segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Poemas da Branca – Paisagem paulistana, de Eduardo Sinkevisque (Árvore Digital, 2021)


Eduardo Sinkevisque, em Poemas da Branca, novamente nos oferece um artifício de leitura: a criação de um mundo íntimo para nosso voyeurismo. Já acontecia no livro Mar dos dias (Árvore Digital, 2018), livro mais experimental por situar-se em aberturas aos bordejos de gênero, “narrativas, mas poemas; narrativas, mas cartas”. O mundo íntimo dos textos de Sinkevisque, na verdade, são dois, e leio-os nos dois livros. O mais construído (artificial no bom sentido do termo) é o da relação amorosa: há sempre uma encenação em minueto de insinuação erótica. O outro mundo íntimo é o do narrador lírico, da função-autor, e diz respeito a um nome entre aspas, "Eduardo Sinkevisque", que escreve-lê-escreve. Paródia, intertextualidade, heterônimos, máscaras, comunicar-se por comunicações alheias, está tudo ali. Os dois mundos íntimos, veja-se, são a rigor distanciamentos discretos. A paixão é cifrada. As máscaras estilhaçam o eu. Ocorre que funcionam na lógica do despojamento. A tensão ocorre, então, entre artifícios (os dois mundos íntimos, o da paixão e o do eu) e um despojamento formal, eu diria, “intencional, mas natural”. Ao abdicar da pose hermética (“intencional”), Sinkevisque aposta num fluxo sem travas, amigável e civil, na relação com quem o lê (“mas natural”).

 

Acaso são estas

as baladas

modernas

aonde dançavas

os anos gostosos?

Berlin Clube? Madame

Satã?

Cupido sobre ti

e sobre mim;

Cupido sobre Berlin

Clube?

É este o Amor

nos anos 2000

todo impulso

e repulsa;

fascínio e medo;

antecipação do fim,

prolongamento

da despedida?

Antidepressivos?

Antipsicóticos,

ópios, éter,

analgésicos?

Medo do enxame

de abelhas?

Medo da dor?

Qual delas

te picou?

A mim me picou?

São estas baladas

são estes; mas eu

o mesmo não sou.

Bianca, tu danças?

Espera, que vou.

No Berlin Clube eu vou.

No Berlin Clube não

vais;

a não ser

quando vou.

Cupido voou.

Cupido não sou.

Mordido estou.

Flechado não estou.

 

Poemas da Branca sobrepõe duas séries de poemas. Há os 58 poemas numerados, todos eles desembaraçados (alheios aos modismos herméticos) e dedicados à composição de uma nova lira paulistana na qual circulam os moderninhos de uma São Paulo já pretérita e a rediviva Branca, personagem espelhada na Marília de Dirceu, mas também na Capitu. A outra série é a dos Intervalos, poemas dedicados/em diálogo com uma infinidade de poéticas, de Orides Fontela a Drummond, de Mário de Andrade a Clarice Lispector. O belíssimo posfácio de Ana Chiara destaca que esses Intervalos trazem um respiro ao livro, em particular no funcionamento coral, comentando a narrativa do desencontro amoroso. Em jogo, uma dedicação suave à escritura, pois à superfície e mantendo a “delegação poética” (como lida por Antonio Candido na análise de Tomás Antônio Gonzaga). Assemelha-se muitas vezes à composição de um diário do fracasso amoroso, discutindo, como aponta o posfácio de Ana Chiara, os limites do lirismo romântico.

O tom narrativo do conjunto se impõe pelo apreço à clareza, o que certamente entra em tensão com o apego aos trocadilhos, quando o distanciamento cultivado com leveza é contaminado pelo jogo verbal condescendente. Também há o contraponto, consciente, entre as máscaras adotadas e um insistente eu que intervém, comenta e se define e redefine. É possível ler aí um desencontro necessário entre afastamento (as máscaras) e discurso de si. Gostei do livro por essas tensões, apontando um caráter irresolvido na poética de Sinkevisque. Como numa reescrita de Gonzaga, convivem o controle e a confissão.

De outro lado, atraiu-me imensamente o rebaixamento (patético no bom sentido da palavra) da narrativa amorosa. Lembrei do protagonista David Lurie, no romance Desonra, de J. M. Coetzee. No violento romance sul-africano, o professor David Lurie quer compor uma ópera inspirado nas passagens finais da vida do poeta Byron. À medida que vai se desconstruindo, vivenciando a violência social e racial, Lurie vai também rebaixando seus objetivos. Ao fim do romance, em vez da ópera grandiosa sobre Byron, com árias complicadas, Lurie se contenta com canções simples dedilhadas num velho banjo e sob a companhia de um cão moribundo.  Não só Byron passa a ser uma presença fantasmática, como o protagonismo do musical passa a ser de Teresa, abandonada pelo poeta inglês. O projeto artístico se africaniza, pode-se dizer. O mesmo ocorre no livro de Sinkevisque. A diferença, porém, é que não há o trágico a emoldurar o percurso do eu lírico. Em Poemas da Branca, tudo acontece ao rés-do-chão, como árias leves compostas num simples violão. Algo como no Oswald de Andrade em “Cântico dos cânticos para flauta e violão”, por exemplo quando Oswald escreve “Para teu corpo/Construirei o dossel/Abrirei a porta submissa/Ligarei o rádio/Amassarei o pão”. Eduardo Sinkevisque mostra que a lição de delegação poética de Gonzaga (falar como pastor e não como erudito, o que também ocorre no poeta do Pau-Brasil) é importante para estabelecer de modo despojado a lírica paulistana dos inferninhos noturnos da grande cidade cinza.

