um projeto de conquista. Você nunca tem a leveza nas mãos, você tá sempre perseguindo, é um jogo de de de, de caça e caçador.Eu acho que a poesia, de uma forma geral, talvez eu diga uma coisa, até meio dura, não sei, mas eu acho que aaa, que a poesia (está mais calmo agora na segunda questão, respira leve, parou de usar os conciliadores e pedagógicos “né?”), de uma forma geral, no Brasil e não fora, e não só no Brasil, fora dele também, tem sido muito vulgarizada, Ricardo, tem sido muito ba-na-li-zada, todo mundo é poeta, sabe?, a senhôra do Rotary é poeta, a mulher que promove o evento da, sabe?, na, na, da Prefeitura, da Secretaria da Prefeitura do não sei daonde, do, o burocrata, é, todo mundo é poeta, quer dizer, houve  uma banalização. Então quando eu me propus a fazer um livro de poesia, eu falei puta merda, como é que eu vou fazer? Um livro de poesia é, eu não posso, a poesia é muito transparente, cara, ela é muito vi-sí-vel, ela não deixa mentir, ela não deixa esconder. Então eu falei, porra, eu tenho que mostrar que eu sou capaz da métrica mais rigorosa, que é a métrica oriental. Eu tenho que mostrar, nesses tankas, eu fiz noventa e nove tankas, que é o número inclusive cabalístico de deus, né? E quando eu cheguei neste noventa e nove, não é? que foi uma experiência muito incrível, falei, bom, agora acabou a minha trajetória poética, lite..., objetivamente poética, estritamente poética, a poesia de um verso  por cima do outro, não é? Então eu esgotei ali. Eu tenho muitos poemas, as pessoas até me cobram, pessoas importantes até, até que eu respeito muito, cobram, elas cobram não é? E eeuu não sei, sabe?, eu, pra mim, o pequeno tratado de brinquedos, porque dentro dessa fôrma e dentro dessa forma, né?, ele, valeu nesse sentido... Eu acho que um livro de poema tem que ser um livro de poema. Você tem que montar o livro, você não pode pegar um monte de livro da gaveta e fazer, fiz um livro. Não é assim. Poesia é uma coisa, muito visível. Muito imediatamente, é, devassada. Sabe, então você tem que ter todas as contenções, você tem que ter todas as, as fôôrrmas, nesse sentido. Até mesmo pra não te dizer, não, ele fez qualquer coisa.
Tio Roseno, Rosemundo, Rosalvo, Rosinante, Rosamante etc. Tal profusão discute a identidade, pois pode marcar tanto a inutilidade da nomeação- identificação, quanto, em termos fenomenológicos, as diferentes intersubjetividades em atuação na construção múltipla de identidades. Labilidade do nomear que se estende numa constante e ritmada explicitação da própria ficcionalidade do texto, apontando para a própria recusa de autoridade do narrador em nomear, em indiciar uma origem a partir de uma “grande narrativa” (nos termos de Lyotard em A Condição Pós-Moderna). Assim, o narrador vai, espaçadamente, veiculando nomes para sua própria narrativa, mostrando como a autoconsciência do texto é oscilante e também híbrida: “fábula ao relento, lenda sem uso, raconto aragem, lenda de viés, história visagem, cuento índio, lenda neblina, história a cavalo, história a esmo, fábula estrela”. Dissonante a mensagem que a escrita manda numa garrafa para um leitor algum-nenhum.
Cito, de Wilson Puído outras missivas: carta amarela de agosto, 97: uma coisa fundamental das ditas narrativas curtas – ritmo ágil, às vezes quase veloz, o que confere ao texto uma graça assim espontânea, “fluídica”. V. sabe – não sou do varejo crítico, sou artesão. E quando no varejo crítico (“Estadão”) não abro mão do artesanato. Carta efusiva de novembro, 98: o saudável caminho de “la malíssima literatura” que é como os argentinos abonam os relatos mais inventivos, em oposição às letras caretas... Viva o Mar Paraguayo, deixa que em causa própria eu diga, e viva.
