terça-feira, 22 de outubro de 2013

Crítica de André Dick aos poemas de Desencantos Mínimos (Iluminuras, SP, 1996).

* O link para o artigo original, publicado na Revista IHU, 281:
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2316&secao=281



Invenção - Ricardo Pedrosa Alves
Por André Dick
O poeta Ricardo Pedrosa Alves nasceu em Governador Valadares (MG), em 1970. É graduado em Sociologia, pela Unicamp e, atualmente, faz mestrado em Teoria da Literatura, na UFPR (Universidade Federal do Paraná). Seu primeiro livro se intitula Desencantos mínimos (São Paulo: Iluminuras, 1996) e seu segundo, Barato, escrito em Curitiba entre 1996 e 2008, será lançado pela editora Medusa.
Também publicou poemas nas revistas Monturo (SP), Inimigo Rumor (RJ), A Cigarra (SP) e Oroboro (PR), e resenhas no Diário Catarinense e no Correio Braziliense. Trabalhando com uma sonoridade e imagens inusitadas, uma das qualidades da poesia de Ricardo está em justamente lidar com a linguagem como algo a ser construído, reinventado, mesmo que para isso precise subverter a sintaxe e incorporar mensagens enigmáticas, muitas vezes sem sentido verossímil. É justamente uma espécie de “surrealismo da linguagem” – sem seguir preceitos do movimento surrealista – que faz com que a poesia de Ricardo seja tão especial no cenário atual da poesia brasileira.
Nos poemas de Desencantos mínimos, Ricardo alia uma expansão do verso e uma concentração de idéias, em poemas tanto curtos quanto mais longos. Mesmo uma observação que poderia ser comum – sobre os olhos –, em “Nós no escuro já pós brilhos”, mostra algo que parece revelar outro campo de linguagem: “de um modo que / quedasse sem / blandícia / suplícios / / stella by starlight / / deu-se em nós, / mais lume e / plena de alva. / / E lá: agora glórias / se nos afloram / diariamente? / / respostas com cinzas, faíscas: / em persistência entretanto nos olhos: / melíflua medusa de solares: miles”. Ao mesmo tempo, há uma metalingüística, em “Sempre”: “vocês podem me abandonar na estrada / em alta velocidade, / palavras ? sempre que espelhos múltiplos / embaçados / é preciso recuperar um prazer / do espiralar um mundo de certezas / (antes que coalhem) / onde o futuro não seja cabide rotineiro / hoje”. Mas é na última estrofe desse poema que a metalinguagem é mesclada ao cotidiano e à linguagem do dia-a-dia: “a palavra qualquer chegada em casa / no desconhecido dessa busca à semelhança, / quando nau rumo do mal, / diz versos tipo nunca toquei beleza alguma” – como se o poeta inserisse uma fala na rotina trazida do poema, na expressão coloquial “tipo nunca toquei beleza alguma”.
Observação sobre o cotidiano, a arte e o universo feminino
Ricardo Pedrosa Alves transforma sensações comuns numa linguagem tão expansiva quanto controlada, delimitada. Suas imagens são bastante raras: “cavalo de febres / espirrando transparecendo explodindo / vidro da vida os pulmões” (em “Continuamos lindos escorpiões”); “no calor onde o vermelho explode na língua, / a minha enfim boca”; “daquilo que é grelo de brotação / do próprio peito / / alumbra / oscila / é o lume tanto quanto perfuma” (em “Agora fogo mordido”). Outro elemento é a descrição do feminino, de maneira extremamente original, em “Inevitável mais desejos”: “Vida de escandir ondas nos vincos dos dedos / e ilíadas para a pele / Ser na berlinda entrepistas / de morenas taísas pitonissas: / o fúlgido agouro tatuado, cada luz / de palavra rompendo nada o osso, / caldos de mais-cores banhando / a pele-escorpião”. Ou no belo poema “Quando a luz perfurar teus olhos”: “Anel do escuro do silêncio. / / Comprimirás as têmporas pelas coxas. / / Nas pernas novelos se desfazendo serão / os últimos beijos da anêmona. / / Adeus do sal do leite do mar. / / Hoje irás a um outro lugar de todas as casas / azuis ou sóis e alvas. / / A eternidade lá vai. / / Na mão nódoa última do tempo sem tempo”. No poema “Álulas longe, de chofre nas costas”, Ricardo embaralha nomes relacionados sobretudo à música e à pintura, remetendo à própria sonoridade e imagética da sua construção: “agora um silêncio / repleto / hendrix / de jazz-gatilhos / repleto de jazzgatinhos – como bolhas de cage / que nada / nunca / e matisse até os quarenta seria desentendido / e picasso ah ser já sabido, vou”. Em seu novo livro, Barato, ainda inédito, Ricardo volta a trabalhar com a linguagem do cotidiano, desvirtuando-a, com a inserção de temas pedestres e cultos, numa mistura, digamos, entre alta e baixa cultura, com resultados corrosivos. É no poema “Suspeita”, de Desencantos mínimos, que ele faz uma síntese de sua poética: “- Alucinações são o elemento / elmo / do ouro que reveste a veia / que a luz da areia / é o a seguir, / vaga em breve, / e o devaneio?”.