terça-feira, 7 de setembro de 2021

A extinção da cinza, de Lino Mukurruza (Gala-Gala Edições, Maputo, 2021)

Livros como A extinção da cinza ajudam na recordação de uma exigência que nunca deveria ser negligenciada: cabe à crítica uma leitura que se recuse à domesticação da poesia. Para que pudessem articular-se em analogia aos poemas, os mapeamentos regulares de qualquer epistemologia precisariam ser imantados pela natureza oracular dos textos de Lino Mukurruza. Meu posfácio, assim, busca meios para não se assemelhar à pacificação judicativa-normativa. Importa-me evitar perspectivas que anulem a operação poética de extinção (fim) das cinzas (fim). A grandiosa e séria operação de fim do fim. O poeta não duvida das possibilidades de sentidos minerais, opacos ou fosforescentes. Lamenta, afirma e aponta, mas não duvida nunca, sequer questiona. Estamos no plano da linguagem não parafraseável. Aquilo que talvez melhor defina o poético: o não parafraseável. Sim, aqui o mimético jaz estilhaçado.

Podemos partir de uma duplicidade fundadora da poesia moçambicana, sugerida por muitos dos seus intérpretes: uma vertente intimista, outra vertente social. Tenderíamos, em tal domesticação catalogadora, a situar os poemas de A extinção da cinza naquela corrente dos afetos íntimos. Lino Mukurruza, porém, nos ajuda a desfazer aquelas caixinhas acadêmicas de enquadrar poesia. Há, no andamento de fundo dos poemas, a “cidade do corpo”, um corpo atravessado por seu tempo, sua fuligem de esquecimento e memória. Os procedimentos dispersivos dos sentidos corroem a mera perspectiva da interiorização, que exigiria ao menos alguma identidade nomeável.

A poética, abstrata e de conjugação em variados arranjos de elementos simbólicos por inespecificidade, invalida pretensões à verdade. Corpo, pássaro, sombra, dor, cinza, lágrima, entre outros, são substantivos destituídos de especificidade semântica pelo arranjo sintático, o que evita o mais óbvio: o aprisionamento identitário, o que não implica em ausência de voz enunciadora. De outro lado, há um tom orientador, autognose e cosmovisão, enredado no luto. Por exemplo, no título da segunda parte: “O luto na extinção da sombra”. Sombra é um outro que é um mesmo. Pranteia-se o fim do fim no título do livro e o fim do outro que é um mesmo na segunda seção de poemas. Como se percebe, a operação é a da negatividade, validando mesmo a indecidibilidade, como em “o labirinto ou abismo é o húmus na labareda”. Cabe a quem lê aceitar verdades tão longínquas do rés-do-chão.  

O tom de exéquia, ele sim, é social e histórico (“é uma época amarga”), o que se evidencia melhor na terceira seção, “Silêncio em estado líquido”. Há ali uma saída para a luz, em textos mais alongados que, justamente por negarem as constrições de ritmo, detalham melhor a operação técnica de montagem dos poemas. A parataxe, justaposição de peças (vocábulos, versos) alheia à coordenação de conjunto, deixa nítida a poética “construída”, paradoxo em poeta tão inspirado. O visionarismo, como mostraram Arthur Rimbaud ou Néstor Perlongher, não implica necessariamente em poesia de confissão. É o caso de Lino Mukurruza. A operação é de descentramento, com o poeta “sendo falado” pela linguagem, em vez de se posicionar de fora dela. Há êxtase, mas o da textura poética sinestésica: “cores da água no rosto”.

Ler A extinção da cinza, como estamos argumentando, passa por uma abertura ao indizível do desregramento dos sentidos. O indizível é a ronda da sombra, do luto, da cinza, da morte. Não há propriamente redenção, exceto pelos vislumbres de memória: “cresci ouvindo o grito dos vagões para além das buzinadelas no Chuala”. Mukurruza, como acima proposto, deixa no chão a pretensão segmentadora da poesia moçambicana entre intimista ou social. A liberdade, motor de sua operação de montagem, recebe no livro o devido respeito, daí também certo tom hierático. Evidencia-se a construção e inutiliza-se a imitação nas derivas e sobreposições. É assim muito nítida no livro a existência de outra lucidez, a que arranja por constelação o caos, a que agencia fragmentos sempre vibráteis, mesmo se o tom é fúnebre e na paleta predomine o gris.

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Não alimente a escritora, de Telma Scherer (Hecatombe, 2021)

Tereza Virginia de Almeida, no prefácio “O acontecimento e a poesia”, relaciona de duas maneiras o livro de Telma Scherer a uma ocorrência de 2010, quando Scherer apresentava, numa feira literária em Porto Alegre, a performance “Não alimente o escritor” e por isso foi presa arbitrariamente. A primeira é fundante, dali parte o poema. A segunda é determinante, o poema expande a violência original para outras violências, particularmente a de gênero, evidenciada na mudança do título, agora “Não alimente a escritora”. A amalgamar as duas relações, a concepção da poesia como performance, o que enfatizaria ritmos e sonoridades. Ao que podemos completar: uma poesia do corpo que experimenta. É importante destacar também as materialidades. No “acontecimento” de 2010, o corpo da escritora numa casinha de cachorro, uma advertência aos passantes e às normalizações ordinárias. No livro de 2021, o “pertencimento” a uma coleção da Hecatombe, intitulada “Quem dera o sangue fosse só o da menstruação”, outra advertência do corpo, agora a quem lê o poético sob normalizações ordinárias.

