Perguntas, hipóteses: poemário
para cegos, num braile sedimentado. Só funciona se qualquer leitor for, cego,
raspando lixas heterogêneas. Talvez proponha uma irritação, de sentido, de
sedimentação, de sede, da sede. Uma astúcia do sujo, o sal no mel do mar. Uma
casa de pedra, cave de ave no vão do vale, nave de espera. A irritação de uma
vírgula, não escultura, erosão que se transforma em capa, parangolé de neblina
e granizo. Que essa irritação se faça na carne da capa, ou na articulação das
derivas elocutórias, talvez, sim, me encante, ainda que espere do livro agora
fechado contrariedade para com o solidificado que repousa na superfície
reificada do mundo. Que o objeto possa em integridade e limitação dizer.
Desrespeito o livro e pulo a
apresentação Caligrafia dúbia existência,
do poeta Claudio Daniel (pseudônimo). Voltarei a ela no fim desta leitura.
Primeiro livro de Joana Corona, crostácea, de 2011 (Ed. Medusa), na
coleção dirigida por seu tio, Ricardo Corona. Também meu livro saiu por ali.
Joana e eu estivemos num mesmo lançamento.
Capa porosa, crostosa, suscetível
decerto ao esfarelamento. Não pele, pele de pedra, prosa?
(...) Volto ao livro duas semanas
depois, será o mesmo pra mim? Folheio e imagens aparecem, um pássaro, um
pássaro esfacelado, pedras, musgos, praia, onda, uma sucessão de manchas em
preto e branco vazando como luz do livro opaco e áspero. Cleverson Luiz Salvaro
andou por aqui.
Joana Corona, ‘poeta e artista
visual’. Objeto-livro, e poemas? A eles: uma epígrafe de Hilda Hilst nos repõe
no mundo do texto, ainda que de um texto particular, demandando ‘atmosfera’ e
‘contenção’, operação portanto paradoxal, entre o difuso e o certeiro.
Abstrações corpóreas, nesse sentido, é título perfeito para aquela
operação paradoxal enunciada na epígrafe de Hilst. Entra-se num mundo não
propriamente de corpos, mas de duas operações distintas, ainda que aqui
mescladas de modo indiferente, a da fusão e a da disseminação. Corpos fundidos
ou disseminados são por definição um atentado aos limites.
A prosa tende tanto ao fluxo como
ao entrecortado. Há uma observação do ritmo ainda tateante. O plano do
pensamento é superior ao da textura rítmica. O que conta, porém, é o modo como
Joana Corona cerca seu objeto. Um ranço ainda do romântico, como coincidências
com Manoel de Barros e sua poesia natural. Tendendo porém à pedra, ao rastro
que nela já não é rastro de caramujo, mas pedra-rastro:
“deserto que contém o entrecorpos
(e eles próprios, pela dobradura). deserto em si – corpo expandido, pele
salina. esfoliada e árida, porosa. água pouca, e arsênico. aquífero de fósseis
e pedra arenosa, do Saara. fosse como somos a cor seria azul e a extensão até
perder-se.
areia agregada à pele oleosa,
fundida por entre orifícios. absorvida. (além do que da pele é superfície. além
do que do corpo é corpo.” (paisagem
alargada)
Um afeto orgânico curiosamente
trágico, da ordem do elevado quase, à maneira dos distanciamentos neobarrocos.
Os amantes em procedimento de paisagem. Ou melhor, de ‘atmosfera’. Talvez se
demandasse uma outra precisão, porém. É que há enfraquecimentos na torsão do
discurso em muitas passagens. Ameniza-se em prosa, não na forma prosa, mas no
senso comum do relato, justamente em paisagem de filiação subjetivista, como no
poema migalhas ou no último poema
dessas Abstrações corpóreas. Um agrupamento
quase forçado une tais textos à força poética do início do livro. Infelizmente,
aqui, os corpos voltam ao limite e ao descritivo, ainda que por via negativa:
“à própria sorte”, ou “fracos também não é exatamente o que se diria deles.”