sábado, 19 de outubro de 2013

O INÍCIO DE VINICIUS: O CAMINHO PARA A DISTÂNCIA





Resumo

Este artigo analisa a poesia de estreia de Vinicius de Moraes, posteriormente expurgada pelo próprio poeta. Os poemas religiosos de O caminho para a distância, no entanto, sugerem importantes relações com a poesia popularizada de Vinicius, como a dos sonetos e a das canções. Sendo assim, procura-se analisar aqui as relações entre forma literária (a poesia religiosa dos anos 1930) e o processo social, particularmente no tocante à autognose do poeta e à representação de seu lugar no mundo. Para tanto, atentou-se em especial para os poemas metalinguísticos do livro.

Palavras-chave: Vinicius de Moraes, poesia católica, metalinguagem.

Abstract

This paper analyzes the debut poetry of Vinicius de Moraes, later expunged by the poet himself. The religious poems of O caminho para a distância, however, suggest important relations with the popularized poetry by Vinicius, such as sonnets and songs. Therefore, we attempt to analyze the relationship between literary form (the religious poetry of the 1930s) and the social process, particularly with regard to the poet autognose and the representation of his place in the world. To this end, we focused in particular at the metalinguistic poems of the book.

Key words: Vinicius de Moraes, Catholic poetry, metalanguage.

O título do livro de estreia de Vinicius de Moraes, O caminho para a distância , de 1933, suscita imediatamente que o associemos à poesia evasiva e apegada à transcendência, uma poesia religiosa com funcionamento aparentemente “artístico” em que a busca do distante é tanto a da raridade do poético quanto do isolamento diante do mundo fraturado e, portanto, isolamento dado como ocasionado por um contexto inapto para a integração com o poeta. Até que ponto, porém, a indicação do título configura o posicionamento estético do poeta, ou seja, de que caminho para qual distância se trata em termos de poesia? Além disso, que relação mantém a obra de estreia com a estruturação de uma postura particular de Vinicius de Moraes diante das relações entre linguagem e realidade? E de que modo a postura particular de Vinicius o insere naquela tradição da ruptura que vem marcando o fazer literário a partir do Romantismo?
Culturalmente, o encaminhamento poético inicial de Vinicius pretendeu enquadrar-se num movimento estético-político de base tradicionalista, o catolicismo institucionalizado surgido nos anos 1920. É também, por outro lado, uma estreia contestadora, típica dos movimentos de juventude do século XX, cujo sintoma mais explícito foi a sucessão de vanguardas sobre vanguardas, na primeira metade do século, e de modas sobre modas na segunda. Porém, para efeitos de sua institucionalização no campo literário, Vinicius adotou uma visão bastante restritiva quanto ao livro inicial, renegando-o e o expurgando de coletâneas várias. A poesia que vai do livro de estreia até o poema “Ariana, a mulher” (1936), foi caracterizada por ele, na “Advertência” aposta aos poemas da Antologia Poética (1979), como poesia “transcendental, frequentemente mística, resultante de sua fase cristã”. O livro de estreia é expurgado da síntese que o próprio Vinicius faz de sua obra supostamente esclarecida – de resto procedimento adotado por outros poetas, como Cecília Meireles e Murilo Mendes e até, em parte, Drummond – dentro da consideração de exercício poético ainda não literário e não autoral. A negação madura da poesia religiosa é fruto de visão retrospectiva quanto ao que nomeia como os preconceitos de sua classe, dados como causadores de angústias inúteis. De qualquer modo, o livro inicial é uma indicação de procedimentos e temáticas que estarão presentes, ao menos como fantasmas (como no tratamento sublime do amor), na poesia posterior, e mesmo na fase musical do poeta. Tal investigação foi feita com sucesso, entre outros, por Eucanaã Ferraz (2006, p. 15) em sua apresentação a Vinicius de Moraes:
Seria possível, no entanto, adentrar sua obra por outros caminhos, nos quais as questões ligadas aos temas essenciais e às opções formais estivessem presentes, sem que a atenção principal recaísse na divisão de fases. Poder-se-ia, nesse sentido, observar que, em seus primeiros livros, (...) Vinicius empregou o verso livre, conquistado e consolidado pelos modernistas, de modo antimodernista: retórico, empostado, à maneira de Claudel ou Augusto F. Schmidt; e, adiante, quando adotou uma posição francamente moderna, passou a fazer uso constante de expedientes bastante tradicionais, como metrificação e forma fixa. Além disso, nesse segundo momento, permanecem algumas constantes temáticas, mas tudo surge renovado, tratado com grande liberdade.