Minha abordagem a Não alimente a escritora começa por outras duas leituras. A primeira é bell hooks, de quem li pela primeira vez alguma coisa nas últimas semanas. Eu li bell hooks para a disciplina de Prática de Pesquisa na universidade, querendo trabalhar com as/os estudantes uma escrita menos empolada. Algo que, de algum modo, eu tentei no meu último livro, mas sem a mesma desenvoltura da Telma Scherer. O que me levou à lembrança de bell hooks foi a opção de Scherer pela poesia que não espanta o leitor com uma erudição do coronelismo intelectual brasileiro. Palavra falada, a poesia do livro tem a possibilidade de ser significada por públicos mais amplos. E é uma palavra encarnada, da experiência e da política, do corpo e do testemunho. Até acho uma pretensão macha a palavra rara e a construção enigmática, o que eu tanto já fiz. Não é o caso aqui. A segunda leitura por onde começo é o Poema sujo, do Ferreira Gullar, rememorado por mim no primeiro contato com o livro-declamação de Scherer. O fluxo do fôlego, os trânsitos rápidos, as “estações”, a oralização, a versificação como virgulação de uma narrativa que liga muitos pontos e que parte de um diálogo da linguagem com o real. O que vejo diferente, porém, é o escopo. Gullar fala de uma perspectiva de fora, ligando história do país, do universo, às suas andanças biográficas de exilado. Scherer parte de dentro, do osso do acontecimento, e dali vai expandindo. O livro começa “No dia em que me prenderam/eu não tinha um puto”. A materialidade da microeconomia (que palavra horrível para pensar a talvez-grana cotidiana!) contra o materialismo das estruturas que orienta o Poema sujo.

Estranho caminho começar por bell hooks e por Ferreira Gullar. Porventura despreparado para a poesia de Não alimente a escritora e contornando por analogias um primeiro impacto. De qualquer forma, a voz pública do livro-poema de Scherer vem numa forma textual pública: o discurso (com algo de fabulação). Eu formularei melhor a contradição entre o testemunho e a fábula. É que eles se iluminam reciprocamente e adotam a hibridez, mas sob o nome de permeabilidade e não de limite. Não se trata nem da fusão em um terceiro termo, entre o testemunho e a fábula, nem se trata de brecha ou muro entre eles. Melhor dizer que há um espaço compartilhado, atravessado pelas linhas de força testemunhal e fabular. O que sustenta tal compartilhamento é a perscrutação do ser pela linguagem falada (no mundo, na história, na feira do livro em Porto Alegre, no corpo detido, vitimado e constrangido, quando não expropriado). Scherer opta pela estrutura de um poema-corpo que cai, e cai e cai. Vamos caindo em degraus (versos) curtos de uma escadaria infinita (o poema). A fala vai sendo (intensamente) segmentada. Como os tantos parênteses aqui. Isso ocorre mesmo com a minha experiência de leitura. Não alimente a escritora parece ser um livro para ser lido (dito) numa única experiência. Até fiquei em dúvida se não teria sido mais coerente ter dito (lido) o livro de uma só vez.

O corpo de uma mulher, qualquer corpo de mulher, e em qualquer lugar, lar ou praça, a quem pertence? A expropriação primeira, o corpo da mulher, a mais duradoura expropriação da experiência humana. De outro lado, a abertura da performance de Scherer, descrita no poema: condição mais humana a de entender a domesticação do artista pela coleira da não-profissão, da não-renda. A improdutividade crítica contra a submissão da instituição casinha de cão. Na rua, atrapalhando os passantes! E mesmo que em casa fosse, lá estaria a mão macha dos policiais e suas motos. Mas não só. Um dos trechos mais fortes do poema-fleuve é quando, entre as páginas 51 e 55, são nomeados todos aqueles “sujeitos/envolvidos/na detenção:”. O livro nos reconduz à performance e, talvez seja isso, à condição de possíveis linchadores. O livro atualiza a performance, é aqui nesse apanhado de palavras que nos guia à apreensão (seja por nossa pequenez, seja por nossa conivência com as estruturas de silenciamento) com a experiência de topar com uma poeta que fala o que a retórica grafa como parrésia: franqueza corajosa.

Percebo, com o que conheço da Telma Scherer pelo nosso contato de Facebook, como os textos dela ganham impacto com a listagem. O procedimento consiste em enunciar em sequência inusitada elementos convergentes por uma mesma situação. Após listar as inúmeras vertentes de exploração do episódio, a poeta relata vários momentos das consequências. Há um atordoamento enumeratório que testemunha o trauma, pontuado pela necessidade de sobrevivência, isto é, de “estudar/e ver o mar”.

 

                                Passava as horas

                               rondando a pia

                               a procurar

                               alguma louça pra lavar

                               alguma coisa pra comprar

                               que estivesse faltando:

                               um livro do Bandeira,

                               um pastel oleoso,

                               um canivete,

                               um cavalete de madeira,

                                um collant

                               preto

                               de helanca,

                               um prato de porcelana,

                               um pouco

                               de cola branca, um pijama,

                               um

                               óleo essencial pra lavar

                               as minhas feridas

                               depois

                               das suas mordidas,

                               das suas errâncias,

                               dos seus Eros

                               e caminhanças

                               pelo Velho Continente.

