quinta-feira, 19 de setembro de 2013

crostácea: Joana Corona



Perguntas, hipóteses: poemário para cegos, num braile sedimentado. Só funciona se qualquer leitor for, cego, raspando lixas heterogêneas. Talvez proponha uma irritação, de sentido, de sedimentação, de sede, da sede. Uma astúcia do sujo, o sal no mel do mar. Uma casa de pedra, cave de ave no vão do vale, nave de espera. A irritação de uma vírgula, não escultura, erosão que se transforma em capa, parangolé de neblina e granizo. Que essa irritação se faça na carne da capa, ou na articulação das derivas elocutórias, talvez, sim, me encante, ainda que espere do livro agora fechado contrariedade para com o solidificado que repousa na superfície reificada do mundo. Que o objeto possa em integridade e limitação dizer.
Desrespeito o livro e pulo a apresentação Caligrafia dúbia existência, do poeta Claudio Daniel (pseudônimo). Voltarei a ela no fim desta leitura.
Primeiro livro de Joana Corona, crostácea, de 2011 (Ed. Medusa), na coleção dirigida por seu tio, Ricardo Corona. Também meu livro saiu por ali. Joana e eu estivemos num mesmo lançamento.
Capa porosa, crostosa, suscetível decerto ao esfarelamento. Não pele, pele de pedra, prosa?
(...) Volto ao livro duas semanas depois, será o mesmo pra mim? Folheio e imagens aparecem, um pássaro, um pássaro esfacelado, pedras, musgos, praia, onda, uma sucessão de manchas em preto e branco vazando como luz do livro opaco e áspero. Cleverson Luiz Salvaro andou por aqui.
Joana Corona, ‘poeta e artista visual’. Objeto-livro, e poemas? A eles: uma epígrafe de Hilda Hilst nos repõe no mundo do texto, ainda que de um texto particular, demandando ‘atmosfera’ e ‘contenção’, operação portanto paradoxal, entre o difuso e o certeiro.
Abstrações corpóreas, nesse sentido, é título perfeito para aquela operação paradoxal enunciada na epígrafe de Hilst. Entra-se num mundo não propriamente de corpos, mas de duas operações distintas, ainda que aqui mescladas de modo indiferente, a da fusão e a da disseminação. Corpos fundidos ou disseminados são por definição um atentado aos limites.
A prosa tende tanto ao fluxo como ao entrecortado. Há uma observação do ritmo ainda tateante. O plano do pensamento é superior ao da textura rítmica. O que conta, porém, é o modo como Joana Corona cerca seu objeto. Um ranço ainda do romântico, como coincidências com Manoel de Barros e sua poesia natural. Tendendo porém à pedra, ao rastro que nela já não é rastro de caramujo, mas pedra-rastro:
“deserto que contém o entrecorpos (e eles próprios, pela dobradura). deserto em si – corpo expandido, pele salina. esfoliada e árida, porosa. água pouca, e arsênico. aquífero de fósseis e pedra arenosa, do Saara. fosse como somos a cor seria azul e a extensão até perder-se.
areia agregada à pele oleosa, fundida por entre orifícios. absorvida. (além do que da pele é superfície. além do que do corpo é corpo.” (paisagem alargada)
Um afeto orgânico curiosamente trágico, da ordem do elevado quase, à maneira dos distanciamentos neobarrocos. Os amantes em procedimento de paisagem. Ou melhor, de ‘atmosfera’. Talvez se demandasse uma outra precisão, porém. É que há enfraquecimentos na torsão do discurso em muitas passagens. Ameniza-se em prosa, não na forma prosa, mas no senso comum do relato, justamente em paisagem de filiação subjetivista, como no poema migalhas ou no último poema dessas Abstrações corpóreas. Um agrupamento quase forçado une tais textos à força poética do início do livro. Infelizmente, aqui, os corpos voltam ao limite e ao descritivo, ainda que por via negativa: “à própria sorte”, ou “fracos também não é exatamente o que se diria deles.”