Não se quer fazer tal panorâmica aqui, já tão bem resolvida no volume citado. Restringimo-nos a questões como a autoconsciência e a inserção do poeta no ambiente literário e aos sentidos que a escrita do sagrado desempenham na linguagem de Vinicius, unicamente analisando o primeiro livro. Gostaria, porém de aproveitar a observação de Ferraz quanto à disjunção que Vinicius operou em seu percurso literário entre a linguagem empregada e a nebulosa existencial que aceita a modernidade ou que a renega. Assim, o primeiro momento de sua produção seria o da linguagem modernista com funcionamento antimoderno. Ou de forma revolucionária para uma arte contrarrevolucionária, tradicionalista. É, porém, uma visão que merece análise mais detida, pois o pensamento católico emerge, assim como o pensamento “revolucionário” da esquerda, como contestação e proposição diante da crise do liberalismo e da democracia no Brasil, e o mesmo se dá no contexto ocidental. Ora, a poesia de Vinicius, ao operar tal disjunção, configura de forma não convencional sua abordagem da relação entre poeta e linguagem e entre poeta e realidade. Não se julga aqui o acerto ou o erro de tal postura. A compreensão do sentido da disjunção pode, no entanto, ajudar-nos no entendimento do sentido de parte da poesia inicial do autor.
Desse modo, em que medida a autoconsciência de sua condição de poeta pode ser lida em seu livro de estreia? Vinicius quase não faz metalinguagem no primeiro livro, o que se modificará já em Forma e Exegese (1935). Apenas dois poemas trazem a marca explícita em seus títulos quanto à temática do “poeta”. Nos poemas “O poeta” e “O poeta na madrugada”, do livro de estreia, Vinicius dá algumas indicações de posicionamento poético. As obras posteriores do poeta, notadamente o livro Poemas, Sonetos e Baladas (1946), trarão maiores considerações de metalinguagem. Porém, no primeiro livro o poeta já delineia um rumo particular, caminho que irá sofrendo alterações com o decorrer dos anos, mas que se manterá como base estruturante dos encaminhamentos futuros. Assim, em “O poeta”, a autognose é a do artista como sofredor exemplar:
O poeta é o destinado ao sofrimento
Do sofrimento que lhe clareia a visão de beleza
E a sua alma é uma parcela do infinito distante
O infinito que ninguém sonda e ninguém compreende. (MORAES, 2008, p.33)

Aparentemente, uma visão do poeta como aquele que expia os males do mundo através da obtenção transcendental da beleza: tal a “função” social da poesia. Porém, percebe-se na sequência que o drama maior do poeta não é bem a função redentora, embora ela exista em outros poemas, mas sim a consagração de sua subjetividade a seu próprio e particular fluir. A dor é dele, a angústia é dele, ele é que precisa de consolo, de lugar social, dilacerado entre o desejo de emancipação e a continuidade de seu sacrifício, onde a poesia é reverenciada como consolo sagrado. A ênfase de Vinicius parece se direcionar para o caráter extravagante da opção do “ser-poeta”. Tanto que reitera tal extravagância reescrevendo a mensagem principal nos últimos versos. Primeiro:
Ele é o eterno errante dos caminhos
Que vai, pisando a terra e olhando o céu
Preso pelos extremos inatingíveis
Clareando como um raio de sol a paisagem da vida. (MORAES, 2008, p.33)