Voz de Bueno: Eu saí daqui. Eu, foi uma coisa muito, muito engraçada. Mas, não, saí daqui na coisa mais búdica possível, que é, estar in-ten-samente aqui. (o escritor fala sublinhando) O que, não, você sabe que eu não estou fazendo um paradoxo. Sabe, uma coisa dialoga e conversa com a outra. Estar profundamente aqui. Estar profundamente na minha aldeia. Estar profundamente no meu subúrbio, no meu bairro, na minha casa de madeira, no arrabalde. Estar profun... No mundo. É que este livro, é incrível, sabe?, é incrível. Ele não tem uma pretensão estetizante. Ele não tem, ele quer dizer apenas o seguinte: olha como é interessante estar aqui. O melhor lugar do mundo é aquii e agoora. Então, no momento em que eu digo que é o livro mais desprendido meu, é, ao mesmo tempo, o mais egóico, o livro mais egocentrado. É um livro cheio de eus. Sou eu no sofrimento amoroso. O-eu. Não é? O-eu. Na terceira pessoa. O-eu na terceira pessoa. Sou o-eu no sofrimento amoroso, o-eu diante do encantamento, o-eu diante das miúdas coisas do cotidiano. Né? Sempre, mas, a, ao, ao se pretender, essa coisa egóica, ele, se pretendeu, tudo são pretensões, é, atravessar e ir purificando esses eus. Foi uma forma de salvação, também. Então, foi uma forma de salvação. Eu passava o dia inteiro, Ricardo, tamborilando os dedos dentro do ônibus, eu não tenho carro, eu sou um pedestre por convicção, eu gosto de andar a pé, né? Então, eu, passava os dedos tamborilando no, no, sabe, os, os dedos dentro dos ônibus, pra achar, eu vinha o tempo inteiro na rima, e na, na métrica, né? É, Eu-ea-mi-nha-mes-tra Sa-í-mos-ca-çar-cepilhos. E depois essa coisa com a métrica é uma coisa muito séria, Ricardo. Porque vêm imagens e vêm versos únicos, luxuriantes e preciosos! Meu deus do céu, como é que eu...? e você tem que jogar fora. O que eu tenho de verso guardado. Pelo menos jogar fora, não, deixa eu guardar! Quem sabe eu posso usar mais tarde nalguma outra coisa. Porque de repente não tá na rima, é, não tá na métrica. E aí? Não tá na métrica... dançou, já pode desprezar. Dançou. Tira fora.
Recita “exercício escolar”: trinta tigres trêfegos/são mais que três tigres tristes/decora o menino//depois dorme mansamente/e sonha com passarinho
O pensamento pensa através do ritmo, que é um quase, quase forma que já nasce fragmentária, única possibilidade de uma ritualização atualizada dos fragmentos tornados e tomados lidos no tugúrio e ouvidos na abertura, na escuta de um “e para que prosadores progressivos em tempos de penúria?”. Exercendo a negatividade (e é como negatividade que se morre, cão ouriço exposto, mas fechado na estrada de Jacques se há pergunta é prosa Derrida), embora a negatividade seja para o escritor aquela suspensão da autoridade do tempo linear em nome do gozo da leve lava linguagem, leve lava, entrecruzamento de desvios, como escreveu Perlongher sobre Mar Paraguayo, entre o devir animal e o devir mulher, língua menor, elogio do indeterminado, além de lábios lancinados de quem leu muito Manuel Puig, trocando dez mil toneladas de cartas com João Antonio, bas-fond, certo guiñolesco e pitada de pós-Dalton Trevisan de bicho urbano, luxuriante de lixo como o fato de intitular o primeiro livro de Bolero’s bar, assumindo a marafonice, rindo COM o kitsch, a novela e o rádio e o tarô e o Rotary,  ironizando (despersonalizando) COM o melodramático o melífluo filho da cultura de massa, ou da massa retorcida da memória de província, sertão longínquo jaguarapitânico filho da Guerra do Paranavaí e da cultura de entre-rios, portunholizada, devir híbrido e oxímoro, lobisomem (morto) das madrugadas (vivas) como reescreveria hoje Leminski. Elogio da térmita, elogio do riso, tesão pelo chiste e o espirituoso, necessidade prazerosa de seus ditos. Necessidade da ironia, da linguagem do artifício que não ilude, mas que goza em seu encadear vibrátil e paratático: em Meu tio Roseno, a cavalo, permitam-me a ironia do acadêmico, temos a exibição deliberada da trama, ressaltando seus passeios pela intertextualidade, o que torna irônica a própria representação da viagem, feita em busca de uma continuidade marcada pela mistura, isto é, na própria descontinuidade, entre branco, negro e índio, possibilidade que, no entanto, se mostrará fracassada, abortada pela guerra de hegemonia branca num mundo de suposta pureza e convívio edênico. Para além dos dados fabulatórios, estamos aqui num outro ambiente de trama literária, que recusa, ou vê com restrições, a estratégia da transparência realista. Sério? Bueno, com a força do pequeno, brinca. Seu elevado (como pode se perceber pela entrevista) é sempre forçado, o que muitas vezes dá um ar de velharia parnasiana tiazona ao seu artesanato de texturas e personagens. Wilson Esboroando marafônico também. Ou Wilson Bambino então em Os Chuvosos. O poeta é outros.
