terça-feira, 28 de janeiro de 2020

TESES E DISSERTAÇÕES BRASILEIRAS SOBRE POESIA AFRICANA DE AUTORIA FEMININA EM LÍNGUA PORTUGUESA



*artigo publicado originalmente na revista Mulemba, v.11, n.21, 2019.




RESUMO

O artigo discute as investigações brasileiras sobre a poesia africana de autoria feminina em língua portuguesa. Através do Catálogo de Teses e Dissertações, plataforma da CAPES, foram selecionadas pesquisas que tratam das poetas africanas. A análise se deu a partir de duas categorias: o modo como as dissertações e teses tratam da poesia como gênero literário e o modo como dialogam com os estudos de gênero.

PALAVRAS-CHAVE: Poesia africana, autoria feminina, gênero, Catálogo de Teses e Dissertações.


“Nós somos sombra para os vossos olhos, somos fantasmas.” (SOUSA, p. 34) O verso pertence ao poema “Passe”, da moçambicana Noémia de Sousa, que no texto dirige-se diretamente aos colonizadores, assumindo, de modo orgânico, solidariedade com os “despojados”. O verso seguinte é a resposta virulenta e otimista àquela percepção de despojo: “Mas, como estamos vivos, extraordinariamente vivos e despertos!” Fazemos referência aos dois versos em nome de uma analogia possível com a pesquisa brasileira em teses e dissertações sobre a poesia africana de autoria feminina em língua portuguesa. Não exatamente para relacionar a recepção acadêmica brasileira ao papel do colonizador, ainda que isso também mereça ser discutido no escopo dessa relação, mas principalmente para destacar um ponto significativo sobre as teses e dissertações produzidas no Brasil e sobre a poesia ali estudada. Nosso entendimento é de que a vitalidade e a potência daquela poesia de mulheres africanas no âmbito (não só) da língua portuguesa talvez ainda estejam envoltas em sombras se considerarmos grande parte da recepção brasileira. As sombras se dão principalmente se pensarmos na condição diminuta que, tanto a poesia enquanto gênero literário, como as escritoras africanas e suas questões de gênero, ocupam no quadro geral das pesquisas brasileiras sobre literaturas africanas.
Será a partir desta constatação que faremos a discussão neste estudo. Iniciamos por uma pesquisa maior por nós realizada entre outubro de 2018 e junho de 2019, intitulada “Panorama dos estudos de literaturas africanas na pós-graduação brasileira”. Através do Catálogo de Teses e Dissertações, disponibilizado pela CAPES, levantamos 840 investigações defendidas sobre autores literários africanos. A perspectiva é inédita em se tratando de sociologia e teoria literárias no Brasil, pois o Catálogo ainda não foi utilizado para qualquer reflexão semelhante. Ao oferecer um quadro da produção de pós-graduação em literatura, nosso estudo abre inúmeras possibilidades de discussões teóricas, desde aquelas sobre o campo das literaturas africanas no Brasil, até a temáticas como a literatura-mundo, as questões do pós-colonial – particularmente quanto às comunidades simbólicas lusófonas e suas tensões, solidariedades e contradições –, a teoria afrodiaspórica dos estudos decoloniais – como na aproximação oficial à África através de legislação afrodescendente afirmativa (a lei 10639/03) etc. São temas, porém, que escapam ao foco mais imediato deste texto.
Há evidentes dificuldades no acesso ao Catálogo da Capes. Para além das diminutas possibilidades de cruzamento de dados, há ausência de indexação de pesquisas e equívocos na indexação de outras. Os trabalhos pioneiros, além disso, não constam do Catálogo. Nesse sentido, nossa pesquisa é incompleta, sendo ainda um trabalho em construção, uma vez que o Catálogo foi nossa fonte principal. A presente amostra, portanto, não é conclusiva.[1]
Iniciaremos este artigo com os dados mais gerais do “Panorama dos estudos de literaturas africanas na pós-graduação brasileira”, descrevendo métodos e resultados. A seguir, faremos recortes mapeando os trabalhos sobre poesia, os sobre autoras africanas e, por fim, os sobre poesia africana de autoria feminina em língua portuguesa, quando comentaremos as principais premissas e eixos de investigação nas teses e dissertações, com especial atenção às questões de gênero poético e de gênero enquanto identidade sexual e performance social, culturalmente construídas e significadas. Como há um predomínio de análises de ficção nas pesquisas de literaturas africanas no Brasil, usualmente com enquadramentos a partir da História (romance como representação de nação e ficção como expressão discursiva pós-colonial) e das Ciências Sociais (ficção como expressão de identidade e os temas do hibridismo), de um lado, e uma hegemonia de análises sobre autores homens, interessa-nos verificar se as abordagens da poesia escrita por mulheres africanas trazem discussões sobre poesia enquanto escrita esquiva à própria ideia de representação histórica ou sociológica/antropológica, e também se/como abordam os temas de gênero. Este artigo, portanto, propõe uma dupla entrada: um mapeamento descritivo, ao perguntar quem são as poetas estudadas, como e quando foram estudadas, se o foram de modo exclusivo ou comparado etc., e uma discussão sobre categorias, apresentando questões sobre gênero poético e estudos sobre mulheres às teses e dissertações.

Panorama dos estudos de literaturas africanas na pós-graduação brasileira

O mapeamento sobre o campo da pesquisa literária no Brasil ainda engatinha. Há investigações, como as de Regina Dalcastagné (2018), por exemplo, analisando num recorte dos periódicos acadêmicos mais gabaritados, quais os autores mais estudados e sob que correntes teóricas, ou seja, realizando um mapa estrutural do campo de investigação literária, revelando hierarquias, dinâmicas e linhas de força. No caso dos trabalhos sobre literaturas africanas, há alguns balanços pessoais, como o de Laura Padilha (2010), destacando linhas de pesquisa e orientações teóricas, mas ainda carecemos de um retrato mais sistemático de um campo de pesquisas ao mesmo tempo tão recente e tão pujante. Um retrato assim pode ser traçado a partir de diferentes objetos. Não há entre nós, por exemplo, um estudo como o feito por Pires Laranjeira (1995), comentando os textos clássicos dos estudos de literaturas africanas em língua portuguesa. Faltam-nos ensaios que discutam as contribuições teóricas e analíticas de nossos nomes pioneiros (Simone Caputo Gomes, Rita Chaves, Maria Nazareth Fonseca, Laura Padilha, Carmen Lúcia Tindó Secco, Tania Macêdo, Benjamin Abdala Júnior, Mário Lugarinho, entre outros) dando conta das principais questões epistemológicas, do repertório literário manipulado, das vinculações interdisciplinares e institucionais, dos percursos intelectuais etc. Falta-nos também um estudo sobre o estado da arte, repertório e categorias manipuladas nos periódicos acadêmicos. Além de dissertações e teses, é notável no país o crescimento da produção de artigos acadêmicos sobre as literaturas africanas, mas tal campo de recepção também ainda não foi pesquisado e discutido. É possível dizer que houve, na primeira década do século XXI, uma consolidação institucional da recepção crítica às literaturas africanas, seja na produção de dissertações e teses, seja na ampliação do espaço para aquelas literaturas nos periódicos brasileiros, quando algumas revistas com foco e escopo em literaturas de língua portuguesa foram fundadas. A entrada dos Estudos Literários nas questões africanas se dá mais fortemente a partir do fim dos anos 1990, num relativo atraso em relação a áreas como as Ciências Sociais e a História. Se as revistas são espaços potenciais para a multiplicidade de autores(as) dos países africanos, a realização de dissertações e teses costuma ter maior dependência com certa sedimentação, seja de pesquisas sobre os nomes e livros investigados, seja com a presença dos livros no mercado editorial brasileiro, o que em grande parte explica a enorme concentração de análises em nomes como Mia Couto, Pepetela, Ondjaki e Agualusa. Essa dependência de sedimentação para as teses e dissertações, mesmo que em muitos dos casos também prevaleça o trabalho quase artesanal que vai do contato com os livros raros à pesquisa de nomes ainda sem presença na academia brasileira, entra em choque com o caráter engajado da própria área de investigação. Estudar literaturas africanas, afinal, é um procedimento de resistência e do cultivo da diversidade e do arejamento do cânone em língua portuguesa. Nesse sentido, pode-se dizer que passamos a ser, também, e de um modo ainda não definido, pós-coloniais ao estudarmos literaturas pós-coloniais africanas. Laura Padilha (2010, p. 13), explica que o gesto dessas pesquisas é de resistência e desconstrução do cânone eurocêntrico:

A fim de brevemente concluir, devo dizer que se, por sua parte, a neocolonialidade insiste em não ceder seu espaço, nós, os que a ela nos opomos, insistimos também em enfrentá-la, pondo em circulação novas vozes, que assim se deixam ouvir; outras matrizes culturais, que afinal afloram; diferentes formas de olhar, que ganham espaço. Enfim, objetivamos, como nossos estudos, contribuir para que o múltiplo cultural que somos tome seu lugar.  