E nos versos finais, a reiteração, repetindo, no primeiro deles, o verso com que abre o poema:
A vida do poeta tem um ritmo diferente
Ela o conduz errante pelos caminhos, pisando a terra e olhando o céu
Preso, eternamente preso pelos extremos inatingíveis. (MORAES, 2008, p.34)

A angústia é, pois, tanto uma inevitabilidade quanto uma condenação à oscilação entre a transcendência e a materialidade. A materialidade chã (“pisando a terra”) da poesia inicial de Vinicius é expressa na utilização livre da versificação modernista, recusando-se ao tradicionalismo métrico e ao vocabulário empolado da poesia anterior aos anos vinte e trinta. Mas não pode adotar também o ideário coloquial e cotidiano do modernismo da Semana de 22, pois outra força o divide (“olhando o céu”): a atitude contemplativa de defesa evasiva do poeta num período em que a consciência de nosso subdesenvolvimento principia enquanto formulação política (e não restritivamente estética como na década de vinte). O poema mostra a autoconsciência fraturada e instável do poeta. O lugar do poeta é o de tal instabilidade, um “entre” ainda mal resolvido. A errância, portanto, é mais expressão de estaticidade do que de movimento, uma vez que o poeta está “eternamente” preso. A errância é constante aqui e em outros poemas, como no soneto “Judeu errante”. Os próprios títulos de alguns poemas dão conta daquele vácuo expectante de onde fala o poeta: Suspensão, Vazio, Inatingível, Ânsia, Vigília, Quietação, Desde Sempre...É um lugar entre o templo e o tempo.
Não se discute aqui o fato inegável do pequeno potencial estético dos poemas iniciais de Vinicius, embora ocasionalmente haja neles um frescor juvenil, uma luz amenizada por brisas românticas que permitem adivinhar parte do poeta futuro. Entretanto, seria ingenuidade supor que um livro de estreia, por maior desarticulação estética que possua, conforme indicação do próprio autor ao organizar sua antologia, seja relegado ao interesse meramente histórico, como aquilo que “ainda não era” a poesia de Vinicius de Moraes. E o sentido histórico de uma obra não é só o pitoresco-biográfico, uma vez que mesmo à escrita da ingenuidade se requer um lugar no campo dos sentidos para o poético. A relação do sujeito lírico com a linguagem, tão melhor resolvida em momentos posteriores da obra do autor, potencializada esteticamente por uma abertura horizontal à mulher e ao outro (o amigo, o operário, o cotidiano, o popular) numa arte do encontro fraterno, tem na obra inicial, no entanto, um eixo de organização vertical que será a marca característica da operação poética de Vinicius. Sim, pois o que há na poesia inicial em termos metafísicos, do ser enquanto “sendo” (e que são também os termos de seu posicionamento diante da poesia nacional tal como estabelecida), é a constatação angustiada do poeta de sua própria condição de exceção (“Tem um ritmo diferente”) diante dos dois mundos: conforme se verifica no poema “O poeta”, o escritor fica em equilíbrio tenso (“Preso, eternamente preso”) entre o chão –– pois é pecador, logo ordinário, e o céu – pois é poeta, logo extraordinário. Também no poema “O único caminho” os dois momentos estão presentes, o da exceção santa e o do pecador ordinário.
É grande a ascendência do Romantismo sobre Vinícius. A poesia romântica brasileira também falava no vazio, sentindo o isolamento diante de uma realidade arcaica, e fazendo do isolamento, por contrapasso, mas também por influência cultural da subjetividade evasiva do capitalismo central presente nos escritores europeus, a condição ideal da elocução poética, encaminhada à oratória. Assim, o isolamento, tanto como condição contextual local, quanto como ideal importado de escrita poética, prefigura o lugar social do poeta como gênio. O poeta, estando em contato com o sagrado, pretende ser ele o sagrado, daí definir sua exceção diante do mundo. Especificamente no poema acima, porém, tal isolamento não é vivido como sofrimento ou sacrifício. Há certo júbilo e satisfação dados pela vidência, pela constatação do domínio sobre o poder mágico e transcendente da poesia. Como assinalado, o poeta tem seus poderes sobrenaturais, que o permitem pisar no ordinário.
Apesar do rebaixamento para o cotidiano durante sua poesia mais madura, assistiu-se também em tal fase a uma elevação em termos de seleção de formas no repertório da poesia ocidental (como a insistência no soneto, por exemplo). Tal fato é demonstração de que, a entrada em cena do outro (a mulher, o social), atua sobre a poesia de Vinicius de duas maneiras. Em primeiro lugar, tal horizontalização inverte os polos estético e ideológico. Elevação no primeiro polo e rebaixamento no outro. Ora, a leitura do próprio Vinicius (e em geral corroborada pela crítica) tende à constatação de que é por tal horizontalização (a aceitação do outro) que sua poesia ganha em valor estético, tendo aí seus melhores momentos. Que são seus melhores momentos, não há dúvida; mas a causa não é só a aceitação do outro. E aqui se chega à segunda hipótese que quero propor: a horizontalização só inflama o potencial estético de Vinicius na medida em que o ajuda a estabilizar/nomear um lugar de elocução para uma linguagem que continuou verticalizada, essencialmente lírica. Assim, o poeta, apesar de magnetizado inicialmente tanto pelo céu quanto pelo chão, constata, porém, sua imobilidade e isolamento justamente por este “estar entre”. A poesia inicial, ao contrário da fase madura, não apresenta uma dinâmica horizontal (no livro inicial, o lugar de elocução é o vácuo expectante, logo um não lugar) a estabilizar o eixo vertical, o que a enfraquece na fatura estética.