Voz de Bueno: A literatura é uma coisa autônoma, a literatura é uma coisa fascinante nesse sentido. Não dá. Olha, você pode mentir em moda, você pode mentir... no jornalismo, você pode mentir no cinema, você pode mentir... (...) talvez no teatro. Mas na literatura, Ricardo, jamais conseguirás. Nenhum de nós. Nenhum de nós. Nós seremos desmascarados i-me-dia-ta-mente. É a transparência. É a ponta extrema da expressividade. Já tá dito: é alii e é iisso.
Recita “magrura”: minha meia-irmã/chegou de Piracicaba/ainda mais magra//corremos em seu socorro/de magra voou pro morro 
Voz de Bueno: Isso é real. Isso aconteceu, ah ah ah ah ah.(o ar em A de sua risada: ouçam-no:::::).
Foi uma experiência saudosa ter conhecido Wilson Bueno no auge de seu elogio ao pequeno, ao efêmero das folhinhas álulas do pequeno ipê amarelo no copinho de iogurte porejando brilhos florescentes de fosfenos (na idéia de que “há sempre algo que subverte na transgressão miúda – quieta e nada humilde”, como escreve a respeito da grafitagem urbana em Diário vagau). Talvez por isso eu tenha no meu livro barato optado pela exclusividade da caixa baixa (copiando sem quereres o que ele fizera em pequeno tratado de brinquedos, todo minusculado), caligrafia do ínfimo e do efêmero, mínimo máximo poder da literatura malíssima: Pound citando nec spe nec metu. O poeta não está. É outros, escreveu Perlongher. O-eu. Máscaras balinesas, um gosto pelo ritual como possibilidade de despersonalização: o eu do eu é a aceitação de “se há anão-a” como propõem Schlegel-Novalis. Forma ritualizada, aquela diminuição das possibilidades de incorrer na literatura de confissão (tentando uma confissão da confissão, isso sim): o tanka, o oitocentismo, o livro seriado (bestiário), a marcação despersonalizada de nomes como Sirigaita e Velha em Cristal. Liturgia da revelação, linguagem gnóstica. Narrar o narrar e narrar o narrado, oxímoro, ficções do intervalo, clepsidra que leva do dilúvio de linguagem à fabulação esgarçada, que se faz por uma dinâmica entre reiteração que se vai erodindo a partir de uma primeira entrada em cena (o nome que se vai dilapidando, meta de formose e de morfose) e encadeamento rítmico mítico (da ordem da circularidade e do final deceptivo em Meu tio Roseno, a cavalo) ou esvaziado como em Amar-te a ti nem sei se com carícias: “escrevinhações obsessivas, desditas de amor, passos turvos, águas aéreas, fragmentos diversos, a viva lembrança dos meus”. A memória viva, atualizada no sentido forte da proposta de Walter Benjamin, significativa e refeita, em busca de, através da diferença, atingir (sem nunca atingir, e aí sua beleza e seu convencimento) a unidade de origem, antes de Babel, nos dias de Adão antes da Queda, caidinho na Eva, a memória viva que está atravessada em cada escrito de Wilson Bodeado, mas que não é representada, é construída no entretecimento (enternecido ou contorcido) de sua hibridização de idioletos. Wilson no Diário vagau evoca o vagau, “do fundo de sua natureza lúdica”. O Wilson Buélice de natureza búdica. O peso leve, pequeno cão, anfíbio, fluido, liquefeito, lábil, delineado em raspas de geada (força do fraco), portanto, do neobarroco.