 

A condição de expropriada (de seu corpo, destino, vontade), aqui na expressão da mulher silenciada, interrompida, conduzida, tem, noutro sentido, a perspectiva possível da analogia com a condição da arte na sociedade. Da/do artista como suicidada/do da sociedade. É por exercitar em beleza a parrésia, que a/o artista da fome quase não consegue deixar, pantera/o da escravidão, sua jaula. Seria até porventura mais indicado (não é o poema que nos diz, eu é que estou dizendo) estar dentro da jaula, sangue nos olhos, mas em silêncio sacrificial. No texto de Franz Kafka, o artista da fome é abandonado pelo público e passa a girar em falso, em nome da arte. No livro-liberdade de Scherer, a poeta “continua” sendo presa, infinitamente. E Scherer parece saber que nem o poema a libertará. Não será esse o objetivo de quem diz a verdade em arte. A verdade é dita para libertar quem ouve, quem vê, quem contempla. Contemplação, como diriam os platônicos, é teoria. Teoria, como diria bell hooks, é entendimento e planejamento da prática. Há essas personagens no poema-performance Não alimente a escritora. Aparecem aqui e ali, a única família que existe para artistas, e mais ainda para artistas mulheres: as das pajelanças, as da sororidade, a “iluminadora”. Um mundo para dizer sim, um mundo de “plumas de perfume”, mirras, arrudas, manjericão.  

 

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Evasão ao rés-do-chão: sobre Ilusão, de Marco Aurélio de Souza (Kötter, 2021)


Evasão é uma palavra usual na leitura dos poetas simbolistas. Ela dá conta de um déficit de realidade, de um lado, e de um ataque sensualizado ao formalismo estanque dos parnasianos, de outro. Foi com a noção de evasão que Tasso da Silveira definiu os poemas de Ilusão, livro de Emiliano Perneta, de 1911. Teria sido mais tímido nosso Simbolismo, mera atividade de cópia dos autores cultuados, como Baudelaire? É o que pensam, em vias completamente diferentes, críticos como Augusto de Campos ou Flávio Kothe. O primeiro adverte para uma “comedida prática simbolista brasileira”, marcada por falhas como exagero retórico, exagero musical, predominância ornamental, sentimentalismos, adjetivação desmedida; já Kothe defende que o “poema de Cruz e Sousa intitulado ‘Violões que choram’ é uma imitação da ‘Chanson d’automne’ de Verlaine, sendo o original comumente ignorado ou escamoteado no ensino brasileiro...”. Teria havido, segundo esses dois críticos, uma atenuação do potencial inventivo do Simbolismo europeu em terras brasileiras. Foi nesse plano que o próprio Augusto de Campos defendeu a excepcionalidade de dois autores daquele movimento, Pedro Kilkerry e Ernani Rosas.

Por outro lado, há correntes da crítica que defendem o Simbolismo brasileiro como pleno de originalidade. Roger Bastide, por exemplo, chega a compor uma tríade simbolista mundial: Mallarmé, Stefan George e o brasileiro Cruz e Sousa. Paulo Leminski fez uma biografia incrível sobre Cruz e Sousa. E o Simbolismo sempre contou com uma crítica elogiosa feita a partir do próprio movimento, como no caso de Nestor Vítor e, a seguir, de Andrade Muricy, autor do monumental Panorama do movimento simbolista brasileiro. De resto, influências simbolistas (ou penumbristas) estão em vários autores modernistas, como Bandeira, Cecília Meireles, Ronald de Carvalho e Ribeiro Couto.

A grande questão do Simbolismo no Brasil parece ser, portanto, a de se decidir em que medida o movimento foi realmente orgânico em relação à realidade local e à invenção na literatura. Nesse sentido, a mera opção de tomá-lo como cópia tão somente da matriz francesa não nos parece a mais viável, haja vista a própria reverberação simbolista no Modernismo, caracterizado justamente por ser um movimento que abriu os olhos da literatura para a realidade brasileira. Parece ser assim que Marco Aurélio de Souza estuda e refaz o Ilusão de Emiliano Perneta, com olhos nas possibilidades da evasão dolorida que se faz ao do rés-do-chão.

O trabalho que Marco Aurélio de Souza nos apresenta sob o título de Ilusão é, em primeiro lugar, uma atividade de pesquisa. Na sua tese de doutorado, “O Paraná no campeonato nacional das letras: uma leitura do jornal Nicolau à luz dos problemas da história literária regional” (2020), destaca-se a ideia de que a partir do jornal capitaneado por Wilson Bueno, entre 1987 e 1996, consagrou-se uma observação mais sistêmica da tradição literária paranaense: “uma comunidade imaginada de obras, estilos e autores ligados ao Paraná”. Este livro de poesia mantém com aquela percepção da tese uma homologia intencional. Trata-se de uma angústia da influência enfrentada com galhardia (pela homenagem, no plano da continuidade) e galhofa (pela resistência, no plano da descontinuidade). Este livro de poemas manifesta-se por procedimentos ou dispositivos de ordem necessariamente restritiva, isto é, o que está em jogo é uma operação, mais do que um resultado, e podemos chamar tal operação por diversos nomes, nenhum deles suficiente: tradução, leitura, paródia, pirataria, reescrita, palimpsesto etc.