Nosso panorama mostra que apenas em parte acontece o sucesso da utopia do “múltiplo cultural”, havendo concentração excessiva em poucos nomes, num perverso contraponto ao empreendimento de resistência que representam tais estudos (ainda mais se considerarmos a Lei 10639/03 como impulsionadora de mais atenção às culturas africanas). Este contraponto, queremos sugerir, é a permanência do colonial através de uma visão orientada pelo mercado global e pela reapropriação contemporânea da noção de literatura mundial. A discussão não cabe aqui, mas não podemos nos furtar ao que escreve Pires Laranjeira (2016, p. 207):

Escolhas como as de Agualusa, elevado a representante da literatura angolana (e já ouvi chamar-lhe escritor português e brasileiro!), criam um novo cânone, que pode resvalar para uma espécie de neo-paternalismo ou mesmo neo-colonialismo cultural, com o consentimento de uma parte generosa dos actores institucionais.

O estudo sobre dissertações e teses foi realizado através de consultas ao Catálogo de Teses e Dissertações, entre 01-10-2018 e 01-06-2019. Verificamos 1222 nomes das literaturas africanas no sistema de busca da plataforma da CAPES, sendo 298 dos países lusófonos e 924 dos não-lusófonos. Consultamos também inúmeras expressões como “literatura africana”, “literatura moçambicana”, “poesia angolana” etc. A partir da consulta, selecionamos pesquisas que, de modo exclusivo ou comparado, citassem o nome de escritor(a), o que se confirmou caso a caso pelo acesso aos resumos dos trabalhos (na quase totalidade deles, pois alguns poucos não se encontram online). Da consulta dos 298 nomes da África lusófona, 117 foram confirmados (39,3%), e 180 nomes não. Dos 924 nomes da África não-lusófona, houve menção a apenas 47 autores (5,1%). Há, portanto, intensa concentração de investigações na literatura dos países que sofreram colonização portuguesa, demonstrando o peso do repertório lusófono nas análises brasileiras. São 33 nomes de Angola, 33 de Cabo Verde, 23 de Moçambique, 20 de Guiné-Bissau e 8 de São Tomé e Príncipe. Neste artigo, discutiremos somente os resultados quanto aos países de língua oficial portuguesa.
Selecionamos os dados em duas ordens diferentes: a) a quantidade de dissertações e teses, com subclassificações de ano, instituição de origem, área acadêmica etc.; b) a quantidade de menções de cada autor(a), igualmente subclassificadas em ano e tipo, isto é, se pesquisa exclusiva ou comparada, permitindo traçar cruzamentos de autores(as), dividindo-os(as) em subcategorias, como comparações com nomes do Brasil, de Portugal, de ambos, de outras nações africanas etc.
  Com relação ao número de dissertações e teses, entre 1979 e 2018, encontramos 840 trabalhos sobre literatura africana dos PALOP (mas também comportando algumas poucas comparações fora da lusofonia), com 613 dissertações (73%) e 227 teses (27%). Dividimos a evolução da produção acadêmica em três patamares temporais, tendo como marco central a edição da lei 10639/03. Consideramos também fatores como o incremento de programas de pós-graduação e o aumento expressivo de bolsas de estudo no país após o ano 2003. Os três períodos mostram um crescimento consistente: a) 1979 a 2004 – um período formativo, pioneiro, com produção ininterrupta desde 1990, e que resultou em 109 trabalhos (13% do total, média de 4,2 pesquisas/ano); b) 2005 a 2012 – escolhemos o ano 2005 como marco para as primeiras dissertações produzidas já sob a vigência da lei 10639/03, sendo um período de consolidação, com 275 trabalhos defendidos (32,7% do total, 34,4/ano); c) 2013 a 2018 – período de disseminação dos estudos em universidades de todo o país e também período de confirmação acadêmica, com muitos mestres em literaturas africanas defendendo agora suas teses de doutorado, sendo realizadas 456 pesquisas em apenas 6 anos (54,3% do total, 76/ano). O último período é também o de descoberta de novos autores. Será nesse último período que se dará a maioria das dissertações e teses exclusivamente voltadas às autoras africanas.
Quanto às menções de escritores(as), existe grande quantidade de nomes citados, se compararmos com a pesquisa feita sobre os não-lusófonos. Temos na pós-graduação das investigações de literaturas africanas apego à diversidade e discussão de materiais sempre renovados, incluindo-se aí a retomada de nomes do passado (como ficará evidente quanto às pesquisas sobre Noémia de Sousa), embora sob enorme concentração na África de língua oficial portuguesa. Também há concentração exagerada na recepção de alguns poucos nomes. Assim, um dos problemas mais significativos demonstrados pelo panorama é o da contradição entre diversidade e concentração, sendo possível pensar num possível sequestro de interesses acadêmicos pela diminuta disponibilidade de nomes africanos no mercado editorial brasileiro, o que revela um dos aspectos de nossa herança colonial e também da nossa submissão à literatura do capitalismo global, das casas editoriais multinacionais etc. De outro lado, temos demandas políticas que também orientam a dinâmica das pesquisas, como é o caso do crescimento bastante recente de análises de escritoras africanas, a partir das discussões de gênero, como nos casos mais evidentes de Paulina Chiziane e de Chimamanda Adichie, além das demandas que põem em intersecção ativismos afirmativos transnacionais, como os estudados por Sérgio Costa (2006). O próprio estudo da recepção brasileira às literaturas africanas pode ser pensado nesse último enquadramento.
Concebemos um ranking de escritores(as), tendo como critérios o número de pesquisas, número de teses, número de dissertações, investigações exclusivas, presença no período 2013-2018 e trabalhos de 2018. O número de citações de nomes (1012) é naturalmente maior que o de pesquisas defendidas (840), já que as análises comparatistas são mais de um terço do total. No plano mais geral, dos 117 nomes confirmados, apenas 50 estão em 3 ou mais pesquisas, compondo 92% do total de registros. Para se dimensionar a concentração, há no fim da lista outros 50 nomes que constam com apenas uma menção nos estudos, usualmente em teses e dissertações comparatistas. Já no topo, se ficarmos apenas nos 20 mais citados, a concentração é de 78,5% das menções, com muitos trabalhos exclusivos. Pesquisas exclusivas, como as que discutiremos sobre as poetas africanas, abordam em geral mais de um livro de mesma autoria.
É o caso, naturalmente, de Mia Couto. Editado e reeditado todos os anos no Brasil, o moçambicano lidera o ranking de menções acadêmicas, tendo 24% do total de citações. Um autor sozinho, note-se, com um quarto das referências. Em seguida vêm Pepetela, Paulina Chiziane, Agualusa, Luandino Vieira, Ondjaki, Boaventura Cardoso, Ruy Duarte de Carvalho, João Melo e Ana Paula Tavares. Os 10 primeiros concentram 67,1% das referências. Trata-se, porém, de um quadro dinâmico, pois, até 2003, Luandino Vieira era o mais analisado. Entre 2004 e 2007, Pepetela era o mais citado, sendo que Mia Couto assumiu a liderança em 2008, disparando à frente dos demais.
Na base da lista, dos 50 nomes com 1 menção, 16 são de Guiné-Bissau, 12 de Cabo Verde, 10 de Angola, 7 de Moçambique e 5 de São Tomé e Príncipe, o que mostra que as literaturas guineense e cabo-verdiana foram estudadas preferencialmente em moldes comparativos, incluindo, em geral, 3 ou mais nomes numa mesma pesquisa. Autores angolanos têm 454 menções (44,8% do total), numa média de 13,8 menções/autor. Os moçambicanos têm 393 menções (38,8%), mas com média de 17/autor (devido, basicamente, a Mia Couto). Autores de Cabo Verde têm 106 menções (10,5%), média de 3,2/autor; de Guiné-Bissau 41 (4,1%), média de 2/autor; e de São Tomé e Príncipe 18 (1,8%), média de 2,2/autor.
Três questões são as mais problemáticas da relação entre a recepção brasileira e a produção literária africana: a orientação dos estudos pela disponibilidade dos livros enquanto mercadoria, na medida em que os autores mais presentes no mercado tendem a ser os mais pesquisados, situação gritante no caso de Mia Couto; a concentração nas narrativas, em nome de um enquadramento usual a partir da leitura histórica ou cultural dos textos literários, objetivando a descrição de retratos de nação ou de discussão de identidade nas obras; a concentração na lusofonia, tanto em função da condição autocentrada e isolada da academia e da literatura brasileira, quanto em razão do projeto imperialista de baixo impacto que o Estado e o mercado cultural brasileiros representam e fazem funcionar sobre a produção africana. De outro lado, três pontos podem ser vistos como extremamente positivos: a profusão de nomes analisados em paralelo ao processo de concentração nos mais pesquisados, havendo de fato uma pulverização cartográfica bastante significativa nas investigações, em particular naquelas comparatistas; a predominância, ainda que não tão avantajada, dos estudos exclusivos sobre autores africanos e daqueles sob perspectiva intra-africana, mesmo que muito restrita ao espaço lusófono, o que denota uma atenção específica e um possível aprimoramento das ferramentas analíticas pelo acúmulo crítico e teórico; o crescimento avassalador da área de estudos, com intensa concentração das análises nos anos mais recentes, o que promete incorporação de novos nomes, consolidação profissional de mestres que também façam suas teses sobre as literaturas africanas, num horizonte de diversificação das análises a partir da reflexividade proporcionada pela autonomização do campo de investigação, contribuindo para a oxigenação dos repertórios lidos no Brasil.