Voz de Bueno: O cinema americano, é, os gibis, os contos de fada, os programas de televisão, ééé, as série dan-tes-cas que tem na madrugada, da Record, com, os, os, o, aaii os exorcismos pra expulsar os demônios, eh eh eh. E são milhares de pessoas sendo exorcizadas ao mesmo tempo, sabe? Éé, o cartaz, o outdoor, eu não desprezo a minha época. Sabe, eu acho que um poeta (em vários dos trechos recentes resmungos e partes de falas minhas são ouvidas no fundo), é, não pode desprezar a sua época, é uma coisa... Imagine se o Machado de Assis esquecesse do tílburi. Ele seria tão falso e tão inverossímil hoje se ele esquecesse do tílburi. Ele não esqueceu do tílburi. Ele não esqueceu do canapé. Não é? Que era o sofá da época. Ele não esqueceu do tílburi, que era a carruagem da época, o meio de locomoção tal. Então eu acho que sabe eu sou, eu acho que influência eu recebo até da tela acesa do computador. E eu vejo a literatura como uma coisa assim mais a flor da pele. Eu acho que literatura tem que ser uma coisa a flor da pele. Temos que ver que é uma, uma atividade limítrofe da bruxaria. E ela só vai valer aí. Ela vai valer, só vai valer enquanto alquimia. Ela só vai valer enquanto transformação, Ricardo. Ela só vai valer enquanto busca profunda da modéstia. Sabe, quando eu digo que, quando eu faço uma escolha, não estou dizendo que a outra escolha deva ser necessariamente descartada. Eu apenas faço uma escolha. Minha escolha é outra. Minha tribo, minha praia é outra. Né? Mas a poesia tem que estar em tudo. A poesia nos ônibus. A poesia devia estar nos guardanapos, não é? Está. Sabe? Onde a poesia estiver tendo vigência, estará tendo vigência a poesia. Muito melhor um mundo com poesia do que um mundo sem poesia, não é? Literal e figurativamente, inclusive.
            Recita “mudança”: minha mãe nas costas/atravessamos aldeias/mais de cem quilômetros//tanto a levamos nos braços/que agora somos aéreos
Voz de Bueno: Ah ah ah Eu gosto deste livro, Ricardo.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Rilke Shake, de Angélica Freitas




a poesia não precisa ficar enrolando. pode ser direta e reta. nem precisa ficar pintando quadrinhos mostrando a corzinha neobarroca pra gente ver como o poeta é bom esteta e conhece o japonismo no impressionismo. e olha que eu amo o neobarroco e o excesso. mas fiquei tão impactado com o tom de “basta o corte preciso, com toques de sujeira aqui e ali, pra disfarçar e tornar mais viva a conversa”. pq não existe conversa geométrica. e é no dialogismo que os poemas de angélica freitas melhor funcionam. ali a chave deles, as vozes que vêm de todos os lados e mesmo do sujeito que não tem unidade, que se esquece e faz questão de frisar isso no poema. que não só se esquece, mas não sabe direito quem é e que, para além disso, queria ser outra coisa, um ser de bigodinho às vezes, outras alguém do harém de stein. falar de poesia como conversa é retomar a ironia sacana que vem de gregório e chega até cacaso ou francisco alvim. mas é uma ironia culta como a de adília lopes. dizer o percurso e percutir o discurso ficam em tensão nos poemas de angélica, tensão que está no próprio título, maravilhoso título que eu queria ter inventado. há esse pop culto que na verdade não conjuga exatamente os pólos e fica numa espécie muito interessante de talvez. sempre achei interessante a arte que põe em circulação, ao mesmo tempo, diferentes programações possíveis de sua própria recepção. então, aquilo que é aparentemente direto, uma linha reta, tem sempre algo de torto, de instável. é aquela velha conversa: “quem quer a voz?” (manoel ricardo de lima, entre outros, e angélica freitas também parece optar assim, toma a posição da ausência de voz: ele o diz, com sua voz, no vídeo de ricardo carvalho para o festival de poesia de goyaz: alguém leia o “estatuto do desmallarmento” e entenderá o que eu digo). raúl antelo tem, num instigante texto (“a fala do fora: uma lida”), uma discussão com a poesia da estabilidade. ele