Além do plano da pesquisa, o livro também se caracteriza por uma intervenção num tema fundamental da literatura, a questão da assinatura. Quem assina os poemas? É possível que Marco Aurélio assine poemas a partir de outros poemas? Onde fica a alma do poeta, a inspiração, onde estão as musas? Ele não estaria destituindo a poesia enquanto ferramenta fundamental da originalidade da linguagem? Há muito da ironia e da concepção transcriativa de Haroldo de Campos neste novo Ilusão, às voltas com um tema fundamental do fim do século vinte que foi a morte do autor, enunciada principalmente pelos franceses, como Michel Foucault. Como escreveu Abel Barros Baptista, falando do romance S. Bernardo, de Graciliano Ramos, a assinatura do autor consagra uma operação dúplice: ela é tanto uma autoridade, no sentido de autorização sobre uma obra, quanto é uma despedida daquela obra, a última presença do autor sobre a obra que, a partir daí, passa a derivar democraticamente nas operações de leitura, como enfatiza Jacques Rancière. De fato, o tema da morte do autor é exatamente esse: morre o autor para nascer a autoridade da interpretação. A morte do autor é um tema simultâneo às teorias da estética da recepção, da leitura etc.

O desejo pelo outro da linguagem, esse desejo de reescrita do texto, foi enunciado num poeta caro ao fim do século XIX, Arthur Rimbaud, na formulação de que “eu é um outro”. Rimbaud escreveu: “Eu é um outro”. Não se trata de “eu sou um outro”. O que parece estar em jogo ali é qual o lugar do sujeito no processo criativo. Entra em cena a ideia de “clarividência”, o visionarismo. Rimbaud, naturalmente, fazia parte de um processo histórico, na Europa do fim do século XIX, em que se passou a criticar o racionalismo cartesiano, fundado na autonomia racional do sujeito. O sujeito deixa de ser mimético (como era na frase famosa “penso logo existo”) e passava a ser textual, inclusive pela subversão gramatical que punha o Eu, na expressão “Eu é um outro”, não como sujeito, mas como objeto a ser qualificado pela alteridade. O “eu” de Rimbaud, diferentemente do de Descartes, tem uma presença virtual, logo simbólica. É quase como se ele escondesse o “eu” na categoria de “outro”. Isso diz muito sobre a poesia que se fez no século vinte e diz muito sobre este Ilusão. O “eu” do poema passa a ser o “eu lírico”, mas isso não é tudo. Ele deixa de ser mimético e se torna textual, impedindo qualquer ingenuidade no seu uso. Não há mais “eu” impune na poesia. O novo “eu” será sempre performático ou gestual. Eu é um outro... o quê? “eu é um outro eu”, um outro “eu” que não é sujeito, mas texto. Assim, num dos poetas fundadores da modernidade, o “eu” passa a ser permanentemente um problema, ou melhor, uma problematização. É claro que o “eu” do poeta continua existindo e participando ativamente do poema, mas Rimbaud teria introduzido uma desconstrução fundamental quanto à ideia do gênio romântico e do poema como expressão de uma verdade individual. Isso tudo passa a ser posto em questão. A partir daí, diversas desconstruções da autoria passam a atuar, o que, por consequência, traz significativas implicações estéticas e éticas. A introdução da alteridade foi um fenômeno sem volta.

Muitos poetas já investiram na poesia criada explicitamente sobre a intertextualidade, ressaltando-a. O gesto é tanto uma afronta ao texto original e à condição de autoria, quanto também uma modéstia do autor “final”, que se debruça sobre outros textos e não sobre seu próprio umbigo ou identidade. Ilusão conduz a poesia a uma pergunta direta sobre o fazer poético e sua relação usual com a originalidade. Um dos pontos fundantes desse procedimento é relatado pela teórica Marjorie Perloff, no livro O gênio não original. Perloff conta como a recepção do texto central de T. S. Eliot, A terra desolada, em 1922, foi marcada por uma polêmica. Ainda que elogiado, o livro foi bastante questionado quanto ao seu caráter “citacional”, o que, na visão dos críticos, reduziria em muito aquilo que se considerava como essência da poesia, isto é, a originalidade da voz pessoal do poeta. O desafio de Marco Aurélio foi o de fazer com que cada poema tivesse um ponto de partida em um poema de Emiliano Perneta, mas que não dependesse dele, podendo funcionar sozinho como peça estética autônoma.

No Brasil, muitos poetas se aventuraram na reescrita poética, rediscutindo, parafraseando ou parodiando outros textos (e não apenas poemas). Por exemplo, Oswald de Andrade, no livro Pau-Brasil, recortando os cronistas coloniais. Ou Cecília Meireles, no Romanceiro da Inconfidência (às voltas com os "fantasmas" de Ouro Preto e dos poetas árcades). Podem ser citados também Murilo Mendes, Jorge de Lima (como no verso emblemático: "Dante, falo por ti, por mim, por quem?") e, entre os contemporâneos, há Mafra Carbonieri, Glauco Matoso etc. Cito, entre tantos exemplos, Adriano Scandolara, poeta de Curitiba que dessacraliza a poesia de Olavo Bilac (em Parsona); Mario Domingues, outro curitibano, que reescreveu alguns de seus próprios poemas (em Musga).