A segunda parte do livro se chama
quadratura mínima, e, de certo modo,
mantém na baixa rotação dos dois poemas supracitados a intervenção na
linguagem. Um ambiente quase de diário se instaura nessa prosificação da prosa
poética. Mas dois poemas repõem a estranheza rica da poesia de Corona:
arrastamo-nos numa cidade cuja quadratura vem borrada. O texto abandona a
poesia da emissão em nome de um apalpamento do visível, mas não do visível da
representação e sim do visível moderno, aquele instituído a partir de Paul
Klee. Forma e fundo não é uma distinção mais possível. Também essa operação de
inscrição tem algo de rasura, com grande amplitude icônica: "apaziguar
nervos quantos atiçamentos urbanos, car ca coceiras em toda pele, zum zum
bizeiras até a surdez, partipeirices imagéticas fulgentes, dançando desnudas.
Seduzido (ou insistente) em encontrar ponto de fluidez ou, talvez,
convergência.”
decerto desierto: quase pequena peça, contínua, excessivamente
amarrada por um Eu que trava a presentificação lírica. ‘Eu é um outro’ seria a
lição rimbaudiana a ser aplicada aqui. A balança pesa muito de um lado. No
entanto, disse peça acima, pois há o fluxo, o som que engata e se arrasta num
balé de corpos – mocinha francesa do início do século e aquele que não há,
quase, fantasma, o outro. E o poema, pois um poema só é o que há nessa parte,
seria o de lida linda num sarau de primavera.
Ainda não: o que diz o livro? Uma
ideia de prosa poética, sim, e uma forma de apresentação muito visual, rica
quando o desenho se esgota em mancha ou se amplia como babel sintática, um
borges de cegueira diferente, de uma cegueira visionária, incendiada, mas
catalogada, noutros poemas, nas marcas do relato jovem de umas nove e meia
semanas de amor, com cara de muito um diário. O projeto encanta, mas a fatura
não está sempre à altura. Noutras, porém, o projeto ainda é pouco, e o poema
alcança mais, e mais, e mais.
No meio do livro está passarás, longa série de poemas curtos.
Uma tranquilidade no dizer entremeado de penas e pernas, pássaros e passos: o
pássaro essencial faz o corpo do amor visível, como se um céu se desvendasse no
voo. Elipses, nada do raro, quase. Uma tranquilidade no dizer, rápido, de um
rastro rápido, como o toque, a penetração, sempre, a ausência de fundo, uma
linha que se acompanha, sem fraqueza, enfim, de relato. Bravo. O curto lhe cai
bem, Joana.
Ambiente mais denso o de 5, a parte seguinte do livro. Corpo
vazado, a plástica tátil de Corona amalgama-se num encaminhamento pongeano. Depois,
um lindo poema de amor (‘contracarne’). Mas ‘lindo’ não é poético, pode-se
dizer. A evocação da carne, do diário do relacionamento, as idas e vindas dos
corpos, desfazem o nó da percepção poética, prosificam o objeto. Mas talvez eu
me equivoque e o tom de canção (‘como peixe para ser’) acentue-se
voluntariamente, de modo mesmo a constituir uma rítmica. E o que encaixa e
desencaixa essa sintaxe ondulada é a metamorfose: o que é escrita é o corpo que
é o pássaro e o peixe à luz da água. A poesia que não pode ficar parada, a
pegada boa de Joana Corona. Destemerosa.
Perceptível a construção de um
furor numa perspectiva de esmagamento e reificação. Girar o corpo em falso,
também, como um lugar social pantanoso, o do confinamento do amor. Um campo de
concentração do amor. Que não cabe na evidenciação da poeta. Algo que nela,
dentro do texto, está por detrás. Canta-se um lugar possível, uma fresta de
paisagem. A experiência interna dos corpos em procedimento de disseminação redime
da reiteração? O sufoco de água e página diz que não: fotos de espuma como os
desenhos carbonários.