propõe ali, no texto que é prefácio a uma antologia de 6 poetas brasileiros em tradução ao inglês (desencontrários-unencontraries, curitiba: 1995), que o percurso do contemporâneo supõe um sujeito (em agamben o termo seria ‘espectral’) desenraizado, desgeograficado, “um ser que passa por relações, declinações (orfeu, orftu, orfele) catastróficas, flexões ou simples pré-posições de sua fala. Seu lugar é o entre. Sua celebração, o entrudo. A estratégia oblíqua.” em alguns momentos, angélica talvez tenha relaxado demais, e o que era pra ser um acúmulo de desastres familiares ritmado pelo “vende tudo” de tempos neoliberais, tensionando acúmulo e dispersão, encaminha-se, por fim, no poema “família vende tudo”, para um desenlace banal e excessivamente espelhado na realidade (ainda que ficcional) – mesmo a simulação do discurso publicitário fica nisso, simulação. mas são escorregões menores (acho que o problema está nessa opção por narrativas familiares, vejo o mesmo em “a mina de ouro de minha mãe...”: o problema não está no universo familiar, ainda que certamente saturado, mas na abordagem excessivamente condescendente e não mediada). felizmente aquela agilidade na abordagem dos diferentes ritmos do cotidiano culto voltam nos poemas subsequentes. dá pra entender o que eu prefiro em angélica quando surge um poema como “sereia a sério”. de fato, há ainda um certo comedimento em alguns momentos do livro e “sereia a sério”, ao contrário, cospe fogo (acho que essa intensidade que aqui e ali se anunciam possa vir no novo livro de angélica freitas, cujo título, ao menos, insinua isso: um útero é do tamanho de um punho... preciso ler logo). outra coisa que me incomoda é uma espécie de ditadura do humor. sim eu sei, amor, humor. e mesmo o discurso da violência e da rapidez, da instabilidade e da dessincronização das sintaxes as mais fraturadas que invadem os poemas, mesmo esse discurso forte só é forte se dito com paixão, com amor. angélica não quer saber mesmo de tudo aquilo que é escuro nas luzes da existência? alguns poemas de angélica queriam ser canções e “sashimi” é um ótimo representante. alguém que ama “as canções do rádio” e que nunca leu chaucer antes, consegue justamente ser pau-brasil: fala com o concretista e com o repentista. assim, se há uma penúria respondida pelos poemas de angélica, essa não é a do intelectual que fala em nome dos outros, mas a do discurso que recusa a identidade. a política, portanto, comparece nesse outro nível. e é por isso que considero os melhores momentos do livro justamente os dessa explicitação de uma demanda da desrepressão. são os poemas que entram em livros e vidas literárias, gertrude stein, liz e lota. quando a estratégia da máscara é radicalizada, o ganho político é considerável ao desestabilizar a mimesis do espelhismo. MAS CARAMBA. quando chega a página 32, daí em diante, a gente parece estar diante, daí em diante, do melhor livro dos últimos tempos. narrativa, poesia da fossa, humor, sexualidades, intertextualidades, autobiobliografias, tudo explode sem que a forma exploda, e tudo se funde num compósito muito charmoso, extremamente sensual, com toques de agressividade que iluminam páginas inteiras (“lésbicas são um desperdício ele disse/você já ouviu falar em mussolini?”). eu fiquei apaixonado por esse rilke shake da angélica freitas (são paulo: cosac naify; rio de janeiro: 7letras, 2007) no miolo do livro: poemas como “o que é um baibai?” são sensacionais. gosto de poemas como “treze de outubro”, o desolamento combina com angélica e certa atitude passiva em relação à linguagem, hesitando em prosseguir, em encetar narrativa, ganhando a linguagem uma circularidade muito afeita à escrita de gertrude stein: acho que seria um caminho legal para angélica explorar mais (*estou fazendo a leitura de rilke shake sem conhecer o livro novo da poeta). “(não consigo terminar este poema).” é de uma simplicidade cortante e diz muito do que prefiro em relação às narrativas prontas com as quais me incomodei. as narrativas prontas também não têm o ar sacana de uma (quase) ladra de livros (e de citações, e de vozes), de uma moleca que fumava escondido, de alguém de bigodinho, baseados no bolso e que cola chicles no banco de alguém. um humor mais ferino se insinua aí, menos apaziguador, que rima inglês e português com falta-de-caráter macunaímica, sem mímica, cara esperta de alguém que só foi “rir no elevador”. rsrsrs

