A forma fixa também fixa uma
rotina. De escrita e de leitura. Tenho medo da forma fixa. Também não gosto
dela. Sou pelo fluxo, pelo disforme, pelo quebrado. Daí meu desconforto com o
fixo. Disfarcei uma coroa de sonetos na primeira parte do meu livro barato. Foram escritos num fluxo de
dois dias, depois de um definitivo rompimento amoroso. A forma fixa ali foi um
exercício de contenção, de modo a disciplinar a cura. Como se a forma mais
abstrata solicitasse um renascimento por substituição do sentimento em nome do sensível.
Manipular o fixo mais abstrato (Wilson Bueno me disse que, ao escrever seu
livro de tankas, achava um desperdício ter de jogar fora “versos luxuriosos e
luxuriantes” mas que não se enquadravam na forma) impõe igualmente uma
manipulação técnica da própria cura, sentimental, fisiológica etc. No caso de 29, de Marcos Messerschmidt, um tempo
curto, todo cortado. No entanto, fluxo, 40 dias, período de provação,
escrevendo em pontilhado. Tudo cortado no fluxo. Enquadramentos. Importante
saber o descartável, saber inclusive o valor do descartável. Um haicai não pode
ser reduzido a uma frase, como acontece (16, 69). Exceções, porém, pois trata-se
de um movimento que Marcos não resiste em destruir, com algo de fragmentado,
daí talvez o absurdo que um crítico encontrou ali. Não vejo surrealismo. O
fragmento também é romântico, dá conta da experiência solitária contemporânea,
permeada de novos deuses, poetas de experiência de vida romântica como matéria
de poesia: Bukowski, Kerouac, Baudelaire, Whitman. Imobilizado na única
goteira, não há surrealismo aqui. Há um eu
que acaba sendo um outro, no molde de Rimbaud. Na verdade, 29 parece ter um tanto da estrutura de Uma temporada no inferno. Disseca-se um eu que termina por escapar ao observador, constituindo-se também
como imagem. Tal fuga se dá inclusive pela alucinação das imagens, daí a
sugestão (não levada a cabo) de surrealismo. Apenas não gosto quando um eu qualifica a experiência (55). O eu fica bem no haicai quando ele deixa
de ser uma voz e vira, por exemplo, Bashô, ou um homem que se disciplina por 3
haicais diários, ou alguém que achou seu par desenhando mexicanos entre táxis:
isto é, quando vira um outro. Gosto
quando a experiência é apresentada, não quando é representada. E a apresentação
acontece muito no 29, primeiro livro
de Marcos Messerschmidt. Um quê de romântico ou expressionista preso no haicai.
Queda, cicatriz, horror, embriaguez. Trata-se de uma tensão perigosa,
necessária. Soa-me híbrido. Há um mergulho, mordida a maçã, rumo à dissecação.
Os movimentos, partes do livro, garantem uma rítmica equilibrada. Mas um
mergulho cuja selvageria se dissolve justamente nessa paciência do corte, do
tempo curto, do saber hesitar e do saber onde a queda será mais interessante. É
uma experiência de queda, de vocação pela materialidade, o que já garante uma
experiência salutar ao leitor, quiçá curativa. Aqui e ali ainda se opina, mas
nada que contamine a experiência com os quadros, com as “estações”. Sou contra
o haicai alegrinho, infantilizado, mais ou menos como faz o Alvaro Posselt.
Posselt é muito talentoso com a linguagem (vista por ele como forma social) - sem
contar sua capacidade de visualização, obtida de modo mais direto e criativo -,
mas faz poesia como riso da sociedade, banaliza seu instrumento. 29, pelo contrário, me satisfaz também
por negar isso de compactuar com o consenso. Às vezes desejaria ver mais
experiência de linguagem, de modo a concretizar de modo mais poético as
imagens, mas fica para uma próxima. 29 é
um livro muito vivo e de quem recusou o fácil que o fixo poderia oferecer.