terça-feira, 23 de dezembro de 2014

29, de Marcos Messerschmidt (Porto Alegre: Modelo de nuvem, 2014)

A forma fixa também fixa uma rotina. De escrita e de leitura. Tenho medo da forma fixa. Também não gosto dela. Sou pelo fluxo, pelo disforme, pelo quebrado. Daí meu desconforto com o fixo. Disfarcei uma coroa de sonetos na primeira parte do meu livro barato. Foram escritos num fluxo de dois dias, depois de um definitivo rompimento amoroso. A forma fixa ali foi um exercício de contenção, de modo a disciplinar a cura. Como se a forma mais abstrata solicitasse um renascimento por substituição do sentimento em nome do sensível. Manipular o fixo mais abstrato (Wilson Bueno me disse que, ao escrever seu livro de tankas, achava um desperdício ter de jogar fora “versos luxuriosos e luxuriantes” mas que não se enquadravam na forma) impõe igualmente uma manipulação técnica da própria cura, sentimental, fisiológica etc. No caso de 29, de Marcos Messerschmidt, um tempo curto, todo cortado. No entanto, fluxo, 40 dias, período de provação, escrevendo em pontilhado. Tudo cortado no fluxo. Enquadramentos. Importante saber o descartável, saber inclusive o valor do descartável. Um haicai não pode ser reduzido a uma frase, como acontece (16, 69). Exceções, porém, pois trata-se de um movimento que Marcos não resiste em destruir, com algo de fragmentado, daí talvez o absurdo que um crítico encontrou ali. Não vejo surrealismo. O fragmento também é romântico, dá conta da experiência solitária contemporânea, permeada de novos deuses, poetas de experiência de vida romântica como matéria de poesia: Bukowski, Kerouac, Baudelaire, Whitman. Imobilizado na única goteira, não há surrealismo aqui. Há um eu que acaba sendo um outro, no molde de Rimbaud. Na verdade, 29 parece ter um tanto da estrutura de Uma temporada no inferno. Disseca-se um eu que termina por escapar ao observador, constituindo-se também como imagem. Tal fuga se dá inclusive pela alucinação das imagens, daí a sugestão (não levada a cabo) de surrealismo. Apenas não gosto quando um eu qualifica a experiência (55). O eu fica bem no haicai quando ele deixa de ser uma voz e vira, por exemplo, Bashô, ou um homem que se disciplina por 3 haicais diários, ou alguém que achou seu par desenhando mexicanos entre táxis: isto é, quando vira um outro. Gosto quando a experiência é apresentada, não quando é representada. E a apresentação acontece muito no 29, primeiro livro de Marcos Messerschmidt. Um quê de romântico ou expressionista preso no haicai. Queda, cicatriz, horror, embriaguez. Trata-se de uma tensão perigosa, necessária. Soa-me híbrido. Há um mergulho, mordida a maçã, rumo à dissecação. Os movimentos, partes do livro, garantem uma rítmica equilibrada. Mas um mergulho cuja selvageria se dissolve justamente nessa paciência do corte, do tempo curto, do saber hesitar e do saber onde a queda será mais interessante. É uma experiência de queda, de vocação pela materialidade, o que já garante uma experiência salutar ao leitor, quiçá curativa. Aqui e ali ainda se opina, mas nada que contamine a experiência com os quadros, com as “estações”. Sou contra o haicai alegrinho, infantilizado, mais ou menos como faz o Alvaro Posselt. Posselt é muito talentoso com a linguagem (vista por ele como forma social) - sem contar sua capacidade de visualização, obtida de modo mais direto e criativo -, mas faz poesia como riso da sociedade, banaliza seu instrumento. 29, pelo contrário, me satisfaz também por negar isso de compactuar com o consenso. Às vezes desejaria ver mais experiência de linguagem, de modo a concretizar de modo mais poético as imagens, mas fica para uma próxima. 29 é um livro muito vivo e de quem recusou o fácil que o fixo poderia oferecer. 

domingo, 31 de agosto de 2014

E aí, poeta, você parou de escrever, parou de publicar poemas no Facebook?