O poema sugere a noite como o
lugar da poesia, numa cidade que abandonou os poetas às frestas do capital. O discurso
político embanana a apreensão litúrgica do estético: “segredos são confiados e
destrancafiados de sua polidez anônima.” Soa sem destinação a suposta palavra
social, destoa do eixo escamoso-poroso do livro. E é ainda o poeta sem lugar
social, “na cidade esquecida de mim” ou “a boca do negrume, nos becos da
cidade-venérea”
Os objetos planam sem situação.
Um livro, um corpo, um pássaro: corporificados. Sem o contrapeso de uma
consideração. Ficam mais livres, lógico. O agora, a fluidez e sua perda. Recusa
em dizer o mesmo, ainda que sim, muitas vezes, por outras vias. O corpo, a
coisa, o objeto, seus escuros e reentrâncias, às apalpadelas, são lugares mais
seguros, se a cidade é “ordinária e mundana. animalesca.”
A palavra confinada, portanto,
não tanto aos jogos de linguagem, mas à reiteração da plástica, só logra
dimensão quando adentra o metamórfico, como Joana consegue muitas vezes,
rodando o encantamento num rol de instâncias.
Salta a história numa página,
como bastarda ou criança perdida. Um susto de cristianismo, política, América e
o pó do tempo. Como outra Corona, rebatendo o esgarçamento do cotidiano e a
reificação da perspectiva plástica. De novo, porém, a ausência de lugar social
da poesia corrói a intenção, falindo-a numa “lírica deriva”.
O salto fora do texto,
entretanto, pela própria lógica do confinamento do dizer poético, restringe-se
à página 97. O que não é ruim, pelo contrário. O ambiente de Joana é da
manipulação plástica da percepção. Nem canção, nem discurso. Um ar de
vaudeville, mesmo assim, quase dançandinho: “balança e dança. me quer, mal. leva
e traz. outra, uma mão leva (lava) a. bem, eu te quero.”
A vociferação permanece, apesar
de tudo: “foge de tua mediocridade, cidadão de morna vida-volátil, corda com
essa quentura que te toca-treme e trucida a tua pacífica passividade.” Se não
me engano, o convite é à própria poesia. A própria experiência da negatividade
no detalhamento da vida dos corpos de linguagem, porém, poderia ela mesma
realizar a operação de fissura, desde que o deslizamento não cessasse nem
cedesse ao discursivo. Quase como se a poeta não confiasse na própria sugestão
perceptiva enquanto ato cívico e ético possível ao poema.
O livro termina com “e a morte
calça-te antes de morreres. nos desvãos da tua cegueira.”
Mas eu devo ainda a leitura do
Claudio Daniel. Acho que coincidimos na ideia de uma perspectiva metamórfica no
livro em questão. Ele fala em síntese, taumaturgia, alquimia, neologização,
fusão, porosidade, além de ressaltar a caracterização plástica como uma ação de
quebra de molduras, a operação da poesia na prosa, por exemplo.
Vejo problemas na caracterização
da poesia de Joana como uma ruptura extrema com a discursividade do cotidiano.
Há, sim, problemas de personalização excessiva em crostácea, o que não desmerece uma voz já configurada em um campo
de pesquisa também já bastante delimitado: a apreensão plástica da experiência
e mesmo de sua ausência. Discordo, portanto, dessa caracterização de onirismo, talismã,
“este é um livro de enigmas”, proposta por Claudio Daniel. Vejo em Joana Corona
muito mais sobriedade construtiva (cortes sintáticos, elipses, cessação da
linha) e quase nenhuma concessão ao barroquismo professado pelo próprio crítico
(talvez sim na primeira parte do livro, mas não como estrutura estrurante). A
metamorfose não é operação contrastiva, nem “Joana Corona é feiticeira”.
A projeção de um enquadramento (a
magia da poesia), de resto lugar-comum quando se abordam poetas mulheres, não
fala portanto do que o livro fala e do que ele propõe como leitura do mundo e
da poesia. e crostácea não diz
pouco.
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