A poesia pode ser mercadoria? Deve ser valor de troca? O que nos faz
acreditar que não, nessa espécie de santidade feliz e imbatível dos poetas?
Poetas, quase todos, publicam seus poemas de graça, por exemplo, aqui. Só um
poeta ingênuo não sabe que publicar um poema aqui enriquece o dono do Facebook.
Sem contar possíveis revisões legais futuras quanto a direitos de autoria. Mas
quem se importa? Poetas (eu entre eles) babam por qualquer aceitação: um editor
que os publique de graça (e que, além de nunca pagar ao poeta ainda por cima
lhe venda seus próprios livros), alguém que os convide para um sarau, qualquer
linha elogiosa aos poemas etc. Artistas outros não se dão assim de graça, mas
os poetas sim. Imaginemos por um instante porém que a resposta possa ser sim,
isto é, que a poesia deve sim ser mercadoria, por ser trabalho humano num mundo
de mercadorias. Não confundir com o discurso de um Agamben, que coloca a
questão comparando o poeta ao carpinteiro, mas não discute o valor de troca do
poema. O poeta precisa virar publicitário se o poema se tornar mercadoria? E os
poetas que já são publicitários (desculpem a blague)? E não o serão a seu modo
todos os poetas? Como fazer o questionamento que dê fim à santidade poética?
Talvez de um modo bem direto, tomando o poema como mercadoria mesmo, e não do
modo indireto como defende, por exemplo, um Bourdieu, que vê na arte sem
mercado uma espécie de aposta num mercado adiado, logo, ainda assim mercado. Se
houvesse uma tabela como há no sindicato dos músicos ou dos atores, se houvesse
como seria? Dois versos, um copeque? E o cigarro e os jornais e os hotéis
baratos e as noites em claro? Dez copeques a hora divagada? Mas a quem venderia
o poeta, ao editor? E a venda direta ao leitor (ou o financiamento antecipado
de um livro), seria típica do poeta aburguesado, logo vendido? De outro lado: o
poema deve ser dado? O poeta é o mais heroico dos bodes expiatórios da catarse
artística: faz poemas e os dá. Publica seus poemas, fruto do trabalho, de
graça. Paga pra isso. Faz questão. Pede desculpa quando cobra. Entende quando
não pagam. O mais cachorrinho masoquista com os editores. E até escreve um
texto, como eu aqui, para justificar o que se seguirá. Mecenário, mas não
mercenário, o poeta vive de bolsa da Capes, salário de bancário, de professor,
o poeta é um advogado, um filhote do edital, do prêmio, da herança do pai, do
toco de vela. Sarau é de graça. Sair em antologia é de graça. Publicar em
jornal (quase sempre) é de graça. Por isso também poesia acaba sendo muita
falação e troca de favores. Falação como: panelas, prêmios, uma linha na Folha
ou no Estadão etc. Troca de favores como resenha meu livro que eu resenho o
seu. De certo modo, quem já não dançou assim (e nem acho que isso comprometa
exatamente a abordagem crítica, ela em si um diálogo de criadores)? Já
critiquei livro de amigo e já elogiei livro de amigo. Mas quem lê o poeta senão
o amigo poeta e a mãe do poeta (que não entende que o filho é poeta e muito
menos a porra que ele escreve)? E será que ser também falação e troca de
favores não impede que a poesia seja outras coisas, talvez melhores? Li um
poeta defendendo que a poesia deva ser feita para vários públicos e que a
poesia brasileira é dominada pela escrita culta, a ser, senão ultrapassada, ao
menos deslocada da centralidade. As vendas do Leminski póstumo (adoro um vídeo
no qual Waly Salomão, imaginem quem, diz que Leminski é a Hebe Camargo da poesia
brasileira) são só uma parte de um processo mais amplo: poetas pop, poetas de
televisão etc. e poetas que vendem e atingem segunda edição e monopolizam as
polêmicas poéticas no Brasil. Existe sim poesia pop para vulgarização da poesia
(e não vai exatamente um juízo valorativo aqui). O que a canção já fez (ser
poesia atenuada: perdoem a grosseria para fins de argumento já que há canções a
léguas qualitativas de muita poesia dita boa) agora a própria poesia faz. Mesmo
dizendo todo o tempo ter mais editados que leitores (mais ou menos isso),
editores de poesia continuam publicando livros e cada vez mais (ainda que para
as trupes de amigos, com tiragens menores). Uma editora como a Patuá tem
dezenas e dezenas de poetas, e o livro de poesia ali, ainda que publicado de
graça, é mercadoria. E são livros bonitos, capa dura e tal, muito esmero mesmo.
Para se gostar (se assim desejado) para além da própria poesia (o que não
impede que haja excelentes poetas no seu catálogo). E graças aos deuses que o
seja, acho um trabalho belíssimo. Cada um tem seu caminho, mas de minha parte,
penso em fazer o seguinte para parar de pensar o poema como uma resistência
santa (o poeta é o último religioso, quando não obscurecido pela astrologia
etc. e tal): só eu me vendo e só vendo do meu. Não postarei mais poemas aqui
por entender que trabalho de graça para o dono dessa joça. Então, palavras de
graça continuo dando de graça. Os poemas não, mas seguirei publicando em
revistas, elas que fazem um trabalho gigantesco de diversificação pelo
enriquecimento do sistema poético, mas como uma espécie de brinde ou propaganda
(poeta se borra com essa palavra) aos leitores. Fragmentos, estudos e obras em
processo de preferência. Fora que peguei uma birra danada de editor. Livro de
poesia meu só eu mesmo publicarei pela minha Paulo Honório Edições sem arte e
os venderei aos interessados. Pegarei empréstimo, trabalharei por fora, como todo
poeta, e encomendarei o livro numa gráfica. Ganhar dinheiro, ficar rico? Riam.
Só não vou ser ingênuo ou escravo. Criar mercado para a poesia? Não creio, nem
tenciono, ainda que ele exista sim como nicho. Apenas vejo incoerência em ser
publicado por uma grife (uma editora) e condenar o culto às grifes do mundo
burguês (um tênis, um perfume). Muitos estranham quando ofereço de graça meu
último livro, o barato (e o título não é só gíria de velho): ora, publiquei por
Lei de Incentivo e não quis vender o que foi financiado por impostos (fora que
no projeto já constava um pró-labore do autor). Achei uma merda estampar
estatal como ‘financiadora’ do projeto etc. E para o futuro também não descarto
cooperativas e empreendimentos coletivos, obviamente. Sindicalização dos
poetas? Mas o poeta não é classe (trabalhadora ou patronal): ele é artesão. Corporação
de ofício, talvez. Mas isso já é, não?