É preciso saudar a aparição deste Noite adentro. Antes de falar sobre os contos, porém, é importante destacar o que um título como esse nos diz. Afinal, se você já leu os contos de Bruno Aurélio, sabe que há uma ambientação geográfica muito específica neles, a da cidade de Guarapuava e a de seu entorno. Guarapuava é uma cidade localizada no interior do Paraná, quase no centro do mapa. Ao contrário de tantos títulos da literatura brasileira contemporânea feitos a partir dos topônimos, como Capão Pecado ou Ninguém é inocente em São Paulo (ambos de Ferréz), Budapeste (de Chico Buarque), Hanói (de Adriana Lisboa) ou Rio-Paris-Rio (de Luciana Hidalgo), Bruno Aurélio escolheu nomear sua obra de forma mais universal, o que nos diz um tanto do projeto deste livro, que põe em tensão o local e o universal.
Noite adentro é também o título da última narrativa deste volume de ficções. Se você a leu, entenderá que a escolha de tal nome para o livro tem algumas implicações. A primeira, é que a cidade de Guarapuava registrada no livro não é a do cartão-postal ou a dos discursos oficiais: uma suposta cidade pacata de pioneiros (que chacinaram muitos indígenas, que tomaram muitas terras, em mais um capítulo da colonização cruel no Brasil). Ao nos conduzir para dentro da noite, símbolo da profundidade e da perdição, Bruno Aurélio vai na contramão daqueles discursos ideológicos ao gosto das elites locais, como o da “terra do lobo bravo” e o de “Deus, Pátria e Família”. Temos, neste conjunto de contos, salvo engano, o primeiro tratamento literário da cidade em chave realista crítica, o que não é pouco, na medida em que situa as histórias na sistemática da “fome de espaço” detectada pelo crítico literário Antonio Candido quanto à literatura brasileira. A segunda implicação da escolha do título amplia a primeira: o autor está interessado, para além da inspiração nas histórias do lugar, na construção de personagens subterrâneos, seja quanto aos “pequenos diabos”, gente pobre e trabalhadora, por quem somos levados a nutrir simpatia e solidariedade ideológica, seja quanto à elite local, capturada nas contradições de seu projeto destrutivo, individualista e de usurpação da condição humana. Afinal, é da noite que se trata, e essa noite é tanto construção de personalidades complexas e contraditórias como também criação de uma temporalidade brumosa, sem nitidez, portanto pronta para a violência e para a ausência do Estado Democrático de Direito. A noite na cidade é feroz, sabe-se. Não à toa, foi numa madrugada de Abril de 2022 que Guarapuava ganhou destaque nacional no jornalismo, quando foi assaltada de modo grandioso, num cenário de guerra televisionada
Vejamos como a noite acontece em cada um dos contos do livro. Em “Prólogo”, irmãos pobres se reúnem no sofá à espera de um jantar que talvez não venha, dada a precariedade social causada pelo patrão maldito. Em “Terra sangrenta”, após uma noite de sonhos e esperanças de melhoria de vida, uma família pobre tem sua terra expropriada. Se no primeiro e curtíssimo conto o arbítrio da violência social se dá pela ausência de documentos, na segunda história é a falsificação de documentos que possibilita o roubo deslavado de terras dos humildes iletrados. São situações de esmagamento social, de verdadeiro emparedamento semelhante ao desnorteio, à impossibilidade de qualquer reação dos de baixo.
A noite também é elemento central nas próximas narrativas. Em “O sádico de Guarapuava”, na melhor tradição da reconstituição da vida dos “pequenos diabos”, como em Dalton Trevisan, o noturno acontece pela visita a esse monstro urbano, revelado em suas intimidades justamente pelo uso da primeira pessoa. Há um retrato noturno desse tarado de Guarapuava. A narrativa seguinte, “Mãe Rita”, nos conduz pela vida das prostitutas da cidade. É de se notar que há dois “amanheceres” na história. No primeiro, na madrugadinha ainda, as prostitutas deixam o cliente no motel: “Ainda não havia amanhecido”. A seguir, a protagonista chega em casa e vê a filha acordar. O contraste é absoluto entre a sordidez do programa no motel e a vida familiar e amorosa com a filha: “Deixo que o calor da manhã invada minha casa. O céu é muito lindo quando visto a olho nu, distante de todos os nossos problemas.”