Poesia africana em língua portuguesa

A poesia é um gênero pouco estudado nas dissertações e teses. São 95 (11,3%) das 840 pesquisas catalogadas. É preciso, porém, relativizar o dado, uma vez que não dispomos de comparativos com a presença de pesquisas sobre poesia no quadro de outras literaturas. A concentração em análises que leem as literaturas africanas como construção de retrato de nação e discussão de identidade faz com que se privilegie o romance, em primeiro plano, e o conto, em segundo. Se é diminuta a presença da poesia nas pesquisas, o que diremos do teatro, com uma ou outra análise sobre a dramaturgia de Pepetela ou Abdulai Sila, por exemplo, e com apenas um autor mais destacado, o angolano Mena Abrantes? O mesmo ocorre com a literatura infantil e para relações entre literatura e outras produções simbólicas, como o cinema. Pode estar acontecendo, portanto, que a concentração nas narrativas se dê em nome de uma expectativa brasileira representacional da história e da cultura africanas, o que tanto despolitiza a relação crítica entre a recepção e a produção, quanto reifica de modo cultural e histórico (e menos literário) a literatura estudada. Despolitização e, paradoxalmente, desestetização. Apesar da profusão de investigações, parece haver um fechamento crítico da recepção literária, na medida em que o impulso que orienta os trabalhos é predominantemente histórico e cultural.
Dos 95 trabalhos com poesia, 61 (64,2%) são com poetas homens e 34 (35,8%) com poetas mulheres. Se tomarmos o número de pesquisas com poetas mulheres, as 34 representam apenas 4% do total. Já as 61 pesquisas com poetas homens são 7,3% do total. No plano geral, as escritoras são nitidamente menos investigadas que os escritores. São 130 pesquisas (15,5%) das 840 catalogadas. Nas 130 análises, ocorre predomínio da ficção, com 97 investigações (74,6%), sobre os 33 estudos de poesia (25,4%). Como se nota, nas análises de escritoras, o índice da poesia (25,4%) é bem superior ao do índice de poesia em geral sobre o total das 840 (11,3%). Também é muito superior ao índice de pesquisas com poetas homens (61 ou 8,6%), se tomarmos apenas o número de pesquisas com homens (710). Constata-se um paradoxo no cruzamento de dados. No espaço diminuto das pesquisas com poesia, conclui-se que há mais poetas homens sendo estudados que poetas mulheres, mas entre os trabalhos que analisam escritoras, o índice de análise de poesia é muito superior. Na esfera universal, portanto, homens são mais lidos enquanto poetas que mulheres, mas na esfera específica destas, há proporcionalmente mais presença de poetas. A contradição, dita de modo simples, enuncia que, enquanto gênero, poesia é mais lida nos poetas homens, mas, de outro lado, no gênero feminino há proporcionalmente mais leituras de poesia. Obtivemos também um dado interessante para a discussão da recepção brasileira às literaturas africanas. Tanto nos países lusófonos, como nos não-lusófonos, o autor mais estudado é homem branco (Mia Couto e J. M. Coetzee) e a autora mais estudada é mulher negra (Paulina Chiziane e Chimamanda Adichie). De outro lado, são predominantemente mulheres (cerca de 75%) as autoras de pesquisas sobre literaturas africanas no Brasil.
  Entre os 10 nomes mais citados, há três que são poetas, além de ficcionistas (Mia Couto, João Melo, Ruy Duarte de Carvalho). Todos têm, no entanto, pouquíssimas leituras de suas obras poéticas. Naqueles mais explicitamente identificados à poesia, destacam-se 4 nomes entre os 20 mais mencionados: Ana Paula Tavares, José Craveirinha, Agostinho Neto e Noémia de Sousa. Deles, apenas Ana Paula Tavares também é estudada para além da poesia, pois seus contos e crônicas já receberam análises na pós-graduação brasileira.
A busca por “Ana Paula Tavares” retorna 16 pesquisas (10 dissertações e 6 teses), contando com 5 dissertações exclusivas sobre sua obra. A poeta tem menos pesquisas a partir de 2013 (37,5%), sendo o trabalho pioneiro defendido em 2000. Há, contudo, outras teses e dissertações sobre a poeta. Infelizmente, por questão de espaço, foram, neste artigo, algumas em detrimento de outras. Por exemplo, na Faculdade de Letras da UFRJ, dois estudos exclusivos sobre Paula Tavares foram defendidos em 2014: a dissertação de Pamela Maria do Rosário Mota sobre a metáfora do sangue na poesia de Paula, abordando o sangue menstrual, o sangue dos rituais míticos, o sangue da guerra e o sangue da escrita; a tese de Fernanda Antunes Gomes da Costa que versou sobre a poética dos sentidos na obra toda da referida poeta.
José Craveirinha, por sua vez, é citado em 14 pesquisas (8 dissertações e 6 teses), sendo mais estudado a partir de 2013 (64,3%). Recebeu 3 dissertações exclusivas e uma tese. O perfil de Agostinho Neto é semelhante ao de Tavares, pois tem 14 menções (13 dissertações e uma tese), com menor ênfase após 2013 (35,7%). Por fim, o perfil de Noémia de Sousa se assemelha ao de Craveirinha, sendo citada em 10 pesquisas (9 dissertações e uma tese), tendo 6 dissertações exclusivas e concentração após 2013 (70%). Há, pois um crescimento nos nomes moçambicanos, que se faz inclusive pelo resgate de poetas fundadores(as). Parece mesmo estar ocorrendo uma transição da recepção de escritores(as) de Angola para os de Moçambique, pois, além de Tavares e Neto, também Pepetela, Boaventura Cardoso e Luandino Vieira têm menos de 50% das análises a partir de 2013 (mas há exceções, como Ondjaki e João Melo), enquanto, a exemplo de Sousa e Craveirinha, Mia Couto (60%), Paulina Chiziane (61,8%) e João Paulo Borges Coelho (100%) são nomes de Moçambique com maior concentração a partir de 2013. À falta de melhor explicação, pode-se creditar a transição para a recepção da literatura moçambicana em função do predomínio avassalador de Mia Couto e mesmo à produção mais tardia da literatura moçambicana (sendo Craveirinha e Noémia de Sousa notáveis exceções).