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Musga, de Mário Domingues



Musga é um livro tenso. A tensão que Mario Domingues impõe à criação poética é a indecidibilidade proposital entre escrita e reescrita (ou tradução). O procedimento é de extrema subversão dos conceitos de originalidade e de gênio, tão caros aos lugares-comuns da poesia brasileira. A reescrita como processo operativo impõe a tensão através de três movimentos: reescrita de um poema de seu outro livro, paisagem transitória; reescrita por amplificação de poemas; tradução de autores clássicos. Mas essa tensão é intestina, não vem à luz de imediato se olhamos superficialmente os poemas concisos, de dicção clássica e temática contemplativa com que Mario Domingues abre seu livro. A arte clássica de Domingues parece querer uma clareza suave. A concisão, magrura da síntese, quer afastar qualquer expressionismo. O poeta está-no-mundo para esculturas precárias, que tendem a um tanto de dissolução oriental, esvaziamento como resultante da construção pausada e pensada, que parece já se apresentar como esvaecimento do eu. O zen não conclui e é uma das forças imprevistas diante do que parece ser um projeto de poesia em que o clássico latino tem proeminência. Ou não. A ausência, marca deceptiva dos finais de poemas de Musga, segundo livro de Domingues, pode estar imbricada já no projeto dessa arte escrita aparentemente no osso da linguagem.
Os poemas iniciais projetam um bestiário suave, de organização atmosférica: a reescrita aqui é a das poéticas do olhar. O estilo quer capturar o movimento de formas da natureza: lince, alce, andorinhas, gaivota, beija-flor, percevejo, lesma, gato, goiabeira, gelo, fonte; tudo na primeira parte de Musga é objeto de uma contemplação onde o esforço de forma – sintética, fluida – consegue ser apagado pela obtenção da leveza. Destaco os versos da metamorfose dinâmica do segundo poema: “As andorinhas,/todas várias juntas,/desenham outra andorinha,//ou uma tulipa,/que emerge do chão/e foge da chuva.” Os ricos dois últimos versos, de fato, não terminam o poema, deixando o vazio (a fuga) como conclusão para o fluir de formas desenhado pelas andorinhas. Se no poema famoso de João Cabral de Melo Neto, os galos teciam pelo canto conjunto uma manhã, aqui não há resultante, as andorinhas são a mutação de formas, captadas na sua própria dança interna de figuras: a tulipa (andorinhas) que emerge/foge do chão/da chuva. O poema não é um chamamento humanista, ele submete-se a ser um configurador de sensibilidade para a dança metamórfica da percepção. A poesia do livro expressa uma força da modéstia, o que contribui para a autonomia do poético (sem a ambição de poesia como veículo discursivo). Trata-se de uma circularidade (Domingues tenta recusar arestas e vertigens, embora elas atuem como sintoma) operada pelo fragmento amaciado: o lince não devora o alce, as andorinhas são metamorfoses, a gaivota “vai e volta”, o beija-flor brilha numa piscadela do observador, o verde verte psicodelicamente do percevejo. A mutação é sempre sem história, ela é quase um milagre: “A goiabeira/(como se descolasse/de si uma serpente/seca/ou só sua carcaça)/descasca.” O poeta se vê obrigado aos símiles no processo milagroso do descascar da goiabeira. Há algo de mofo, fungo, musgo. Um tempo lesma, que de tão lento pode expressar melhor o instante, seu relâmpago, seu coração palpitante. Também uma recusa da fala, um alcance do silêncio dos seres: de um “céu-ressaca”, fórmula também da ordem da condensação vibrátil.