Deixei para o final algumas considerações sobre o livro de Marco Aurélio. Primeiro quero citar a experiência de leitura de Assombro zen (2020), a coletânea anterior do poeta. Ali, há vozes ao rés-do-chão expressando-se pelo haicai. O mundo do calão e principalmente, a polifonia típica das narrativas entra em cena na destituição/homenagem ao modo poético que se consagrou como expressão do tempo em relação à natureza. É possível afirmar que o procedimento antecipa o assalto/afago ao Ilusão de Emiliano Perneta, poeta que foi severamente criticado por outro ícone da literatura paranaense, o contista Dalton Trevisan. Minha impressão, lendo o Ilusão de Marco Aurélio de Souza, é a de que se trata de um encontro entre Perneta e Trevisan (com o fantasma de Marcos Prado sempre presente, seja pelo cultivo abusado das formas fixas, seja pelo ângulo rebaixado da enunciação). Uma psicografia marginal, um reposicionamento da evasão na perspectiva da nomeação concreta do que antes era símbolo (em Perneta). Há muito dos Nelsinhos, sua tara e seus risinhos de escárnio, dos contos de Dalton Trevisan, nos poemas deste Ilusão, bem como o marginal, a prostituta, o michê, o drogado, o burguês e principalmente o poeta maldito: personagens que vestem máscaras, desconstruindo o “eu” hipertrófico de Perneta. A estratégia de trazer os poemas para a narrativa, por fim, abala o culto do símbolo do livro “matricial”, num jogo de espelhamentos e alteridade. Uma evasão concreta, ao rés-do-chão.

Cinquenta, de Julio Urrutiaga Almada (Kötter, 2021)

 

Ao entrar neste 50, leitor(a), deixe de fora toda a desesperança. Aqui a existência é trabalhada no contraste da duração e da urgência. 50 recolhe as máquinas de moer carma do poeta, inabaladas pelo tempo. Reunir poemas no meio do caminho da vida é a possibilidade de perguntar: que poeta sou?, minha poesia o que é? Entregar-se a um poeta é sempre uma experiência não-parafraseável. Julio reúne o tempo, sendo tanto “o menos morto dos mortais” quanto o que sabe que “no underground/sempre há/um degrau/a mais”. Duração e urgência. Um poeta visionário, herdeiro dos Rimbauds e beatniks, claro, age sempre na escuridão, não por perdido mas por perdição. A urgência: “O amanhã é fábula/pressinta o presente sentido”, “uma noite que vença a vida”. A duração: “E nunca de fato/ter o tempo segurado/Umas vezes ele me prendia/nas outras me degolava”. Julio recolhe os paradoxos do tempo, religando-os em sua própria máquina do mundo, gritando a dor social e falando calado ao coração. Ao entrar neste 50, leitor(a), veja como os poemas longos exercitam o tempo transcorrido, como duram. E veja também como há uma voz atrás deles, num poeta de tigres embriagados, dilacerado pelos dias.

quarta-feira, 28 de abril de 2021

Velas ao vento, de Marilia Kubota (Medusa, 2020)

 

Acordo cedo para ler o livro da Marilia Kubota. Tantas imagens de paina flutuando e eu num travesseiro de paina. O lençol arrancado do colchão por uma noite enrolada na agitação dos tempos. Só leio poesia na cama. Velas ao vento é livro que pode ser lido rapidamente, mas eu me detenho em cada um dos poemas concisos, sentindo/vendo o que há ao lado do que está escrito: vãos que trazem palavras invisíveis. Imagens a serem completadas.

Há um prefácio da Micheliny Verunschk, fala em equilíbrio de força e leveza. Até concordo, mas não acho que o peso esteja dito nos poemas (exceto pela última parte do livro), ele é quase um interdito, algo nas entrelinhas, algo que não se encontra ali, mas nos vazados dos versos de observação. Sim, poemas de observação. É possível dizer que três tempos convivem no livro da Marilia. A primeira parte tem um nítido viés narrativo, talvez biográfico, do que se recolhe do passado. Eu literalmente adorei. A segunda parte do livro, “micropolis”, põe o mundo das coisas no presente. As coisas que passam, as que flutuam, as que são levadas na vida. A terceira parte, “girassóis de Fukushima”, articula uma distopia com imagens inusitadas. Traz um grande peso ao livro, pois ali venta dentro da gente.

As “velas ao vento” recolhem às pinceladas, evitando a articulação discursiva, um percurso formativo. Para que seja efetivo, tal percurso se faz pelos antepassados, observados de perto e à distância, enunciando mesmo conflitos e contatos entre natureza, culturas e ocorridos (os fatos ou situações). Quase não se adjetiva, as coisas e seres predominam, e ditas sem ênfase acabam por adquirir mais consistência: camélia, pêssego, taioba, bambu, deus, hóstia, padre, montanha, escola, flor de chuchu, flor de abóbora. São breves estações à maneira biográfica, articuladas com prudência, sem constituir rostos mas plenas de detalhes significativos:

 

pinguela é ponte

o rio corre

com pedra sapinho

pés na água fria

até a mãe gosta

e a mãe só gosta de chorar

 

A formação se faz na natureza, nos matos, no trabalho no campo, “ainda uma aldeia”. A poesia se abre porosa à vida da prosa. É a primeira metade dessa primeira parte do livro. Depois, articulação, por assemelhados a haicais, de constatações fotográficas das quatro estações:

 

sol de inverno:

em pé na garupa

o guri sorri

 

Um passado que parece retrato na parede, mas que, como dizia o poeta, dói. Há melancolia ali, eu fico pensando. E vou à segunda parte, “micropolis”. Marilia Kubota lançou um livro com o mesmo título, em 2014. Tenho aqui o “Selva de sentidos”, o “Esperando as bárbaras” e o “Diário da vertigem”, mas não tenho o “Micropolis”. Uma pena. No livro atual, os poemas reunidos em “micropolis” apontam para o presente observado:

 

neste outono

nem uma seta no alvo

pássaros nas nuvens

 