A segunda parte do livro se chama quadratura mínima, e, de certo modo, mantém na baixa rotação dos dois poemas supracitados a intervenção na linguagem. Um ambiente quase de diário se instaura nessa prosificação da prosa poética. Mas dois poemas repõem a estranheza rica da poesia de Corona: arrastamo-nos numa cidade cuja quadratura vem borrada. O texto abandona a poesia da emissão em nome de um apalpamento do visível, mas não do visível da representação e sim do visível moderno, aquele instituído a partir de Paul Klee. Forma e fundo não é uma distinção mais possível. Também essa operação de inscrição tem algo de rasura, com grande amplitude icônica: "apaziguar nervos quantos atiçamentos urbanos, car ca coceiras em toda pele, zum zum bizeiras até a surdez, partipeirices imagéticas fulgentes, dançando desnudas. Seduzido (ou insistente) em encontrar ponto de fluidez ou, talvez, convergência.”
decerto desierto: quase pequena peça, contínua, excessivamente amarrada por um Eu que trava a presentificação lírica. ‘Eu é um outro’ seria a lição rimbaudiana a ser aplicada aqui. A balança pesa muito de um lado. No entanto, disse peça acima, pois há o fluxo, o som que engata e se arrasta num balé de corpos – mocinha francesa do início do século e aquele que não há, quase, fantasma, o outro. E o poema, pois um poema só é o que há nessa parte, seria o de lida linda num sarau de primavera.
Ainda não: o que diz o livro? Uma ideia de prosa poética, sim, e uma forma de apresentação muito visual, rica quando o desenho se esgota em mancha ou se amplia como babel sintática, um borges de cegueira diferente, de uma cegueira visionária, incendiada, mas catalogada, noutros poemas, nas marcas do relato jovem de umas nove e meia semanas de amor, com cara de muito um diário. O projeto encanta, mas a fatura não está sempre à altura. Noutras, porém, o projeto ainda é pouco, e o poema alcança mais, e mais, e mais.
No meio do livro está passarás, longa série de poemas curtos. Uma tranquilidade no dizer entremeado de penas e pernas, pássaros e passos: o pássaro essencial faz o corpo do amor visível, como se um céu se desvendasse no voo. Elipses, nada do raro, quase. Uma tranquilidade no dizer, rápido, de um rastro rápido, como o toque, a penetração, sempre, a ausência de fundo, uma linha que se acompanha, sem fraqueza, enfim, de relato. Bravo. O curto lhe cai bem, Joana.
Ambiente mais denso o de 5, a parte seguinte do livro. Corpo vazado, a plástica tátil de Corona amalgama-se num encaminhamento pongeano. Depois, um lindo poema de amor (‘contracarne’). Mas ‘lindo’ não é poético, pode-se dizer. A evocação da carne, do diário do relacionamento, as idas e vindas dos corpos, desfazem o nó da percepção poética, prosificam o objeto. Mas talvez eu me equivoque e o tom de canção (‘como peixe para ser’) acentue-se voluntariamente, de modo mesmo a constituir uma rítmica. E o que encaixa e desencaixa essa sintaxe ondulada é a metamorfose: o que é escrita é o corpo que é o pássaro e o peixe à luz da água. A poesia que não pode ficar parada, a pegada boa de Joana Corona. Destemerosa.
Perceptível a construção de um furor numa perspectiva de esmagamento e reificação. Girar o corpo em falso, também, como um lugar social pantanoso, o do confinamento do amor. Um campo de concentração do amor. Que não cabe na evidenciação da poeta. Algo que nela, dentro do texto, está por detrás. Canta-se um lugar possível, uma fresta de paisagem. A experiência interna dos corpos em procedimento de disseminação redime da reiteração? O sufoco de água e página diz que não: fotos de espuma como os desenhos carbonários.
