“Entre uma
praia e outra” é o mais recente volume de poesia de Ronald Augusto. O livro, com capa sensacional
(fotografia de Fabiano Scholl) e com apresentação de Guto Leite (que ressalta o
vigor da poesia de Ronald, “generosa e inflexível”), e com uma espécie de posfácio
de Erre Amaral (“um voyeurismo de afecções”), é dividido em 3 partes. Aqui,
analisarei cada uma delas. Ressalto, porém, que esta é uma leitura única, não
revi minhas pontuações. Ela foi feita no voo entre Porto Alegre e Curitiba, em
fins de 2018. Na capital gaúcha, conheci Ronald Augusto no I Congresso de
poesia da UFRGS. Vim lendo o livro. Na chegada a Curitiba, bastante turbulência.
A leitura talvez se ressinta de tal instabilidade. Agora, 23/04/2019, retomo o
livro, revejo minhas anotações ao lado dos poemas. That’s all Folks!
“uma praia”
Tanto aqui, como na última parte
do livro, os poemas são numerados. Instala-se uma contagem, uma rotina, um
diário de circunstâncias. As praias, a rigor, são respiros. Entre elas, sim, na
seção “no meio delas”, a vida enquanto abismo retorna. Mas não aqui. Daí a construção
de imagens ser um recurso preferido nas abordagens praianas do poeta. As
imagens, por sua vez, estão engajadas na concepção de imagem-pensamento (mais
imagem-tempo que imagem-movimento, para ficarmos em Deleuze). Algumas
dicotomias (trabalho/lazer, produção/produto, trampo/trampa) são pensadas a partir
do descritivo. Pontos descritivos pontuam o tempo do pensamento. Há uma
cronologia carrolliana, a estrada que historia. Conta-se, mas em fragmentos: a
medida do tempo no “acento fraco”, a “última orla da madrugada”, o “cômputo de
pontes”, o “décimo segundo dia de/ dias de maroceano”. O poeta que calculava
(sabemos o que não é o cálculo de um poeta): “terei alcançado uma cota de
monta/ biografemas”. Sinto nesta “uma praia” um vazio (“o balbucio marinho que
jamais houve”, com “ninguém por testemunha”), mas pleno de sons (“zumbido
rombudo”, “roda maciça long-playing (lp) obsoleto”). O vazio, de novo, um
relógio “sem romanos e sem ponteiros/ de que se ocupa/ o pensamento”. Ao
descrever (a olaria, a salsugem do vento), Ronald Augusto obtém o vazio. Há um discernimento
do deserto, um deserto necessário, a se valorizar no extremo “de uma dezena de
dias com suas noites”. E justo o mar, a praia, as férias, instâncias de tão
fácil celebração, já repisadas até à indistinção, flores que não são a palavra
flor. Penso, por exemplo, em contraste ao livro do Ronald Augusto, no fraco
volume que é Beira-Sol, do poeta Adriano Espínola (tomo-o como exemplo entre
tantos), com sua abordagem supostamente épica do mar: “O céu/ é uma vela
inflada/ ao sopro salobre das ondas”. Ou, também de Espínola: “O azul é um
animal marinho,/ dormindo na praia/ do Mucuripe.” Em Espínola tudo se afirma,
tudo se nomeia à superfície.
“no meio delas”
Entre “uma praia” “e outra”, há a
seção “no meio delas”. Contrapõe-se muito ali a violência do mundo a um
rigorosíssimo encanto pela palavra rara, gesto radical que repõe violentamente
a poesia à banalidade do mal do mundo. Assim, contrasta “nenhum bem deste mundo
me sobra” (polo da violência) a “(glossógrafo quando já não trova” (polo da
violência a partir da poesia). Essa violência é fanoniana, diga-se (“xingou e
foi/ xingado”. Ao entrar no mundo da vida, porém, há alguns estranhamentos
difíceis para a minha leitura. Alguns direcionamentos me incomodam, aqui e ali,
os “recados à má literatura”, como rabisquei quando lia o livro (páginas 29 e
30, particularmente), ou à má política (página 43). Prefiro quando o polo da
violência da poesia não tem referente: “chego soerguendo-/ me/ até a bolsa/
mais cava do meu/ crânio”. A violência, aqui, é um dado permanente e quase uma
espera ou inevitabilidade.