Novamente comparece a melancolia, pois se trata de um presente de ausências: Bueno, Leminski, o vento que não sopra a canção, a companhia da vida:

 

te espero

mas não chegas –

flutua a paina

 

É o cotidiano que desliza, guardado (no sentido de “guardar” que o poeta Antonio Cicero deu ao seu livro de 1996) em recortes. Há aqui um certo frescor, o que nos leva ao quase sorriso. Micheliny Verunschk acerta em cheio no prefácio, postulando “uma potência que chamarei aqui de infantil”, num olhar sobre o mundo que se dá sem prévias concepções:

 

estendido no açucareiro:

um cadáver

luto no formigueiro

 

Foi bom ver Wilson Bueno e Paulo Leminski citados no início de “micropolis”. Tanto nos tankas de Bueno como nos haicais de Leminski há o gozo do jocoso, de uma mais ou menos curitibana e tímida bufonaria. Os haicais da Marilia iluminam pontos mínimos, não exatamente de alegria, mas a partir de um olhar menos preocupado ou filosófico. Uma sensibilidade que reinventa o mesmo das rotinas, intentando um respiro.

O livro termina com “girassóis de Fukushima”, e aí estamos diante do peso, um peso distópico que, certamente por isso, articula-se em termos de super-realidade:

 

palavras tomaram ácido sulfúrico e não perguntam a resposta. o cravo é um beduíno com tapetes solares, sonha com um andar herético.

 

São trechos curtos com andamento de prosa, afirmativos: “o cravo é um beduíno”, “uma forma de inteligência é um sapato pensante”, “o vento é uma catástrofe”, “lagartixa é um tipo de ferrugem estrangeira”. Interessante que o livro termine assim, em ritmo de sonho e deslocamento semântico. O “vento” do título faz mais sentido agora. E não corre exatamente por fora, apesar do que há de objetivo no que se guardou do passado, do que há de observação contemplativa nos haicais e do super-real na última parte do livro. O vento corre por dentro, “em nossos interiores desolados”. E eu me levanto, e escrevo isto.

terça-feira, 27 de abril de 2021

O traço do calígrafo, de Adalberto Müller (Medusa, 2020)

 

O livro de Adalberto Müller, poeta e tradutor já bastante conhecido, compõe-se de duas partes: os contos curtos de “O traço do calígrafo” e os um pouco menos curtos de “[outros orientes]”. Há esse chamado do oriente, que vai desde a proposta “caligráfica” do livro às tramas, e, principalmente, aos três contos finais.

Após o prefácio, de Marcelo Sandmann (que destaca o nomadismo cosmopolita, a errância, o trânsito de identidades, além de um concerto mundial convocado nos textos), o conjunto se abre com “duas palavras”, que é e não é uma narrativa, pois é uma apresentação do autor ao livro, mas ao mesmo tempo é incluído, ao menos no índice, como sendo a primeira das narrativas. “duas palavras” abre com o típico mote borgeano de quem lê e comenta o que lê, entre ensaio e narrativa. Além da discussão do gesto caligráfico, há duas questões embutidas, uma de contiguidade com o título do livro (“representar a intensidade da vida num único traço”), e outra não, pois questão de representação (fatos reais e fatos irreais estariam na origem dos textos).

As narrativas são blocos textuais com um único ponto final (as vírgulas e os pontos finais são estrelas nesta forma fixa de prosa). Está em jogo o fôlego único/a apneia, o que institui uma temporalidade acelerada aos textos. Ao mesmo tempo, essa concentração dá conta de temporalidades dilatadas: um reencontro de amantes depois de duas décadas, um escafandrista que mergulha atrás da esposa há cinco anos, uma foto de 1969 vista no momento em que se é assassinada etc.

Os textos são muito nítidos em geral. Em “o retorno”, de outro lado, flagra-se um sujeito, “desturista” e ao mesmo tempo de identidade em trânsitos de oriente e ocidente, atravessado por uma odisseia (o que supõe uma temporalidade maior) e por memórias supostamente distantes.

Além disso, também há o “momento decisivo”, quase sempre o encontro com a morte/a eternidade: uma personagem que é assassinada, uma bomba que explode num trem, o casal que se suicida numa paisagem clichê, a Torre Eiffel. O tempo longo e o agora são represados e entrelaçados nas narrativas. “delícias” é assim: uma volta súbita na geografia para declarar uma mudança que a personagem vivera já desde os catorze anos de idade (sentir-se atraída pelo cheiro de homens) e que ainda não tinha assumido. Em “pãezinhos” há mesmo uma descrição do que se recolhe no átimo dos textos: “e o levaria a uma existência errante de quarenta anos, os quais, agora, se resumiam a um segundo, em que o tempo dos relógios se desmanchava na duração da vida mais intensa, e se recompunha dentro dos olhos um do outro, como um filme ao avesso.” (p. 34)

Já em “a descida”, o elogio do instante: “e por isso mesmo ele agora se ativara inteiro nos braços daquele instante como quem se atira nos braços da vida” (p. 35) Henri Cartier-Bresson, o fotógrafo francês, escreveu sobre o “instante decisivo”. Ele fala da fotografia como a captação de um equilíbrio entre os diferentes movimentos do fotografado. A fotografia deve intervir num instante que imobilize o equilíbrio. Isso decorre de um ângulo, um movimento do fotógrafo, gestos e atenção enfim. O instinto atua em nome de um equilíbrio geométrico da imagem. Isso não pode ser racionalizado no momento da fotografia, mas quando a imagem se revela no laboratório.

