domingo, 15 de fevereiro de 2015

Borda, de Norma de Souza Lopes. São Paulo: Patuá, 2014.

Um livro primoroso no trabalho editorial e com muitos poemas interessantes. Chegamos talvez, na poesia brasileira, a um momento de poesia pulverizada e democrática. Há nesse viés sobretudo um desejo de identificação (autor enquanto leitor, leitor enquanto autor). Também o altar (seja o oficial ou o erudito) pouco interessa nessa concepção. Poesia deixou de ser a arte difícil? As vantagens seriam óbvias: uma língua franca e a dessacralização da condição poética. Borda tem essa luz democrática: há ali clareza clássica no dizer e por vezes belos tratos de linguagem. Muitos dos poemas retomam a vocação cotidiana modernista (a própria voz lírica se reconhece dissonante frente as ingerências do pós-moderno), de Drummond a Adélia Prado. Um mundo em que ironia e enfado dão as mãos, quando não perturbados pela violência dos podres poderes. A autora se dá bem nessa seara. Por outro lado, desagradam-me o excessivamente discursivo, o recurso do contar, na ordem do livro de memória. Outra coisa é o recurso da recusa, quando as coisas, e mesmo o mundo do cotidiano, repleto de nadas, simplesmente acontecem. E Borda me pareceu irregular justamente nesse sentido. Fala-se muito em certos poemas, gerando o maldito conto poético. Conheci também bons textos lendo o livro de Norma de Souza Lopes. Destaco “o gato”, “cortesia”, “passou”, poemas que vibram de um cuidado de estilete, mais próximos do arabesco que do figurativo. A autora parece estar se testando, com uma paixão ainda temerosa. Se assume a condição social, o ser todas as mulheres, todos os oprimidos, o texto ganha em vigor engajado. Persistir a fragilidade de linguagem, no entanto, impede que a própria mensagem reverbere em poesia. Existe um cuidado forte em muitos dos textos, mas outro tanto tateia um quanto pueril. Arrisco-me a dizer que a poeta está ainda acima dos seus recursos. Como se os poemas insinuassem um querer dizer diferente, menos condescendente.  

[Dentro da betoneira], de Thiago Cervan. 2014.

[Dentro da betoneira], segundo livro de Cervan, é um conjunto de textos rasgados entre a rua e o poema: “a poesia/que não é/arma/(nunca/foi&/nunca/será)”. Divide-se o livro em [pedra], [água], [cimento], [areia]. Na primeira parte, marcando posição de guerrilha, despreza-se o poema culto, o culto de Herzog, o blasésismo de enésimos burgueses: “exibe o máximo domínio/da flor do lácio ao lançar o/hexâmetro dactílico/no tabuleiro da vaidade./exige o reconhecimento/nobiliárquico lexical.” O poema é um corpo estranho na política. A política do poema de Cervan é a crônica, ferina. E se o poema é um culto, não haveria um paradoxo? Um culto ao poema. O poeta cronista, entre translação e baldeações, toma cicuta e ricina. Vê com olhos marejados outros trabalhadores cansados, marujos, talvez pedreiros, os do metrô trabalhando aos sábados (cito de propósito outros populares). Fala por eles, representando-os. A violência é tema, nem sempre é forma, no sentido de uma violência possível ao poema. Afinal um poema não é bem literatura, não é bem mimetização. Escrever contra o poema, e não só contra o culto da erudição, talvez arranhasse mais a significação. “Declive” é o grande poema da primeira parte, com versos como “aparta-se do parto/mundano onde a placenta/envolve o feto na caçamba.” Em [água], segunda parte do livro, assistimos a uma volta placentária. São gerações de carne violentada, remexendo no berço e sargaço. Lembra Inverno, capítulo de Vidas secas. Estamos no plano da avó, de varais revirados no crepúsculo, cães latidos latindo. Persiste a luta entre poema e vida: “a palavra não toca/como uma mão toca/o seio noviço&rijo”, ou “o nome/não é a coisa”. Nesse sentido, reitero minha crítica: seria necessário enfatizar mais essa distinção. Se o nome não é a coisa, o que é? Fazer o nome dobrar-se e incorporar o externo com mais vigor de linguagem. Não que não haja grandes momentos e pelo menos um poema de muita intensidade (“alice”), quando o enigmático faz relações com a representação. Um tanto desigual a terceira parte, mas com pelo menos dois grandes poemas (“2:17 a.m.” e “moenda”). No primeiro, Cervan tece, através da descontinuidade dos versos, os contatos (enfatizados por estribilho) entre o cansaço do eu lírico e o estupor de “noites senzalas”. No segundo, acontece com vigor a relação entre representação (o discurso mimetizador) e a apresentação (o próprio do poema), na medida em que se abole justamente aquele que fala por outros. O poema é que fala por outros, não o poeta. E “moenda” consegue isso. Eu diria que [areia] é o melhor conjunto de poemas do livro. Resolve-se o que na primeira parte do livro era um excesso de crônica. Os poemas da última parte mais do que falar do mundo, “são” o mundo. O poeta se despreocupa dos que não tem voz e passa a conviver de modo mais tenso com outro problema: o fato de ser simultaneamente uma voz (a poética) e um homem com os mesmos problemas dos demais (o “ser sem voz”). E isso amplifica a própria crítica social, condição ética dos poemas do livro. Também não há, como na segunda parte, alguns apelos condescendentes da infância: a vida é também o amor entre ais, o gozo da multiplicidade perceptiva, a sinuca, o baseado. E Cervan vem muito afiado em [areia], rapsodo da própria linguagem. Endurece, saber cantar a morte, mas sem perder a ternura.