“no meio delas”, porém, não é só
violência, trazendo uma beleza sem afirmação viril, como o “encosto que se
anagramatiza” ou todo o poema “dois do dois: olomí” (imagens doces, memória doce),
quando o pensamento se encurva melífluo, aconchegado na herança negra. A afrodescendência
se anagramatiza (só eu pensei em Said no início do trecho a seguir?): “a espada
e a palavra armas/ de jorge/ wordswordswords/ swords/ parolagem brasa assoprada
sem coração”. O encontro com a herança é vivência da violência, a ser resolvida
também num contrato com o além de nós (Racionais MC’s, pensei aqui, mas também
em publicações sociológicas, como o Mapa da Violência: o assassinado jovem,
negro, de periferia): “aparta-nos ogum de retrato e/ de sol quadrado”. Ronald
Augusto sabe que a guerra, nas suas armas que são as da poesia, é também
cultural. Há, nisso, um elogio da música como pensamento no exercício da poesia
como (auto-)crítica no poema “espiral zeosória”. Nele, diferentes níveis de
expectativa são contemplados, do menos ao mais “hermético” (para usar uma
palavra da moda). O elogio a Edimilson de Almeida Pereira aponta para o que
pode ser lido como projeto de Ronald Augusto: “dessa dialética do oximoro/ o
livro finta parece perder as estribeiras/ mas logo ali/ incrivelmente se
concentra/ embicando sempre por negaceios”. Edimilson e Ronald articulam um
rombo no cânone dos mesmos brancos e o fazem num caminho que não traz a
escrevivência ao primeiro plano. Música do pensamento. A vivência do Brasil
racista, de outro lado, traz como inevitável “o retorno” (título do último
poema da seção), poema que abre “o preconceito racial vive abre/ os olhos hiberna numa zona
intermédia”. Hoje? Sim, bastante. Deputada baiana querendo acabar com cotas
raciais. Instituto Moreira Salles e evento de poesia só com brancos. Bolsonaro.
Ronald, como Ricardo Aleixo, como Fernanda Bastos, devolvem fanonianamente, com
violência, pois, o “re-tornar em visitação pública”, o mundo do “imêmore”. O racismo
do Brasil (e do mundo) portanto, convocam ao “retorno”, ele é uma permanência a
interpelar o poeta negro. Mas há, como veremos ainda, a outra praia.
“e outra”
Confesso ter anotado menos aqui.
Como disse no início, o avião estava para cair. Retomar a leitura no conforto
da mesa, agora, seria injusto com as abordagens das seções anteriores. Muito se
perde, sei, mas sou crítico com manias. Penso que Ronald Augusto tem no livro uma
relação desajeitada (espectadora) com a praia, o que é um ganho poético. As imagens
pensam, bem como todo o arranjo fônico dos poemas. As coisas da “outra” praia
também se anagramatizam. A “lixa plurilíngue que/ descarna e treslê o lixo
peregrino/ dos subúrbios”. Os poemas se helenizam, há um clima provençal
implícito nas circunstâncias. O poeta (negro) pode curtir? Aí a força do livro
do Ronald Augusto. Há uma felicidade otimista, que ironiza o “sórdido herói”.
Poder sonhar na praia, pode? (há toda uma lição do poético liberto em Gilberto
Gil no livro): “manada de sonhos rapsódia/ circundada por ondas”. O próprio mar
é ironizado, sendo tanto “ferruginoso” quanto povoado por “fluctissonantes
praias”. As imagens dessa seção preparam já um trabalho de memória (a praia
passará, retornará o caos do cotidiano). A imagem usada para trazer a praia
mostra o tênue do respiro que as praias são. É um momento absurdo de bonito do
livro: “o caranguejo que meu filho/ (do meio) quer levar para a cidade/ num
compartimento da mochila/ junto com um dois palmos/ de areia para que o
animalzinho/ não se esqueça de onde veio”. Precisamos de praias assim na poesia
brasileira! Isso é puro Bandeira! Um elogio do efêmero, do guardar, da herança,
da poesia menor.
“aurora de tranças grisalhas
manhã sem ver sol sequer praia
mar e calor retardatários
na pele não resta salário
os girassóis da casa em frente
o lixeiro sempre presente
dizem que tudo permanece
tal e qual, mas quem se convence?”