A poesia pode ser mercadoria? Deve ser valor de troca? O que nos faz acreditar que não, nessa espécie de santidade feliz e imbatível dos poetas? Poetas, quase todos, publicam seus poemas de graça, por exemplo, aqui. Só um poeta ingênuo não sabe que publicar um poema aqui enriquece o dono do Facebook. Sem contar possíveis revisões legais futuras quanto a direitos de autoria. Mas quem se importa? Poetas (eu entre eles) babam por qualquer aceitação: um editor que os publique de graça (e que, além de nunca pagar ao poeta ainda por cima lhe venda seus próprios livros), alguém que os convide para um sarau, qualquer linha elogiosa aos poemas etc. Artistas outros não se dão assim de graça, mas os poetas sim. Imaginemos por um instante porém que a resposta possa ser sim, isto é, que a poesia deve sim ser mercadoria, por ser trabalho humano num mundo de mercadorias. Não confundir com o discurso de um Agamben, que coloca a questão comparando o poeta ao carpinteiro, mas não discute o valor de troca do poema. O poeta precisa virar publicitário se o poema se tornar mercadoria? E os poetas que já são publicitários (desculpem a blague)? E não o serão a seu modo todos os poetas? Como fazer o questionamento que dê fim à santidade poética? Talvez de um modo bem direto, tomando o poema como mercadoria mesmo, e não do modo indireto como defende, por exemplo, um Bourdieu, que vê na arte sem mercado uma espécie de aposta num mercado adiado, logo, ainda assim mercado. Se houvesse uma tabela como há no sindicato dos músicos ou dos atores, se houvesse como seria? Dois versos, um copeque? E o cigarro e os jornais e os hotéis baratos e as noites em claro? Dez copeques a hora divagada? Mas a quem venderia o poeta, ao editor? E a venda direta ao leitor (ou o financiamento antecipado de um livro), seria típica do poeta aburguesado, logo vendido? De outro lado: o poema deve ser dado? O poeta é o mais heroico dos bodes expiatórios da catarse artística: faz poemas e os dá. Publica seus poemas, fruto do trabalho, de graça. Paga pra isso. Faz questão. Pede desculpa quando cobra. Entende quando não pagam. O mais cachorrinho masoquista com os editores. E até escreve um texto, como eu aqui, para justificar o que se seguirá. Mecenário, mas não mercenário, o poeta vive de bolsa da Capes, salário de bancário, de professor, o poeta é um advogado, um filhote do edital, do prêmio, da herança do pai, do toco de vela. Sarau é de graça. Sair em antologia é de graça. Publicar em jornal (quase sempre) é de graça. Por isso também poesia acaba sendo muita falação e troca de favores. Falação como: panelas, prêmios, uma linha na Folha ou no Estadão etc. Troca de favores como resenha meu livro que eu resenho o seu. De certo modo, quem já não dançou assim (e nem acho que isso comprometa exatamente a abordagem crítica, ela em si um diálogo de criadores)? Já critiquei livro de amigo e já elogiei livro de amigo. Mas quem lê o poeta senão o amigo poeta e a mãe do poeta (que não entende que o filho é poeta e muito menos a porra que ele escreve)? E será que ser também falação e troca de favores não impede que a poesia seja outras coisas, talvez melhores? Li um poeta defendendo que a poesia deva ser feita para vários públicos e que a poesia brasileira é dominada pela escrita culta, a ser, senão ultrapassada, ao menos deslocada da centralidade. As vendas do Leminski póstumo (adoro um vídeo no qual Waly Salomão, imaginem quem, diz que Leminski é a Hebe Camargo da poesia brasileira) são só uma parte de um processo mais amplo: poetas pop, poetas de televisão etc. e poetas que vendem e atingem segunda edição e monopolizam as polêmicas poéticas no Brasil. Existe sim poesia pop para vulgarização da poesia (e não vai exatamente um juízo valorativo aqui). O que a canção já fez (ser poesia atenuada: perdoem a grosseria para fins de argumento já que há canções a léguas qualitativas de muita poesia dita boa) agora a própria poesia faz. Mesmo dizendo todo o tempo ter mais editados que leitores (mais ou menos isso), editores de poesia continuam publicando livros e cada vez mais (ainda que para as trupes de amigos, com tiragens menores). Uma editora como a Patuá tem dezenas e dezenas de poetas, e o livro de poesia ali, ainda que publicado de graça, é mercadoria. E são livros bonitos, capa dura e tal, muito esmero mesmo. Para se gostar (se assim desejado) para além da própria poesia (o que não impede que haja excelentes poetas no seu catálogo). E graças aos deuses que o seja, acho um trabalho belíssimo. Cada um tem seu caminho, mas de minha parte, penso em fazer o seguinte para parar de pensar o poema como uma resistência santa (o poeta é o último religioso, quando não obscurecido pela astrologia etc. e tal): só eu me vendo e só vendo do meu. Não postarei mais poemas aqui por entender que trabalho de graça para o dono dessa joça. Então, palavras de graça continuo dando de graça. Os poemas não, mas seguirei publicando em revistas, elas que fazem um trabalho gigantesco de diversificação pelo enriquecimento do sistema poético, mas como uma espécie de brinde ou propaganda (poeta se borra com essa palavra) aos leitores. Fragmentos, estudos e obras em processo de preferência. Fora que peguei uma birra danada de editor. Livro de poesia meu só eu mesmo publicarei pela minha Paulo Honório Edições sem arte e os venderei aos interessados. Pegarei empréstimo, trabalharei por fora, como todo poeta, e encomendarei o livro numa gráfica. Ganhar dinheiro, ficar rico? Riam. Só não vou ser ingênuo ou escravo. Criar mercado para a poesia? Não creio, nem tenciono, ainda que ele exista sim como nicho. Apenas vejo incoerência em ser publicado por uma grife (uma editora) e condenar o culto às grifes do mundo burguês (um tênis, um perfume). Muitos estranham quando ofereço de graça meu último livro, o barato (e o título não é só gíria de velho): ora, publiquei por Lei de Incentivo e não quis vender o que foi financiado por impostos (fora que no projeto já constava um pró-labore do autor). Achei uma merda estampar estatal como ‘financiadora’ do projeto etc. E para o futuro também não descarto cooperativas e empreendimentos coletivos, obviamente. Sindicalização dos poetas? Mas o poeta não é classe (trabalhadora ou patronal): ele é artesão. Corporação de ofício, talvez. Mas isso já é, não? 