Essas epifanias, porém, se constituem iluminações no plano da existência individual, em geral não atingem a condição da iluminação profana, na qual há sempre um componente histórico, da herança das contradições e derrotas históricas. Daí que muitas das situações beirem o fantástico ou o absurdo (e não exatamente o acaso). Não se pode, por outro lado, chamar de fragmentos (no sentido de Schlegel e Novalis) aos textos de Adalberto, pois não lidam com a incompletude. São mônadas, rosebuds, madeleines (“e aqueles jasmins olentes jamais se desprenderam de suas narinas” – p. 50). Momentos de (des)encontro e despedida, de fusão e de corte. Mundos fechados, no entanto, apesar de toda a porosidade de identidades e trânsitos, pois imunes à tipicidade social. A discussão deste parágrafo, o leitor deve ter notado, configura o oriente como norte do livro, pois iluminação profana e tipicidade são cosmovisões ocidentais.

Nem todos os contos são assim, mas há uma constante na maioria deles e me concentrarei nela agora. Um dos temas dos pequenos contos é a evasão final, rompantes que conduzem ao suicídio, à morte, ao desaparecimento de si ou do passado. Nisso, cada narrativa (ou quadro narrativo) precisa em poucas linhas concentrar uma energia que possibilite e torne verossímil aquela explosão das personagens, que desembestam. Adalberto não recorre ao mágico para tanto, mas a linhas de fronteira existenciais que são ultrapassadas após uma longa demora. É aquela demora existencial, de angústia, de desistência, de tédio, subitamente rompida nos contos, que deve ser objeto de poucas linhas de construção, o que o autor faz com maestria e parcos elementos, no entanto sempre nomeados/nomeáveis: a identidade pessoal e um lugar/uns lugares. Pessoas e lugares nomeados, os textos articulam a duração e preparam o salto final, a única ação de cada narrativa, definidora. Tais ações precisam acontecer no conto, mas no traço do calígrafo elas parecem acontecer quando o calígrafo abdica de continuar o traço e dá por terminado o gesto que grafou. E também no momento decisivo de Cartier-Bresson, o decisivo é resultado de uma seleção a posteriori, uma identificação entre quem viu no momento prévio e quem revê no laboratório (que sim, está ligada à intuição prévia da captação fotográfica). Os rompantes e sua urgência são bem descritos ao final de “o México não é longe daqui”: “e se perdeu, ou se achou, para sempre.” (p. 59) “perdeu”: o fim do traço do calígrafo, quando ele tira a pena da superfície. “achou”: o gesto do fotógrafo na “revelação” do instante decisivo. Então, não é pequena a dificuldade técnica da proposta do livro, pois se trata, obviamente, de palavras narrativas, isto é, que remetem a outra coisa que não a elas mesmas (como o são, ou podem ser melhor, a poesia, a caligrafia ou a fotografia).

Qual a necessidade/dificuldade de narrar em apenas um fôlego? Pode-se dizer também, “em apneia”. Como a concentração de energia para as ações súbitas acontecem nos contos? Pois não bastam a nomeação de personagem e lugar, é preciso uma consistência em geral obtida na descrição detida e muito concreta de efeitos e sujeitos de real: as coisas, sua materialidade e sentido. Por exemplo, em “sobreviventes (I)”, quando as coisas da casa em chamas entrelaçam um destino final para a cadela Nika e a menina Annie. Acompanhamos a dança do fogo e da cachorra em direção ao rompante: “o fogo já subia pela escada, o próprio chão do quarto de Annie já estava começando a abrir-se com a força das labaredas, e a fumaça vinha de todos os lados, por isso a única coisa que Nika podia fazer era saltar na cama de Annie, que já estava tossindo muito, engasgando-se, e aninhar-se ao seu lado, para sempre.” (p. 63)

É preciso, pois, haver uma rápida apresentação de personagens e lugares e concentração de história em síntese de coisas descritas, para que um gesto final (o golpe de katana) contemple uma espécie de eternidade. No conjunto do livro, a repetição do funcionamento das estruturas não remete à monotonia, até mesmo pela variação de geografias e de trânsito entre elas, um dado interessante da proposta de O traço do calígrafo, pois institui, para além daquela tensão entre o não-tempo do instante (o “ocorrerá?” de Lyotard) e a longa duração de um dado existencial, um destempo, algo do exílio ou da transumância múltipla e errante. Não-tempo, tempo (passado e presente), um futuro eterno que se pode colher das decisões abruptas, e o destempo. Convenhamos ser muita coisa para textos tão curtos. E no entanto, “ocorre”, acontece, consegue-se. É questão de equilíbrio, como escreveu Cartier-Bresson. Não por acaso, o último conto da série do livro, “equilibração”, mostra que Adalberto sabe em que ramo está, “no ramo do equilíbrio” (p. 74)

Há, por fim, os “[outros orientes]”, um bloco ao final do livro. São três peças um pouco mais longas (mas não muito), já sem a moldura do fôlego de um só ponto final de grande parte do volume. São narrativas que orientalizam o gesto de Adalberto na composição de “O traço do calígrafo”. Há nelas o prazer intenso da criança, a busca que só tem resultado no esquecimento de si, e a aceitação dos limites (a pequenez, por exemplo, a bastar por si só) resultando noutra “primavera, eterna”. Exploram, no epílogo do livro, a oralidade da narração infantil, o ensaísmo da discussão filosófica, a figura exemplar da narrativa mítica. Um fecho muito adequado à série de quadros dos contos mais curtos.