Pode-se dizer, a partir de tais suposições, que a poesia inicial de Vinicius é importante por ter introduzido um eixo – a relação vertical disjuntiva entre forma e fundo – que só se torna significativo (e que faz significativa sua presença na poesia brasileira) com a dinamização através de uma crescente horizontalidade que foi sendo imposta pelo poeta à escrita no decorrer dos outros livros. Esta horizontalidade, por sua vez, era potencializada pela concepção verticalizada da poesia inicial de Vinicius, supondo uma não coincidência inevitável (seu princípio articulador) entre o “que” e o “como” de sua linguagem: modernidade formal (mas não “futurista” ou “desvairista”) e tradicionalismo existencial, na fase inicial, e prosaísmo em estruturas fixas na fase madura. O cruzamento de eixos (do afastamento vertical com a aproximação horizontal), portanto, situa o poeta num lugar de grande originalidade na poesia brasileira. Em Vinicius, a manipulação técnica dos repertórios e formas tem uma perspectiva própria: a continuidade da relação de não coincidência vertical entre linguagem e realidade, embora com troca de sinais, interage com a descontinuidade dada na introdução simultânea de um abrir-se ao mundo e de um abrir o mundo (a horizontalidade). Apenas a abertura ao outro não garante boa poesia (aí estão milhões de poemas “engajados” para a confirmação de tal asserção) e, portanto, é essencial à perspectiva original de Vinicius em nosso sistema literário aquela concepção vertical de seu lugar “entre” a linguagem e a realidade. Desse modo, pode-se dizer que é estruturalmente significativa a poesia inicial de Vinicius de Moraes. Sim, pois a não homologia presente no eixo vertical dá conta mesmo da relação instável e ambígua do poeta no mundo da mercadoria.
É significativo, portanto, que seja religiosa/espiritualizada a poesia de O caminho para a distância, produto de um contexto cultural católico, aristocratizado e que aflora no bojo dos radicalismos ideológicos de contestação simbólica ao mundo liberal e à situação de isolamento cultural do intelectual numa sociedade de grandes distâncias sociais. E é também bastante significativo o distanciamento de não coincidência entre o repertório de formas e os motivos poéticos. O que seria, porém, só um sintoma, ou um modo de abordagem da crise moderna entre linguagem e realidade, é também o que vai permitir a emergência não só da originalidade poética de Vinicius como sua resposta enquanto intelectual àquela crise, o que se dará justamente pelas aberturas laterais, horizontais, que sua poesia madura irá efetivar. No período histórico em que o poeta escreve seus melhores textos, a poesia mais fraca é justamente aquela que não trata da crise moderna (entre outras coisas, expressa no não lugar da poesia no mundo organizado) pela sua internalização, mas que a expõe apenas como dado exterior. O grosso da produção da geração de 45 supôs a identidade entre linguagem e realidade, ambas sob tratamento elevado, raro. Embora o tratamento elevado parecesse àqueles poetas contestação à sociedade massificada, era uma resposta poética de aceitação da situação excêntrica do poeta muito diferente do posicionamento de Vinicius, de disjunção entre linguagem e motivos combinando-se à horizontalidade dinâmica na abertura ao outro. Sua resposta ao mundo é, portanto, da ordem da negatividade intrínseca.
Em que medida a poesia inicial de Vinicius reage à modernidade poética num contexto de incultura? Aproveitando-lhe a lição simbolista, mas sob um ponto de vista extremamente romântico, o do poeta-gênio, do poeta vidente à Rimbaud, onde o caráter de exceção o protege do entorno arcaico, mas o dignifica como modelo de sofrimento/iluminação exemplar. Assim, a atitude religiosa na poesia do início de Vinicius, aparentemente contemplativa, assim como a figura do fracassado nos romances de trinta, a figura do assinalado na tradição católica e a do evasivo rumo a Pasárgada – aquele que dispõe de condições objetivas para tanto, que habita o mundo da “cultura” – implicam todas num reconhecimento da angústia para o enfrentamento (ou a fuga, que pode estar expressa na necessidade de um discurso de enfrentamento) do presente tempestuoso e arcaico-inculto.