Poesia africana de autoria feminina em língua portuguesa

Para esta discussão, optamos por um corte radical naquelas 34 análises que envolvem poetas africanas mulheres, reduzindo nossa abordagem às 16 pesquisas sobre poesia africana de autoria feminina. Há um significativo número de trabalhos comparatistas, o que é característica das análises sobre poesia (assim como sobre as literaturas nacionais de São Tomé e Príncipe ou de Guiné Bissau). A perspectiva panorâmica permite relacionar três ou mais nomes, com prejuízo para o estudo de obras em favor da análise de poemas específicos. Opta-se bastante também pela perspectiva da lusofonia, com poetas de diferentes países. Assim, Ana Paula Tavares, a poeta mais mencionada, é estudada em conjunto a nomes como Manoel de Barros, Marilza Ribeiro, Olga Savary, Ricardo Aleixo, Edimilson de Almeida Pereira, Ronald Augusto, Hilda Hilst, Conceição Evaristo, Seu Beto, Luís Carlos Patraquim, Ruy Duarte de Carvalho e Adília Lopes. Já Noémia de Sousa recebeu investigações em conjunto a Landê Onawale, Clã Nordestino, Cyro dos Anjos, Orlando Mendes, Paulina Chiziane, Agostinho Neto e Fernando Pessoa. Nota-se, entretanto, a inexistência de dissertação ou tese que trate de Tavares e Sousa, as duas poetas mais citadas, em conjunto. Perceba-se, igualmente, que nenhuma das duas recebeu teses de doutorado exclusivas. Também há comparações envolvendo poetas como Vera Duarte, Conceição Lima, Alda Espírito Santo e Odete Semedo. Nesse sentido, delimitamos nossa discussão ao conjunto das 14 dissertações e 2 teses que tratam especificamente, mesmo que no viés comparativo, de poetas africanas mulheres. A escolha deixa de fora muitos dos trabalhos dedicados a Ana Paula Tavares, na medida em que é um nome bastante investigado nas pesquisas comparatistas.
Nos 16 trabalhos selecionados, o dado mais evidente à primeira vista é a condição recentíssima da maioria deles, pois 10 dissertações foram defendidas apenas entre 2017 e 2018 (e somente 4 trabalhos foram defendidos antes de 2014), apontando, numa perspectiva otimista, para possíveis continuidades de análise da poesia feminina africana em futuros doutoramentos. A poesia africana de autoria feminina em língua portuguesa é um campo praticamente em aberto. Será sobre esses 16 trabalhos (1,9% das 840 teses e dissertações catalogadas sobre literaturas africanas lusófonas) que nos debruçaremos a seguir, apontando de forma breve as características de cada um deles. Dezesseis pesquisas são “sombras para os vossos olhos”, como no verso de Noémia de Sousa, podendo-se mesmo falar numa quase invisibilidade da poesia africana de autoria feminina. É sugestivo, nesse sentido, que Homi Bhabha (1998, p. 78) discuta a questão pós-colonial, ao tratar do legado de Frantz Fanon, a partir da ideia de “invisibilidade”, citando o poema de Meiling Jin. Invisibilidade que o próprio poema de Sousa desmente, num gesto pós-colonial (“extraordinariamente vivos e despertos”). De fato, é pela devolução de um olhar que vigie e assombre (como no poema citado por Bhabha) que a mulher pós-colonial, invisibilizada, se defende e agencia sua condição de sujeito. Não à toa, tal agenciamento se dá pelo olhar, ou como descreve Judith Butler (2003, p. 7) a respeito da intrusão repentina das mulheres na cena patriarcal, por uma “intervenção não antecipada, de um ‘objeto’ feminino que retornava inexplicavelmente o olhar, revertia a mirada, e contestava o lugar e a autoridade da posição masculina.” Nesse sentido, não buscamos avaliar as dissertações e teses, mas traçar delas um resumo que se oriente principalmente pela discussão que fazem de poesia e pela referência que trazem (ou não) dos estudos de gênero.
  O trabalho pioneiro foi a dissertação de Marcelo Pereira Machado (2006), com análise sobre o livro O lago da lua, de Ana Paula Tavares. Machado, sob guarida da teoria pós-colonial e dos estudos de gênero, pensa a poesia da autora a partir da negociação temporal, haja vista, no seu entender, a dupla condição da mulher angolana, elo com a memória e abertura para a transgressão. Isso se daria por “piscadelas” (que o autor associa ao olhar feminino), e não de modo panfletário, engendrando discussões matizadas e sensíveis sobre a identidade nacional e a identidade feminina. A poesia de Tavares é caracterizada como transformadora, dando conta da multiplicidade cultural angolana e aproximando a identidade nacional das margens e do feminino, subvertendo a norma colonial. Predomina na análise a discussão da nação e da cultura, orientada a partir da escrita feminina.
  De 2010 é a dissertação de Mara Regina Ávila de Ávila, também sobre a relação entre a poesia de Ana Paula Tavares e a nação angolana. Analisando um conjunto de poemas retirados dos livros Ritos de passagem, O lago da lua e Ex-votos, a pesquisa relaciona a poesia de Tavares à reconstrução histórica pós-colonial, principalmente no plano identitário e com ênfase no resgate da tradição de africanidade ou negritude. Há uma atenção ao gênero poético, contrapondo “lírica moderna” e “lírica pós-colonial”. Ávila faz a discussão da poesia de Tavares a partir das questões de identidade, e sua abordagem dos temas de gênero é bastante tributária das reflexões de Homi Bhabha.
  Também de 2010 é a tese de Érica Antunes Pereira, analisando em conjunto as obras iniciais das poetas Alda Espírito Santo, Alda Lara, Conceição Lima, Noémia de Sousa, Ana Paula Tavares e Vera Duarte. Para Pereira, há unidade entre elas na construção social do sujeito feminino. Os poemas são lidos à luz da hermenêutica do cotidiano feminino e por informes oficiais sobre a situação social das mulheres nos contextos em que se inscrevem. A perspectiva é a da condição feminina (nas “submissões”, “encruzilhadas” e “resistências” da subjetividade) como voz subalterna e envolta no cotidiano, mas de pungente potencial transformador. O trabalho apresenta discussão de gênero, citando várias autoras, com destaque para Elaine Showalter e Joan Scott. Pereira enfatiza a ruptura que o cruzamento de cotidiano (casa, família, ancestralidade) e gênero, operado nos poemas estudados, realizou sobre os cânones nacionais, por exemplo, ao relacionarem maternidade e pátria ou ao explicitarem a subjetividade desejante e erótica (como em Ana Paula Tavares e Vera Duarte), além de dignificar o lugar das mulheres na construção de nação.
  Vera Lúcia da Silva Sales Ferreira, em tese de 2011, usa a imagem do “carpir”, seja como choro da dor do outro (as carpideiras), seja como marca textual (a capina), para apresentar, também em perspectiva panorâmica, a construção de poemas nas escritoras Alda Lara, Amélia Dalomba, Ana Paula Tavares, Maria Alexandre Dáskalos, Yolanda Morazzo, Odete Semedo, Noémia de Souza, Alda Espírito Santo e Conceição Lima. Ao selecionar nomes dos cinco países africanos de língua portuguesa, Ferreira pensará os poemas como retratos da condição feminina e da condição nacional, em diálogo com a tradição e com a oralidade. De outro lado, a pesquisadora aponta para a condição de deslocamento e hibridismo nos poemas em tela. Ao investigar a construção do gênero poético (figuras de linguagem, intertextualidade, sintaxe da oralidade), porém, Ferreira praticamente não toca nos temas de gênero a partir de bibliografia específica.
  A dissertação pioneira sobre Noémia de Sousa foi defendida em 2014, por Carla Maria Ferreira Sousa. A pesquisadora estudou o livro Sangue negro a partir do engajamento político dos poemas, destacando, além do ambiente estético no qual Noémia se formou, a condição resistente dos textos da poeta moçambicana. Além de ler os poemas à luz das ideias de militância e engajamento social, a estudiosa apresenta a trajetória da poeta a partir da noção de “Atlântico Negro”, cunhada por Paul Gilroy, em particular na análise do poema dedicado a Jorge Amado e naqueles que tratam da música estadunidense (o blues, o jazz), enfatizando, portanto, a aderência à negritude na poesia de Noémia de Sousa. Ainda que bastante se mencione na dissertação a intersecção de raça, classe e gênero, não há abordagem específica das questões quanto à autoria feminina.
A poesia de Odete Semedo é analisada na dissertação de Karina de Almeida Calado (2015). Sob a perspectiva da imaginação de nação através da obra No fundo do canto, Calado discute a noção de “cantopoema” enquanto forma discursiva de imagens da ancestralidade guineense. No “cantopoema” estariam conjugadas identidade nacional e identidade da voz poética. A pesquisa de Calado se orienta pelos Estudos Culturais, mostrando a diversidade étnica e linguística a partir da exposição das relações entre oralidade e literatura. A análise do gênero poético peculiar de Semedo se dá, além da problemática social e histórica do contexto, pela discussão das influências das cantigas de mandjuandadi na obra e pela análise do épico e do lírico em No fundo do canto. Como a pesquisa discute nação e identidade, a temática do gênero não é considerada.