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Uma carta de Donizete Galvão



Em 1997 recebi esta carta do poeta Donizete Galvão, em resposta ao meu envio do livro Desencantos mínimos. Fiquei frustrado na época, era jovem, mas depois fui entendendo a sinceridade intelectual e a 'verdade da poesia' nas palavras que transcrevo a seguir:

"É muito difícil para um poeta receber livro de outro e ficar sem responder. Sempre que escrevemos temos a pretensão de encontrar um leitor ideal, um atento crítico que note nossas qualidades, aponte com delicadeza nossos erros. Há poetas críticos como foi Mário de Andrade que não se recusava a um exercício de pedagogia. Hoje, por exemplo, temos o José Paulo Paes que generosamente fala de poetas que estão fora daquele círculo de badalações. Outros, entretanto, como no meu caso, têm munição que só dá para o próprio gasto. Embora leia muitos ensaios e obras de crítica poética não tenho nenhuma autoridade para falar como crítico. Não se trata de má vontade ou de pouco interesse. É uma questão de reconhecer nossos limites. Há pessoas mais capazes de dizer de forma melhor. O que todo poeta quer é encontrar sua própria voz. Uns com mais facilidade, outros com um caminho mais pedregoso. Outros participando de grupos, guiados por mestres, outros solitários. Fui indo por própria conta e risco. É importante quando encontramos um crítico, um poeta que dialogue conosco, que mostra interesse por nosso trabalho. Mas se não encontramos o negócio é tocar o barco. Como na música de Vanzolini, “levanta, sacode a poeira e dá volta por cima”. Quando encontramos um rumo, um jeito de expressar de forma equilibrada, filtrada e trabalhada, aquele tumulto interior, ficamos mais egoístas. À medida que a voz do poeta ganha potência ele fica menos perceptivo ou receptivo às outras vozes. Vejo como um deus interior que é apenas uma pequena semente e que vai ganhando corpo, roubando a própria personalidade do autor, até que ocupe quase todo o espaço. O corpo é nosso, a cabeça dele. Por isso, é tão difícil e chato conviver com poetas. A poesia é exigente, obcecada e possessiva. Claro que há uma fase em que estamos em formação e somos tocados pelo encantamento de grandes poetas. Depois de maduros, relemos os poetas que nos formaram. Deixamos de gostar de outros. Vemos em alguns os nossos próprios defeitos. Mas devo dizer com franqueza: perde-se um pouco o interesse pela poesia dos contemporâneos. Lê-se menos poesia e passamos a cultivar interesses pela música, pintura, antropologia, história, crítica literária. Será que isso é compreensível? O ato poético é ao mesmo tempo um exercício de despersonalização e também de narcisismo. Marianne Moore, poeta americana, dizia que “tampouco gostava de poesia” quando alguém fazia esse comentário. O poeta gosta sim de poesia. Mas gosta mais da própria poesia. Se não acreditar nisso, não há motivo para continuar escrevendo. Por isso, só posso agradecer pelos livros que recebo. Sempre os leio. Fico, entretanto, sentindo-me culpado por não dar uma atenção maior. Dizer, com todas as letras, o que penso dos poemas. Resta-me aquela frase do Drummond que sempre respondia as cartas com um singelo texto de “simpatia intelectual”. Para quem está procurando palavras consistentes, simpatia só não basta. Somos sim egoístas, temos aquela luta de todo mundo para sobreviver, precisamos de tempo para dedicarmos ao trabalho poético. Razão que moveu a escrever esse texto que envio aos que me mandam livro. O que está ao meu alcance é fornecer alguns contatos, mandar listas de endereços. Mas não sou juiz ou tenho veleidades de julgar ninguém. Cada um deve acreditar no que está fazendo. Persistir, “lutar a luta mais vã”, buscar a qualidade, o verso perfeito, mesmo que ele não exista. Muita gente publica por vaidade pessoal. Para ver seu nome na capa, para fazer lançamento em coquetel. Muitos deles desacorçoam diante dos parcos retornos. Uns poucos persistem. E quem vai deixar alguma poesia para a posteridade só o tempo dirá. Ele peneira com severidade. Como dizia Jorge Luis Borges, se um verso apenas sobreviver terá valido a pena. O meu recado é de ir abrindo caminho. A poesia não é carreira, nem profissão. Embora muitos façam uso dela para sua projeção social. É preciso ser fiel a ela. Compreender quando ela nos abandona. Esperar pacientemente que as impurezas subam. Buscar concisão, consistência, sem tentar ser filhote ou protegido de ninguém. Tentar com ela reanimar a realidade, dotá-la de um sentido sagrado. Tarefa dura. Não há nenhuma certeza. Só abismos e riscos. Boa sorte, amigo."