A angústia diante do presente, porém, tem implicações para a vontade de mudança, embora não a garanta. Os intelectuais querem dar o salto, mas não há muita consciência de para onde. Os anos trinta foram um momento de acentuação da tentativa de ajuste entre os valores da modernidade e modernização estrutural. Mas ainda estamos no nível voluntarista, dentro de um sentimento que combina impotência e vontade de ação. Tal instabilidade está diretamente relacionada ao contexto da intelectualidade do período, absorvida pelo Estado, mas com papel subalterno, impotente. O catolicismo, por exemplo, surge como um outro modo de organizar o salto, pautando as relações entre modernidade e modernização, que no ponto de vista católico não podem ultrapassar certos limites. Há uma pretensão católica de grande otimismo quanto a recuperar o mundo. Lúcia Miguel-Pereira (1992, p. 134) fez considerações a esse respeito no calor da hora da publicação de Tempo e Eternidade, o que nos permite captar a questão ideológica envolvida naquele contexto. No mesmo ano em que saiu o livro, ela fez uma entusiasmada defesa de que a essência das coisas estaria, finalmente, vencendo seu aspecto. É com grande otimismo que vê Jorge de Lima como aquele que “(...) traz a Cristo o apelo dos oprimidos, dos sofredores, dos negros se lamentando nos navios negreiros.”
Os radicalismos (à esquerda e à direita) dos anos trinta, consequência do fechamento político e da descrença no liberalismo impuseram à literatura intimista um bloqueio cultural que obscureceu sua contribuição no momento literário. Parte da crítica contemporânea tem atuado no sentido de ressaltar a criação de autores como Cornélio Penna ou Lúcio Cardoso. Como podem ser situados diante de tais fenômenos o poeta Vinicius de Moraes e sua poesia aparentemente de exclusividade religiosa? Se a considerarmos poesia intimista, descolada dos temas nacionais, estaremos aceitando a hipótese de que existem discursos neutros em literatura. Sabe-se, porém, da dimensão de intervenção social que o pensamento católico veio reconhecendo como próprio da relação com o sagrado já a partir dos anos vinte. É importante esclarecer que nem todo o pensamento católico se encaminhou à direita no espectro político (como Octávio de Faria), haja vista a poesia socializante de filiação religiosa em um Murilo Mendes. Embora não tenha havido alinhamento explícito entre comunismo e catolicismo, como em períodos posteriores, houve, em facções do pensamento religioso, orientação social. Contudo, não é o caso do Vinicius inicial, onde o poeta entra mais como vidente suavizado e modelo ideal de atuação, pelas vias do sofrimento e da iluminação, do que como guia paternalista.
Assim, a perspectiva católica, embora fortemente egocentrada no Vinicius estreante, traz no seu projeto de intervenção cultural uma proposta de enfrentamento do presente, porém através do ponto de vista da elite, da organização pelo alto. Daí o caráter permanente de “exceção” presente na ideologia dos poemas de O caminho para a distância. Seu engajamento é às avessas, na medida em que nega, ao ressaltar sua excepcionalidade e sua genialidade egocêntrica, a organização autônoma e espontânea das bases populares. O discurso de exceção é, por outras vias, a formulação poética tanto do discurso autoritário quanto da perspectiva de um Estado de exceção, de fechamento político. A elite se impõe a tarefa de dar forma à matéria nacional disforme. Dentro da variação de opções, o pensamento católico emerge, em Vinicius, como a busca de uma essência universal. No entanto, tal busca está diretamente vinculada à realidade nacional, marcada pela incultura e pelo início de consciência de nosso subdesenvolvimento, o que lhe impõe ser o porta-voz de um discurso de exceção. O discurso do “entre” pode ser lido como uma simulação do desejo de engajamento no terreno e, ao mesmo tempo, uma (auto) justificativa da impossibilidade de efetivar tal engajamento.
Que relação existe entre os poemas sobre a autoconsciência poética que aqui estamos analisando e o fato de Vinicius defender, em seu prefácio para O caminho para a distância, que seu livro é um todo contínuo, sem interrupções? Além disso, que relações podemos traçar entre os dois poemas sobre poesia inseridos num livro que se pretende em contato com o sagrado? Nos dois poemas metalinguísticos de O caminho para a distância, o segredo de Vinicius está em vinculá-los ao fluxo do corpo sagrado que pretende para seu livro, pois o propõe quase que como um grande e único poema: “São cerca de quarenta poemas intimamente ligados num só movimento, isolando-se no ritmo e prolongando-se na continuidade, sem que nada possa contar em separado. Há um todo comum indivisível.”(MORAES, 2008, p. 7), o que lhe dá ares de uma experiência mística revelada textualmente. É preciso, pois, que a metalinguagem (os poemas sobre o poetar) seja também expressa em poemas da vida, logo da sagração da vida, da aparente não literatura. Ora, integrar a arte na vida é a utopia de toda a vanguarda do século XX:

O POETA

A vida do poeta tem um ritmo diferente
É um contínuo de dor angustiante.
O poeta é o destinado do sofrimento
Do sofrimento que lhe clareia a visão de beleza
E a sua alma é uma parcela do infinito distante
O infinito que ninguém sonda e ninguém compreende.

Ele é o eterno errante dos caminhos
Que vai, pisando a terra e olhando o céu
Preso pelos extremos intangíveis
Clareando como um raio de sol a paisagem da vida.
O poeta tem o coração claro das aves
E a sensibilidade das crianças.
O poeta chora.
Chora de manso, com lágrimas doces, com lágrimas tristes
Olhando o espaço imenso da sua alma.
O poeta sorri.
Sorri à vida e à beleza e à amizade
Sorri com sua mocidade a todas as mulheres que passam.
O poeta é bom.
Ele ama as mulheres castas e as mulheres impuras
Sua alma as compreende na luz e na lama
Ele é cheio de amor para as coisas da vida
E é cheio de respeito para as coisas da morte.
O poeta não teme a morte.
Seu espírito penetra a sua visão silenciosa
E a sua alma de artista possui-a cheia de um novo mistério.
A sua poesia é a razão da sua existência
Ela o faz puro e grande e nobre
E o consola da dor e o consola da angústia.
A vida do poeta tem um ritmo diferente
Ela o conduz errante pelos caminhos, pisando a terra e olhando o céu
Preso, eternamente preso pelos extremos intangíveis.

Em “O poeta”, Vinicius de Moraes faz uma leitura íntima da metalinguagem. O distanciamento que o tratamento respeitoso dispensado ao “poeta” traz, aparece bastante suavizado por toques de cuidado e graça romântica, toques de leveza, de quem melodicamente “chora de manso” e que “sorri com sua mocidade” a “todas” as mulheres. Aliás, o poema em si é aquela polarização, com um início mais exasperado e um direcionamento suavemente emotivo na segunda estrofe, de quem tem “o coração claro das aves”. Vinicius é tão pudico que abdica do eu e trata do poeta na terceira pessoa. Parece-me, portanto, que o que há no poema de solene é clichê, é lugar-comum do pensamento religioso e do romantismo choroso de matriz europeia que Vinicius aplica aos seus textos iniciais. As brechas de leveza, com suave luz tropical (e que seriam na sua alma de poeta as razões para seu perfeito encaixe posterior junto à bossa nova), estão presentes em fenômenos como a simplicidade sintática e a proposta de um léxico universal. São brechas, porém, que não são força suficiente no poema para salvá-lo da insistência discursiva muito forte no início, em que o poeta é o da dor e da angústia, poeta que volta a discursar no final. O melhor Vinicius posterior foi o que soube depurar-se da eloquência, o que não significa que todo o Vinicius da fase madura tenha sido leve, como nos momentos de tratamento via sublime de temas da leveza e mesmo nos maneirismos dos sonetos camonianos. Mas não nos desviemos. Vejamos o outro poema:

O POETA NA MADRUGADA

Quando o poeta chegou à cidade
A aurora vinha clareando o céu distante
E as primeiras mulheres passavam levando cântaros cheios.
Os olhos do poeta tinham as claridades da aurora
E ele cantou a beleza da nova madrugada.
As mulheres beijaram a fronte do poeta
E rogaram o seu amor.
O poeta sorriu.
Mostrou-lhes no céu claro o pássaro que voava
E disse que a visão da beleza era da poesia
O poeta tem a alegria que vive na luz
E tem a mocidade que nasce da luz.
As mulheres seguiram o poeta
Oferecendo a tristeza do seu amor e a alegria da sua carne
O poeta amou a carne das mulheres
Mas não envelheceu no amor que elas davam.
O poeta quando ama
É como a flor que murcha sem seiva
Porque o amor do poeta
É a seiva do mundo
E se o poeta amasse
Ele não viveria eternamente jovem, brilhando na luz.

Quando a nova madrugada raiou no céu distante
O poeta já tinha partido
E seguindo o poeta as mulheres de peitos fartos e de cântaros cheios
Falavam de ardentes promessas de amor.

A base romântica é nítida em Vinicius. Tudo são estados de espírito. Aqui o poeta já não é o sofredor, atingiu a ascese, mesmo amando a “carne das mulheres”. Todas aquelas brechas de luz que tentavam amenizar o expressionismo do assinalado sofredor no primeiro poema, agora invadem a paisagem inteira. A luz é sempre suavizada, as claridades da aurora, a beleza da madrugada. A luz, quando aparece explicitada, não é a luz que cega, não angustia, é uma luz que embala, um escudo de pureza do poeta. É o culto do frescor, dos cântaros, do iluminado, do céu claro, da mocidade, do eternamente jovem, brilhando na luz”. Afirmação geracional, necessidade do choque sensual dos “peitos fartos”, culto da juventude: fenômenos massificados de fins do século vinte que Vinicius antecipa, em sua formação aristocrata, de “exceção”.
Repetem-se os personagens: o poeta, mocidade sofredora no primeiro poema e exaltação do frescor viril no segundo, e as mulheres “castas” e “impuras” no primeiro texto e que oferecem “a tristeza do seu amor e a alegria da sua carne” no segundo, o que expõe agora uma aceitação sensual, e não o julgamento moral que diferencia, como no primeiro poema. Digamos que o primeiro poema é onde o poeta se justifica, onde precisa “proclamar” sua santidade, justificando-a pelo sofrimento, seu caráter assinalado diante dos males do mundo da modernidade. O otimismo é, por outro lado, em sua irritante certeza do brilho infindável, a marca do segundo texto, onde a liberdade encantada do poeta coaduna melhor com a própria liberdade rítmica do poema. Não só o poeta, ainda tratado na terceira pessoa, como personagem, agora não precisa mais julgar as mulheres, como também não se encontra dilacerado em sua estaticidade angustiada. Aqui, ele vem à cidade e depois se vai. Seu brilho é evidente, as mulheres o seguem e o respeitam. Ele é um assinalado, mas já transcendeu o sofrimento. Em sua ilusão de classe, pensa já estar salvando o mundo.

Referências Bibliográficas

FERRAZ, Eucanaã. Vinicius de Moraes. São Paulo: Publifolha, 2006. (Folha Explica) p.15.
MIGUEL-PEREIRA, Lúcia. Jorge de Lima e Murilo Mendes: harmonias e diferenças. In: A leitora e seus personagens. Rio de Janeiro: Graphia Editorial, 1992, p.134.
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MORAES, Vinicius. Poemas, sonetos e baladas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.