Noémia de Sousa também foi a escolha de Leonardo Alonso dos Santos (2017), em dissertação sobre a condição de resistência solidária presente na poesia da intelectual moçambicana. Discute-se a presença colonial e sua subjugação de identidades para, em contraponto, apresentar nos poemas de Sangue negro uma literatura de combate ancorada em princípios humanistas novos. Destacando a função social da literatura, Santos se apoia em Boaventura de Sousa Santos e em Hannah Arendt para rever epistemologicamente a situação da poesia, apontando sua condição de libelo da resistência moçambicana. De outro lado, ainda que haja uma seção da dissertação sobre a “voz feminina”, não se discutem questões de gênero no trabalho, pois a poesia de Noémia é analisada na sua condição de luta coletiva e de solidariedade a partir da negritude.
Lília Maria Santiago de Lira também tratou da poeta de Sangue negro em dissertação defendida em 2017. Além da contextualização do processo histórico no qual emergiram os poemas de Noémia de Sousa, a pesquisadora enfatiza o “eu lírico feminino”, com a expressão “feminino” citada nas palavras-chave do trabalho. O referencial é pós-colonial (Edward Said, Homi Bhabha), feminista (Simone de Beauvoir), mas também parte da intersecção de gênero e subalternidade proposta por Gayatri Spivak. A estudiosa propõe que a condição feminina do eu lírico seja lida na integração à voz coletiva, no resgate da altivez da negritude e na solidariedade com os despojados pelo processo colonial. Ainda assim, mencionam-se poemas expressando tanto a voz feminina silenciada quanto a revolucionária, com a presença de imagens como a Mãe-África, a irmã Lua e as “moças das docas”, o que não resulta, entretanto, em análises propriamente a partir dos estudos de gênero.
Em dissertação defendida em 2017, Élen Rodrigues Gonçalves trouxe a primeira análise exclusiva da poesia de Conceição Lima. O trabalho de Gonçalves, amparado em teóricos como Gayatri Spivak e Édouard Glissant, discute a formulação identitária na poeta, contrapondo-a à homogeneização do discurso colonial e apontando a condição diaspórica e crioulizada como característica dos poemas de Conceição Lima. Nas palavras-chave há tanto “literatura de autoria feminina” como “escritas de gênero”. Investigando os livros O útero da casa, A dolorosa raiz do Micondó, e O país de Akendenguê, Gonçalves destaca, em seus termos, a subjetividade multicultural e diaspórica das mulheres negras dos países periféricos, tal como expressadas nos poemas, em particular associando a mulher africana à resistência, à ideia de “mátria” e à desconstrução do conceito de lar, quando a tensão entre a rememoração do passado e o combate ao presente ressignificam o papel social da mulher.
Daniela de Souza Vianna pesquisou a poesia de Noémia de Sousa em dissertação defendida em 2018. A pesquisa inova ao trazer a leitura de Sangue negro a partir dos espaços geográficos contemplados nos poemas, articulando história e política aos lugares. Pensando os poemas de Noémia como orientados para o devir, para a transformação, Vianna mostra como os espaços sociais marginais de Moçambique, mesmo que também sejam lugares de manifestação da opressão, articulam a utopia e a resistência, propondo uma geografia anticolonial. Ao propor a intersecção de Geografia e Literatura, Vianna aponta uma perspectiva de investigação inovadora, evitando a abstração na leitura dos poemas de Noémia de Sousa. Se o poético é lido como rediscussão da história, não se faz, porém, qualquer menção à condição feminina da poesia da autora moçambicana.
Também de 2018 é a dissertação de Maysa Morais da Silva Vieira, analisando em contraponto os poemas de Sangue negro, de Noémia de Sousa, e os de Imaginar o poetizado, de Sônia Sultuane. A partir de referencial feminista (bell hooks, Simone de Beauvoir, Michelle Perrot), o trabalho propõe a análise do “eu feminino” nas duas poetas moçambicanas, pensando no lugar social da produção dos poemas, seja no espírito combativo em Sousa, seja na abertura à subjetividade em Sultuane. A perspectiva analítica é interessante, na medida em que aborda as poetas a partir da discussão de gênero, mas também na diferença cronológica e social que informam os poemas de ambas. Identificando Sousa à voz coletiva e aliada à tradição e Sultuane à voz individual e aliada à modernidade, a investigação ressalta pontos comuns às poetas, como a expressão das vivências e a busca de significar e dar lugar de fala à condição feminina. De outro lado, Noémia de Sousa identificaria a mulher à noção de África, enquanto Sultuane, através da subjetividade, expressaria uma condição mais descentrada, aberta e indefinida em termos identitários.
A poesia do livro O lago da lua, de Ana Paula Tavares, foi objeto da dissertação de Michel Augusto Carvalho da Silva (2018). O pesquisador destaca as componentes da oralidade como matriz dos poemas engajados na denúncia e na resistência das mulheres angolanas. Discutindo as identidades africanas à luz da teoria pós-colonial, Silva aponta para uma reinscrição do papel feminino na tradição, onde ritos culturais das mulheres (casamento, maternidade) e cotidiano (os trabalhos domésticos) são ressignificados enquanto estratégia discursiva da memória poética. A subjetividade feminina, porém, encontra-se articulada à voz coletiva, por exemplo ligando o corpo feminino à terra angolana. Há um esforço hermenêutico dedicado aos poemas e ao desvendamento do sujeito lírico de Paula Fernandes, mas o trabalho não adentra às discussões dos estudos de gênero sob bibliografia específica.
Mariana Alves Barbosa (2018) também fez sua dissertação sobre Sangue negro, de Noémia de Sousa. A pesquisa destaca a noção de africanidade presente nos poemas sob escrutínio, apontando a dupla exclusão, racial e cultural/colonial, contra a qual eles foram escritos. Barbosa faz a leitura dos poemas selecionados considerando o diálogo com a negritude e com a noção de “máscaras brancas”, não tratando, portanto, da exclusão de gênero. Nesse particular, o contexto histórico da produção artística e intelectual de Noémia de Sousa é ressaltado, apontando para o viés universalista da noção de Mãe-África.
Sob a ótica da resistência feminina, as poetas Alda Espírito Santo e Conceição Lima são analisadas conjuntamente na dissertação de Paulo Sérgio Gonçalves (2018). Da primeira, são tratados os poemas de É nosso o solo sagrado da Terra – poesia de Protesto e Luta, e de Conceição Lima são lidos poemas dos livros O útero da casa, A dolorosa raiz do Micondó e O país de Akendenguê. A resistência feminina é acompanhada enquanto conscientização possível pela literatura, apontando para a representação social assumida pelas poetas de diferentes gerações, sendo a poesia de Alda vista como legado na obra de Conceição Lima. Combinando apresentação histórica e análise interpretativa dos poemas, a pesquisa não traz discussões junto aos temas de gênero. Para Gonçalves, a poesia de Alda Espírito Santo apresenta o papel das mulheres no processo de libertação do colonialismo, em particular no pan-africanismo e na ideia de Mãe-Terra. Já Conceição Lima traria a continuidade daquela discussão, expressando de modo feminino o “sentimento africano”.
A dissertação de Roseleine Vitor Bonini (2018) aborda a poesia de Noémia de Sousa, no livro Sangue negro. A investigação se concentra na temática da identidade, observada à luz do processo histórico moçambicano, particularizando a condição das mulheres naquele quadro, como na análise do “corpo feminino colonizado” (embora também o “homem colonizado” seja discutido). A experiência de mulher mestiça teria sido ponto essencial para a postura engajada da poeta. Ainda que não traga referenciais dos estudos de gênero, a dissertação se destaca ao analisar alguns poemas à luz dos mecanismos de dominação patriarcal. A temática da identidade, portanto, aparece no trabalho entrelaçada pelas noções de gênero e nação.
Por fim, a dissertação de Camila Dias de Souza Christo Aleixo (2018) pesquisou a poesia de Conceição Lima, no livro A dolorosa raiz do Micondó. Ressaltam-se, no trabalho, as noções de raiz e de testemunho, mostrando como a poética de Lima trata a catástrofe histórica. Sob a imagem da exposição da raiz da violência e da catástrofe, Aleixo trata os poemas como reflexões sobre a dignidade e como elementos de conscientização social. O movimento crioulizado que os poemas fazem sobre a tradição explicita a denúncia da violência colonial e aponta para a reestruturação do presente. O testemunho, desse modo, presente nos poemas, é um convite à organização coletiva, revertendo a herança catastrófica.
Os trabalhos acima arrolados, como advertimos, são bastante recentes, mas nota-se neles já algumas saturações e redundâncias, como no caso das análises sobre Noémia de Sousa. No plano geral, as análises de literaturas africanas na pós-graduação brasileira não abdicam da contextualização, usualmente traçando percursos biográficos dos nomes estudados e, principalmente, retratos históricos do percurso das nações africanas do colonialismo à independência, destacando sempre as questões de identidade (tanto a negritude quanto o hibridismo, numa tensão algo irresolvida em termos analíticos) e de nação (o contradiscurso literário em nome do múltiplo e dos subalternos).

