sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Uma carta de Donizete Galvão



Em 1997 recebi esta carta do poeta Donizete Galvão, em resposta ao meu envio do livro Desencantos mínimos. Fiquei frustrado na época, era jovem, mas depois fui entendendo a sinceridade intelectual e a 'verdade da poesia' nas palavras que transcrevo a seguir:

"É muito difícil para um poeta receber livro de outro e ficar sem responder. Sempre que escrevemos temos a pretensão de encontrar um leitor ideal, um atento crítico que note nossas qualidades, aponte com delicadeza nossos erros. Há poetas críticos como foi Mário de Andrade que não se recusava a um exercício de pedagogia. Hoje, por exemplo, temos o José Paulo Paes que generosamente fala de poetas que estão fora daquele círculo de badalações. Outros, entretanto, como no meu caso, têm munição que só dá para o próprio gasto. Embora leia muitos ensaios e obras de crítica poética não tenho nenhuma autoridade para falar como crítico. Não se trata de má vontade ou de pouco interesse. É uma questão de reconhecer nossos limites. Há pessoas mais capazes de dizer de forma melhor. O que todo poeta quer é encontrar sua própria voz. Uns com mais facilidade, outros com um caminho mais pedregoso. Outros participando de grupos, guiados por mestres, outros solitários. Fui indo por própria conta e risco. É importante quando encontramos um crítico, um poeta que dialogue conosco, que mostra interesse por nosso trabalho. Mas se não encontramos o negócio é tocar o barco. Como na música de Vanzolini, “levanta, sacode a poeira e dá volta por cima”. Quando encontramos um rumo, um jeito de expressar de forma equilibrada, filtrada e trabalhada, aquele tumulto interior, ficamos mais egoístas. À medida que a voz do poeta ganha potência ele fica menos perceptivo ou receptivo às outras vozes. Vejo como um deus interior que é apenas uma pequena semente e que vai ganhando corpo, roubando a própria personalidade do autor, até que ocupe quase todo o espaço. O corpo é nosso, a cabeça dele. Por isso, é tão difícil e chato conviver com poetas. A poesia é exigente, obcecada e possessiva. Claro que há uma fase em que estamos em formação e somos tocados pelo encantamento de grandes poetas. Depois de maduros, relemos os poetas que nos formaram. Deixamos de gostar de outros. Vemos em alguns os nossos próprios defeitos. Mas devo dizer com franqueza: perde-se um pouco o interesse pela poesia dos contemporâneos. Lê-se menos poesia e passamos a cultivar interesses pela música, pintura, antropologia, história, crítica literária. Será que isso é compreensível? O ato poético é ao mesmo tempo um exercício de despersonalização e também de narcisismo. Marianne Moore, poeta americana, dizia que “tampouco gostava de poesia” quando alguém fazia esse comentário. O poeta gosta sim de poesia. Mas gosta mais da própria poesia. Se não acreditar nisso, não há motivo para continuar escrevendo. Por isso, só posso agradecer pelos livros que recebo. Sempre os leio. Fico, entretanto, sentindo-me culpado por não dar uma atenção maior. Dizer, com todas as letras, o que penso dos poemas. Resta-me aquela frase do Drummond que sempre respondia as cartas com um singelo texto de “simpatia intelectual”. Para quem está procurando palavras consistentes, simpatia só não basta. Somos sim egoístas, temos aquela luta de todo mundo para sobreviver, precisamos de tempo para dedicarmos ao trabalho poético. Razão que moveu a escrever esse texto que envio aos que me mandam livro. O que está ao meu alcance é fornecer alguns contatos, mandar listas de endereços. Mas não sou juiz ou tenho veleidades de julgar ninguém. Cada um deve acreditar no que está fazendo. Persistir, “lutar a luta mais vã”, buscar a qualidade, o verso perfeito, mesmo que ele não exista. Muita gente publica por vaidade pessoal. Para ver seu nome na capa, para fazer lançamento em coquetel. Muitos deles desacorçoam diante dos parcos retornos. Uns poucos persistem. E quem vai deixar alguma poesia para a posteridade só o tempo dirá. Ele peneira com severidade. Como dizia Jorge Luis Borges, se um verso apenas sobreviver terá valido a pena. O meu recado é de ir abrindo caminho. A poesia não é carreira, nem profissão. Embora muitos façam uso dela para sua projeção social. É preciso ser fiel a ela. Compreender quando ela nos abandona. Esperar pacientemente que as impurezas subam. Buscar concisão, consistência, sem tentar ser filhote ou protegido de ninguém. Tentar com ela reanimar a realidade, dotá-la de um sentido sagrado. Tarefa dura. Não há nenhuma certeza. Só abismos e riscos. Boa sorte, amigo."