O poema sugere a noite como o lugar da poesia, numa cidade que abandonou os poetas às frestas do capital. O discurso político embanana a apreensão litúrgica do estético: “segredos são confiados e destrancafiados de sua polidez anônima.” Soa sem destinação a suposta palavra social, destoa do eixo escamoso-poroso do livro. E é ainda o poeta sem lugar social, “na cidade esquecida de mim” ou “a boca do negrume, nos becos da cidade-venérea”
Os objetos planam sem situação. Um livro, um corpo, um pássaro: corporificados. Sem o contrapeso de uma consideração. Ficam mais livres, lógico. O agora, a fluidez e sua perda. Recusa em dizer o mesmo, ainda que sim, muitas vezes, por outras vias. O corpo, a coisa, o objeto, seus escuros e reentrâncias, às apalpadelas, são lugares mais seguros, se a cidade é “ordinária e mundana. animalesca.”
A palavra confinada, portanto, não tanto aos jogos de linguagem, mas à reiteração da plástica, só logra dimensão quando adentra o metamórfico, como Joana consegue muitas vezes, rodando o encantamento num rol de instâncias.
Salta a história numa página, como bastarda ou criança perdida. Um susto de cristianismo, política, América e o pó do tempo. Como outra Corona, rebatendo o esgarçamento do cotidiano e a reificação da perspectiva plástica. De novo, porém, a ausência de lugar social da poesia corrói a intenção, falindo-a numa “lírica deriva”.
O salto fora do texto, entretanto, pela própria lógica do confinamento do dizer poético, restringe-se à página 97. O que não é ruim, pelo contrário. O ambiente de Joana é da manipulação plástica da percepção. Nem canção, nem discurso. Um ar de vaudeville, mesmo assim, quase dançandinho: “balança e dança. me quer, mal. leva e traz. outra, uma mão leva (lava) a. bem, eu te quero.”
A vociferação permanece, apesar de tudo: “foge de tua mediocridade, cidadão de morna vida-volátil, corda com essa quentura que te toca-treme e trucida a tua pacífica passividade.” Se não me engano, o convite é à própria poesia. A própria experiência da negatividade no detalhamento da vida dos corpos de linguagem, porém, poderia ela mesma realizar a operação de fissura, desde que o deslizamento não cessasse nem cedesse ao discursivo. Quase como se a poeta não confiasse na própria sugestão perceptiva enquanto ato cívico e ético possível ao poema.   
O livro termina com “e a morte calça-te antes de morreres. nos desvãos da tua cegueira.”
Mas eu devo ainda a leitura do Claudio Daniel. Acho que coincidimos na ideia de uma perspectiva metamórfica no livro em questão. Ele fala em síntese, taumaturgia, alquimia, neologização, fusão, porosidade, além de ressaltar a caracterização plástica como uma ação de quebra de molduras, a operação da poesia na prosa, por exemplo.
Vejo problemas na caracterização da poesia de Joana como uma ruptura extrema com a discursividade do cotidiano. Há, sim, problemas de personalização excessiva em crostácea, o que não desmerece uma voz já configurada em um campo de pesquisa também já bastante delimitado: a apreensão plástica da experiência e mesmo de sua ausência. Discordo, portanto, dessa caracterização de onirismo, talismã, “este é um livro de enigmas”, proposta por Claudio Daniel. Vejo em Joana Corona muito mais sobriedade construtiva (cortes sintáticos, elipses, cessação da linha) e quase nenhuma concessão ao barroquismo professado pelo próprio crítico (talvez sim na primeira parte do livro, mas não como estrutura estrurante). A metamorfose não é operação contrastiva, nem “Joana Corona é feiticeira”.
A projeção de um enquadramento (a magia da poesia), de resto lugar-comum quando se abordam poetas mulheres, não fala portanto do que o livro fala e do que ele propõe como leitura do mundo e da poesia. e crostácea não diz pouco.

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