Considerações finais

Se a discussão da poesia está presente em todas as pesquisas selecionadas, ela não se faz de modo homogêneo, havendo análises via imaginário, leituras de poesia como mimese do percurso histórico de nação, investigações estruturais dos poemas e propostas de politização da leitura do poético. Insiste-se, porém, na abordagem de poesia em moldes muito próximos da leitura de ficção, buscando-se na palavra poética uma representação dos mesmos moldes da prosa, o que certamente demanda mais estudos críticos sobre as diferentes condições miméticas entre a poesia e a prosa literária.
Quanto às discussões de gênero, elas estão presentes em pelo menos metade das dissertações e teses selecionadas, mas raramente com atenção teórica às especificidades das mulheres africanas. As teses e dissertações que trazem referencial dos estudos de gênero, muitas vezes se apropriam da discussão a partir de nomes do pós-colonial, como Homi Bhabha, Stuart Hall e Gayatri Spivak. Em outros casos, citam-se e discutem-se nomes mais característicos daquelas propostas epistemológicas, como Simone de Beauvoir ou Judith Butler. Ainda que as pesquisas não pensem as mulheres africanas, enquanto autoras e enquanto parte da sociedade representada nos poemas, como uma essência, reificando-as no papel colonial a elas atribuído (reprodutoras do atraso, do exotismo e do erotismo), não há, entretanto, investigações mais profundas sobre as relações entre patriarcado e matriarcado na especificidade das nações e povos africanos. Nota-se a ausência de referências teóricas do feminismo negro (bell hooks, Angela Davis) e, principalmente, das teóricas africanas, como, por exemplo, da nigeriana Ifi Amadiume (1997) e da moçambicana Isabel Maria Casimiro (2014). Casimiro tem significativa discussão sobre as lutas das mulheres moçambicanas a partir do processo de independência, contrariando imagens deturpadas de subordinação e inação política. Já fora do continente, mas com reflexões pertinentes para a recepção brasileira das literaturas africanas, teríamos a contribuição de Lila Abu-Lughod, tratando dos limites do relativismo cultural a partir do posicionamento ocidental (em particular das mulheres ocidentais) quanto às mulheres muçulmanas. A autora insiste na diferença entre as mulheres do mundo, algo que já se evidenciara na década de 1970, quando a ONU passou a coordenar reflexões e ações globais visando as mulheres. Assim, quando falamos de poesia africana de autoria feminina, um dos pressupostos é que se reflita sobre o que é poesia “africana” e o que entendemos por autoria feminina “africana”. O caminho sugerido em algumas das dissertações e teses é o da leitura cultural, entendendo a poesia de autoria feminina como elo indispensável com as tradições africanas, correndo-se o risco do anacronismo ou de uma correspondência essencial entre mulheres e ancestralidade, desconsiderando o permanente jogo de forças entre modernidade e tradição inerente aos processos colonial e pós-colonial.

Referências

ABU-LUGHOD, Lila. “As mulheres muçulmanas precisam realmente de salvação? Reflexões antropológicas sobre o relativismo cultural e seus Outros”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, mai./ago.,2012.

ALEIXO, Camila D. de S. Christo. Do Micondó ao Mangue: desenterrar a dolorosa raiz de Conceição Lima. Mestrado em Letras. Ouro Preto: Universidade Federal de Ouro Preto, 2014.

AMADIUME, Ifi. Re-inventing Africa. Matriarchy, religion and culture. London & New York: Zed Books, 1997.

ÁVILA, Mara Regina Ávila de. Pela poesia de Ana Paula Tavares: vozes e ecos de Angola em África. Mestrado em Letras. Rio Grande: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2010.

BARBOSA, Mariana Alves. Sangue negro – máscaras brancas: a negritude moçambicana em Noémia de Sousa. Mestrado em Estudos da Linguagem. Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2018.

BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.

BONINI, Roseleine Vitor. A poética de Noémia de Sousa: História e identidade em Moçambique colonial. Mestrado em Letras.  São Paulo: Universidade de São Paulo, 2018.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

CALADO, Karina de A. Ancestralidade e imagens de nação no cantopoema “No fundo do canto”, de Odete Semedo. Mestrado em Letras. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 2015.

CASIMIRO, Isabel Maria. Paz na terra, guerra em casa: feminismos e organizações de mulheres em Moçambique. Recife: Editora da UFPE: 2014.

COSTA, Fernanda Antunes Gomes da. Paula Tavares e a poética dos sentidos. Doutorado em Letras. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014.

COSTA, Sérgio. Dois Atlânticos: teoria social, anti-racismo, cosmopolitismo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

DALCASTAGNÉ, Regina. “A crítica literária em periódicos brasileiros contemporâneos”. Revista Estudos de literatura brasileira contemporânea, n. 54, p. 195-209, maio/ago. 2018.

FERREIRA, Vera Lúcia da S. Sales. Lembrar e carpir: estratégias de construção de poemas escritos por mulheres nas literaturas africanas de língua portuguesa. Mestrado em Letras. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 2011.

GONÇALVES, Élen R. Escritas indeléveis em veredas distópicas: manifestações de identidade e subjetividade na obra poética de Conceição Lima. Mestrado em Letras. Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora, 2017.

GONÇALVES, Paulo Sergio. A literatura santomense e a resistência feminina por Alda Espírito Santo. Mestrado em Letras. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2018.

LARANJEIRA, Pires. “Bibliografia crítica essencial”. Revista Discursos, n. 9, 1995.

LARANJEIRA, Pires. “Universos das literaturas africanas: epistemologias variadas, rizomas como raiz, glocalizações e levantados do chão”. In: __ GARCÍA, Flavio; MATA, Inocência (orgs.). Pós-colonial e pós-colonialismo: propriedades e apropriações de sentido. Rio de Janeiro: Dialogarts Publicações, 2016.