Em “Paisagem transitória revisitada”, Domingues reescreve um poema de seu primeiro livro (paisagem transitória), iniciando o projeto interno de reescrita que atravessa Musga: o procedimento agora é o do corte, sendo o resultado aquilo que o tempo entre os dois livros depurou na concepção de poesia do escritor. O poema é reduzido à metade. Algumas mudanças, inversão de alguns versos, eliminando algo de discursivo da primeira versão. Tudo depurado para um único foco: a ondulação das dunas, semoventes. Novamente, porém, como nos poemas já comentados, as dunas são reduzidas, no último poema, ao mais molecular da duna, seu grão de areia grávido de cristal, repentina e violenta mudança de foco (o átomo). De fato, talvez não consiga ser tão arredondada a arte de Mario Domingues: arestas irrompem travando o gozo desinteressado, da arte concebida como o prazer ekfrásico. Um exemplo dessas arestas é o súbito corte no final desse poema revisitado, em que se parte da ondulação da paisagem de larga escala para a imobilidade do grão mínimo; outro é o “corte diagonal da sombra” que faz desaparecer a lesma lenta e ondulante de outro poema. De fato, a tensão curva e reta aparece no próprio projeto gráfico do livro, particularmente na capa, na diagramação do título (arestas, M e A – esta letra, deitada, à maneira de uma seta –, nas pontas, e os redondos U, S e G, meio que encavalados no centro da palavra). Na contracapa, por sua vez, enquanto o poema fala em “insinuante e sinuosa”, os grafismos desenhados explicitam vértices e arestas. Batalha interna, incorporação naturalizada da contradição entre curva e reta.
As duas partes seguintes do livro, “Relâmpagos” e “Noturnos”, explicitam outra tensão: parece haver uma consciência de que a escrita é quase impossível. Persiste a secura tensa nas duas partes, só rompida em “A vinha da baleia”, de resto, uma bela anomalia em seu gozo da dobra e da dilatação sonora num livro de opção pelo descarnado, uma possibilidade de respiro melódico num livro de leveza “bossa nova” austera. Noutro poema, embora haja “respiros fortes”, a corporalidade volta ser reduzida a “uma ossada de sonhos”. Em “Relâmpagos”, um mundo que gira por si mesmo, num vazio da rotina cuja manifestação é vibrátil: “peixes faca/feixes prata”. Em “Noturnos”, porém, os verbos anunciam a presença de um corpo: “abre/e vibra/a carne de fogo.” O poeta está ali, afinal (“Sinto o cheiro:”). Os poemas parecem seguir uma respiração corporal, contraindo-se e dilatando-se. O processo é visível nos poemas das páginas, talvez as melhores do livro, 49-51 e 53-55. O segundo poema de cada conjunto dessas páginas amplifica e dilata o primeiro poema, como se o reescrevesse, operando palimpsestos, anunciando, portanto, as traduções com que Domingues fecha seu livro.  
Luis Dolhnikoff, em texto de apresentação, aponta o caráter contrastante das paisagens descritas em Lucrécio com relação às fanopeias de Domingues (insinuando, assim, outra reescrita): paisagem clássica de nuvens retumbantes e paisagem cansada do poeta contemporâneo. Além disso, fica mais nítido, com as traduções, o projeto de despersonalização como condição do poético presente no texto de Domingues. São traduzidos poemas de Catulo e Lucrécio. Nos poemas do primeiro, do Cancioneiro de Lésbia, as opções de Domingues tendem à síntese e a uma urgência do oral que as traduções de Paulo Sérgio de Vasconcellos não têm. Os poemas ganham em agilidade, atualizados para a concisão de Mario Domingues. Nos de Lucrécio, a tensão retorna sob a forma de poemas que se querem, simultaneamente, proposições de ciência e obras de arte. O que reitera o caráter extremamente vivo de Musga, uma vez que o transe de matéria e linguagem e o trânsito entre escrita e reescrita mostram que a ossificação e o mínimo (a melancolia, por exemplo, é rebatida pelos poemas de Catulo) não são a única marca do livro (aquela “unidade ultra discreta” apontada por Dolhnikoff). Deve-se atentar, além disso, para a saudável proposta de fazer equivaler criação e tradução, em dia com a eliminação do expressionismo. O livro faz sentido, portanto, como projeto de constelação de tensões, potencializado pelas várias partes e pelo hibridismo que traz a presença de algumas traduções: é naquela nebulosa tensão interna que os poemas trazem seu maior valor.   

Ficha: Musga - Mário Domingues - Primeiro de Maio - PR: Editora Mirabilia, 2010.