LIRA, Lília M. S. Identidade e resistência na escrita de Noémia de Sousa. Mestrado em Letras. Teresina: Universidade Estadual do Piauí, 2017.

MACHADO, Marcelo Pereira. As piscadelas poéticas e o corpo feminino como vislumbramento de um espaço selvagem em Paula Tavares. Mestrado em Letras. Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora, 2006.

MOTA, Pamela Maria do Rosário. Entre as veias finas da escrita: metáforas do sangue na poética de Paula Tavares. Mestrado em Letras. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014.

PADILHA, Laura Cavalcante. (2010). “O ensino e a crítica das literaturas africanas no Brasil: um caso de neocolonialidade e enfrentamento”. Revista Magistro, v. 1, n. 1. 

PEREIRA, Érica Antunes. De missangas e catanas: a construção social do sujeito feminino em poemas angolanos, cabo-verdianos, moçambicanos e são-tomenses. Doutorado em Letras. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2010.

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SOUSA, Noémia de. Sangue Negro. São Paulo: Editora Kapulana, 2016.

VIANNA, Daniela da G. S. de S. As geografias anticoloniais em Noémia de Sousa. Mestrado em Letras. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2018.

VIEIRA, Maysa M. da S. Os percursos estéticos e ideológicos em Noémia de Sousa e Sónia Sultane: uma análise do eu feminino na poesia moçambicana. Mestrado em Letras. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 2018.







[1]  Um dos problemas do Catálogo da CAPES é a indexação. A pesquisa para “Ana Paula Tavares”, por exemplo, não retorna alguns trabalhos indexados em “Paula Tavares”, infelizmente ausentes neste artigo.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Quando vieres ver um banzo cor de fogo, de Nina Rizzi. (São Paulo: Patuá, 2017)


Em 2017, Ano 463 da Deglutição do Bispo Sardinha, Nina Rizzi teve publicado pela Patuá (“livros são amuletos”, nunca talvez tanto quanto no livro de Rizzi), o seu Quando vieres ver um banzo cor de fogo. Após um poema prefacial, pode-se dizer que é com “ninadí ricy” que o livro é inaugurado. Ali já se insinua a poética decolonial que orienta os textos da obra. Ecoa a deglutição do Bispo e a resistência nomeada por Oswald de Andrade, no Manifesto Antropófago, como a “peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo”.

ninadí ricy

eu já fui u'a índia

falava co fogo co'as águas plantas y ventanias
coisas da terra e da boca do céu

dançava me banhava nuinha co'a maloca toda

mai'bão memo
era cumê homi branco

Está em jogo, o tempo todo no livro, a batalha por um falar selvagem (“deixai falar o animal”). No Catatau, de Paulo Leminski, para citar só um trecho, o homem racional Cartesius é invadido por aquele falar animal (“tenho assomos de fera”). A operação no livro de Nina Rizzi, porém, vem de outra direção, talvez pela sobreposição de fera a fera. Não se animaliza nada, na medida em que já se parte daquela condição: “o animal que logo sou” (Jacques Derrida). Já se parte do lugar-Iauaretê. Tanto assim que Rizzi, na “primeira poema” (para usar a estrutura da poeta, que feminiza o poema, compondo a própria differánce, estrutura que usaremos daqui em diante neste texto), postula uma condição que já vem do passado, de quando foi índia. Um livro assim exige algo da crítica que certamente não alcançarei aqui. O desafio de tal projeto poético foi enunciado por Jacques Derrida, no texto supracitado. Para o filósofo, a liberação de animots (algo como animais-palavras) tinha na recusa da fábula sua primeira condição. Cito o trecho de Derrida: “Como acolher ou liberar tantos ANIMOTS em mim? Em mim, para mim, como eu? Isto teria dado ao mesmo tempo mais e menos que um bestiário. Seria preciso sobretudo evitar a fábula. A afabulação, conhecemos sua história, permanece um amansamento antropomórfico, um assujeitamento moralizador, uma domesticação. Sempre um discurso do homem; sobre o homem; efetivamente sobre a animalidade do homem, mas para o homem, e no homem.” Aí o que se pode pensar como uma das questões a se fazer ao livro de poemas de Nina Rizzi. Por exemplo: o quanto a condição prosaica de parte das poemas não reduz o falar animal ao discurso assujeitado. É só uma dúvida, até mesmo por talvez não haver sujeito ali, o que discutirei mais abaixo.
Antes, é bom lembrar que a busca do asselvajado tem uma tradição literária, o que não significa origem, naturalmente. Está no desregramento dos sentidos das estações no inferno, está no surrealismo, na poética beatnik, na etnopoesia. Há um quê de escrita em transe, formas do êxtase das transas, algo ali que me conduziu ao Néstor Perlongher. Encontro muito da alucinação sintática do argentino nas poemas de Rizzi. O que, já adiantando a discussão do sujeito ou de sua ausência, deixa a questão do sujeito lírico em dimensão quase oitocentista. Em Rizzi são poemas vocativos, interpelativos, dirigidos por pronomes de tratamento: você, tu, “sua boceta”. Quem fala? Perlongher resolvia o problema com o apagamento: “Flotamos, no tenemos nombre”.  Em Rizzi, corre-se permanentemente o risco do sujeito, mas é possível porém falarmos numa ausência, definida por outrem como tendo “olhos de quem nunca existiu”, num corpo poroso, atravessado (“uma voz me atravessa os olhos, a garganta”), a piscina dos olhos e as outras poças cristalinas, a boca, a vagina. Suas convocações, você, tu, “a mulher que deita comigo”, contrapõem ausência a ausência, na medida em que o diálogo é monologado. O procedimento está em muito da poesia de Hilda Hilst, como em Da morte. Odes mínimas. Hilst conjuga o gozo com o outro à condição de poeta e introduz um elemento definidor pela ausência: a morte. Na ode XXXII, de Hilst: “Por que me fiz poeta?/Porque tu, morte, minha irmã,/No instante, no centro/De tudo o que vejo.//No mais que perfeito/No veio, no gozo/Colada entre mim e o outro.” A morte é o que se vê, e sempre colada causando limes entre os corpos. Já em Ana Cristina Cesar, também pródiga no lirismo vocativo (intitulando de “A teus pés” uma de suas obras), a questão seria bem outra. Não há nela a busca do selvagem. Marcos Siscar fala numa “poética da interrupção” que, se evita a lucidez apolínea, ainda assim não instaura o fluxo espontâneo do corpo e suas experiências. Interrompe-se, por deslocamento, nos poemas de Cesar, a própria biografia.
Com Nina Rizzi talvez se dê o mesmo, mas por outros caminhos de deslocamento. Destaco as operações sobre a língua, pedras no caminho do mero retrato mimético, da mera biografia de alcova. A transa que às vezes pode ser parafraseada nos poemas vem quase sempre sob uma forma inconformada (que não é a da rebeldia vazia, entretanto). Acontece na já mencionada subversão de gênero do poema (“amar a poema”, “nomear a poema/uma mulher e a poema possível”, “há uma poema que diz” etc.). Acontece também nos barbarismos e estratégias oralizantes tropicalistas decoloniais (mas com uma doçura que lembra o porquinho da índia do Bandeira):

moenda

di dia mim pônho a muê
di garapa i di melaço
vô num braço vô cu otro
mai'm noitinha é ocê;
qui mim mói todinha

Também na crioulização da língua, atravessada de hispanidade, referências índias e inventalínguas. Um gozo da língua em trânsito, como no poema a seguir:

toré na cidade cheia de olhos

umas horas y listo
quedas para o alto
um rio pra narciso

uns lugares sem olhos y
me exorbita toda sangre
- - até a pura água negra

fios brancos encarnados esparramados
pela casaoca – y canta a casaoca óóca
o coyote ri! é um selvagem y uiva y ri

Penso que Rizzi consegue fazer a crítica das poéticas brasileiras da razão que, se tiveram bons resultados em João Cabral de Melo Neto ou na poesia concreta, por outro lado saturaram muito da poesia dos anos oitenta. Não é algo programado no livro, o livro de Nina não se faz em função exclusivamente de negação do que também poderíamos chamar de positivismo da poesia brasileira, mas o que é mais interessante é que o desfazer daquela herança não se dá na exposição de intimidades biográficas não mediadas, típicas da poesia de chororô romântico. É com o pan (“o desejo-mundo todo”) e o trans da sexualidade que as poemas do livro assumem seu lugar. Um lugar que não apenas é conduzido pelo desejo como atinge mesmo certa melancolia do silêncio (“que importa metafísica/ranger de dentes/se eu durmo o dia inteiro”). Uma poema define melhor o que tento dizer sem conseguir:

roteiro pra tanto más

1
não guardar nenhum livro
desgarrar-me do eu-humano

- poupar os enfins

2
descer o sentido corpo contra qualquer razão,
evitar até o alzheimer todas as palavras:
...
me despregar de toda composição
e só o S.elvagem

Em 2017, ano de Quando vieres ver um banzo cor de fogo, também comemorávamos os 47 anos da edição de Banzo, saudade negra, de Oliveira Silveira, poeta que escreveu “Banzo preto não é saudade prata./Saudade dói e maltrata/banzo rói, carcome e mata.” Os poemas de Nina Rizzi, porém, colorem diferentemente o banzo. Há uma positividade afirmativa (a cor de fogo) no banzo da poeta. Poemas que desejam e tematizam a boa foda e o encantamento desejante, em nome do que, no Manifesto Antropófago, vinha como “a existência palpável da vida”, e na promessa de que “a alegria é a prova dos nove”. Como escreve Nina Rizzi, “é preciso politizar a ferida”, o que se faz com a reversão de gênero da poema, com o voo sem escalas pelos jardins selvagens da mulher que já foi índia, que é negra, e em palavras de abysmo que só dizem amor. Um livro que em cada um dos espaços e caracteres convoca corajosamente o amor dos corpos em tempos de projetos obscurantistas de governo que falam em abstinência sexual. Um livro para nos “virar os avessos”.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Dente de cachorro, de Cristiano Moreira (Florianópolis: Nave/Nauemblu Ciência e Arte, 2018)


A expressão “dente de cachorro”, nos diz uma nota introdutória, é um erro tipográfico cuja marca é a introdução de espaços exagerados entre palavras ou letras. Eu partiria daí na leitura do livro, mas o título na capa me conduz ao contrário do espaçamento, pois a expressão vem grafada sem os tais dentes: “dentedecachorro”. Espero encontrar nos poemas uma negociação ou tensão entre o espaçamento e seu contrário, entre o muito distante e o muito próximo. Distante parece ser a proposta poética de Cristiano Moreira diante das referências mais imediatas na poesia contemporânea. Primeiro que há um andamento dramático (enquanto gênero, drama, e não como adjetivo para o exasperado), em alguns dos poemas, como nos longos “sinuca” e “deserto, de resto”. São poemas que tematizam diálogos, íntimo (uma conversa com o “pai”) e pressuroso (a remoer os golpes políticos recentes), como em “sinuca”, e mais ritualizados, hieráticos, em “deserto, de resto”. O segundo distanciamento decorre do primeiro, pois ao instituir a conversa como mote dos poemas, Cristiano Moreira descarta a exposição de vísceras umbilicais, as eternas autobiobibliografias de certa poesia cansativa e cansada que rema a favor da corrente. A conversa, a instituição de vozes em contraponto, nada disso é muito comum hoje. O que dá um ar adulto ao livro, outra diferença significativa no mar hodierno de playgrounds. Uma conversa é um aperto de mão, aquele gesto ao mesmo tempo próximo (de humanidade) e distante, polido, público, isto é, da pólis. Cristiano Moreira dá a pista citando prosadores calejados, Osman Lins, João Antônio. Também há um Flaubert evocado na “impressão justa”. De fato, não há graça ou gratuidade nos poemas. Eles exigem uma firmeza pública, política, e mesmo popular (por serem partilha do simples: a mesa de sinuca, o pife, a palha). A ética dos poemas, ao mesmo tempo em que é denúncia, do golpe, da repressão, da violência política, também é conversa olho no olho, como em “zezuíííno”, que, sim, pode dar no seu reverso que é a morte. Cito do poema o trecho final:

zuzuíííno (assoviava o vento alongado)

viu a vaga no reflexo da lâmina

zezuíno olandino e olandino zezuíno
ambos fernandes estranho
estranho nem tanto

homo homini lupus

cara a cara

mano a mano


Encontro nos poemas de Dente de cachorro uma atenção manual com o fazer poético. São interlocuções (e que beleza pensar o “mano a mano” na condição de espelho e também de interlocução de mãos), daí que recusem o empolado e o grandiloquente. Não há nada de açucarado. Açucarados são os maus poemas, sabemos disso na poética de um João Cabral de Melo Neto. Abel Barros Baptista pensou os poemas de Melo Neto e a prosa de Graciliano Ramos sob a alcunha “agreste”. Penso em algo assim ao ler o livro de Cristiano Moreira. Se em Baptista a noção de agreste tem relação direta com o Nordeste, com a metonímia resultando em “materialista”, penso que haja materialismo no Dente de cachorro, mas é um materialismo estrutural (não figurativo, daí que eu rejeite a referência que o próprio Cristiano cunhou na sua dedicatória à minha pessoa: “novena de imagens de um presente adverso” – simplesmente não creio ser um livro de imagens), lógico. Eu escrevi “atenção manual” pensando na atenção materialista ao fazer, na modelagem do poético. Gosto muito do que escreveu Paul Celan na “Carta a Hans Bender”, de 1960: “Só mãos verdadeiras escrevem poemas verdadeiros. Não vejo nenhuma diferença de princípio entre um aperto de mão e um poema”. Outra referência que trago da mesma carta de Celan é quando fala que “poemas são também oferendas – oferendas àqueles que são atentos. Oferendas que transportam um destino.” As oferendas do livro de Cristiano Moreira são sutis (servem aos “que são atentos”). Falam sob o peso da morte, da infância, do desvalimento, do que não passa de palha, do que é o popular, ao rés-do-chão. Falam de tais instâncias a partir da lógica do jogo de salão, numa conversa que, mesmo não gritada, é atravessada pelos nomes que as coisas de fato têm: “estado de exceção”, “cacetete”, “bala de borracha”, “golpe”, “o rosnar do camburão”, “embora o país claudique”. Não falam violentamente do já que é violento. A dicção se mantém polida, numa eloquência clássica (daí a “impressão justa” flaubertiana). Pascal, nos Pensamentos, define assim a eloquência: “A eloquência é a arte de dizer as coisas de maneira: 1º que aqueles a quem falamos possam entendê-las sem dificuldade e com prazer; 2º que nelas se sintam interessados, a ponto de serem impelidos mais facilmente ao amor-próprio a refletir sobre elas.” O que podem os poemas? Eles são poemas, eles devem resistir. É por resistirem que nos impelem à reflexão e ao agir. Ainda que o ente poético se anuncie desolado, numa sinuca, sujeito ao falível e incapaz de mudar o destino coletivo, restam-lhe as formas de vida “outras” que são os poemas. No caso de Cristiano Moreira, a palavra é justa e o mote sincero, humanista, dádiva dirigida ao outro em nome de um encontro, que as soluções são e serão sempre partilhadas, ainda que, para encerrar também com Celan, um poema como dádiva seja a mensagem numa garrafa lançada ao mar. O muito próximo e o muito distante do que é o “dente de cachorro” e de como ele é grafado na capa “dentedecachorro” fazem jogo nesse tomar o poema como encontro, uma conversa que é também um distanciamento do eu. É em tal direção de minha leitura, que muito ainda teria a dizer de um livro tão enxuto, o poema “novena contra chumbo”:

uma novena traz a escuridão
noves fora: na mordaça o chumbo
nas vozes do país        desolação
rima com o levante, com o lodo

e com todos os lobos dentro da casa
importa o levante na voz, na estrada
ainda que tentem impedir, ainda que rouca
o eco dos tiros não pode calar a boca

importa seguir
o poema ainda é à prova de balas