No breve “Um casal em Guarapuava”, Bruno Aurélio nos conduz a um relato bastante seco, porventura baseado num caso famoso na criminologia da cidade, evento que entrou para a história da luta contra o feminicídio. Na volta de um passeio noturno, um desentendimento entre um casal apaixonado conduz rapidamente ao feminicídio. A história se aproxima literariamente da anotação do escritor russo Anton Tchekhov sobre o sujeito que ganha dinheiro no cassino em Montecarlo e a seguir se suicida. Na interpretação do escritor argentino Ricardo Piglia, o trecho de Tchekhov indica que todo bom conto tem “duas histórias” que se colidem. É um pouco o que vemos acontecer no conto seguinte, “Não saiu nos jornais”, quase um espelho invertido da narrativa anterior. Se “Um casal em Guarapuava” vai da junção à disjunção dos corpos amorosos, “Não saiu dos jornais” nos conduz ao movimento inverso, mas de um modo tão chocante e pesado quanto.
No poético “Parque do Lago: outra margem”, a voz narrativa nos conduz, repleta de porosidades, elipses e vazios, por um interessante contraste entre brilhos/sonhos e nébulas/desilusões. Novamente a soturnidade é uma condição existencial, não por opção, mas por desgraça social: “um olhar abstraído e submerso na nébula melancolia”, “ela olha abstraída na neblina interior”. O que nubla o céu de Guarapuava? O que nubla a vida dos jovens suicidas? A chave do realismo crítico figura a desilusão e a alienação justamente no cartão-postal da cidade. Em “Anaela”, o conto seguinte, o autor nos guia pela violência de classe e suas perversões locais. A história abre com “Era uma noite enluarada sob o ar espesso de uma garoa fina e congelante.” E tudo termina com um desmaio, apagamento do visível semelhante à escuridão. Trata-se de um sutil jogo de desvelamento pós-traumático, como num amanhecer após um pesadelo muito real.
“O espetáculo da graça divina”, próxima narrativa, traz um anoitecer artificialmente provocado em nome da manipulação religiosa fundamentalista. Se você não reparou ainda, Bruno Aurélio vai compondo um painel que se expande em muito para além da ambientação guarapuavana do livro. O poder rural exercido com arbítrio, as perversidades dos de cima, as doenças sociais nos de baixo, o fundamentalismo religioso, a dificuldade de se reconhecer a soberania da legalidade institucional, as estúpidas relações sociais baseadas no compadrio patriarcal, os abusos que se manifestam no corpo dos desvalidos. Tudo, enfim, nos aponta para um retrato do Brasil contemporâneo, marcado pelo sórdido ataque aos valores humanistas. No conto em questão, a escuridão se dá em nome da manipulação da fé: “Então papai ergueu as mãos, as luzes ao redor se apagaram e os fiéis recolhiam o choro com os olhos devassados na penumbra, pois havia começado o Espetáculo da Graça Divina.” Já em “Reizinho”, o autor apresenta a figura prototípica do poder local, alguém que age apenas pelo desmando relatado no título da narrativa. Outra vez temos a perscrutação dos valores obscuros em homologia à configuração noturna do enredo: “A noite enegrecia sobre as árvores e as mãos de Bernardo suavam frias. Encarava no retrovisor os olhos oblíquos. Seu sorriso era medonho.”
É importante destacar o arco de opções narrativas de Bruno Aurélio, que vão do fluxo de consciência à prosa versificada, do intenso uso de diálogos (como em “Reizinho”) à narrativa de ação. A própria estrutura do livro dá conta da diversidade de opções, afinal, o livro abre com uma história de uma página e fecha com uma narrativa dividida em 25 seções, de longe a maior da obra.
É pois sob a égide da ação nos moldes imaginários de um filme como Laranja Mecânica que está construído o texto “Botando pra quebrar”. E quem reaparece? A noite, claro: “Saímos na noite à procura de diversão. Estávamos com nossas roupas super da moda que havíamos saqueado na Trifon.” Na narrativa “Espantalho malvado” surge com mais intensidade algo que atravessa também os outros contos e que ficará muito evidente no próximo, “Nossos corpos”: a violência física exercida sobre as pessoas. De fato, no livro os corpos são soterrados, socados, estuprados, abusados, odiados etc. É um detalhe da biopolítica venenosa e necrófila de um tempo que exalta a violência pelas mãos, pelo falo ou pelas armas. Nada mais a calhar para uma história colonial de violências que se amplia para a exclusão dos corpos da dignidade humana. Basta um exemplo, cartão de visitas da cidade, a exclusão dos corpos dos povos originários à beira da rodoviária do município. Em “Espantalho malvado”, essa violência se faz longe da luz, encaminhando quem lê à sugestão de uma noite de terror”: “A tarde se recolhia lá fora, distante.”
Por fim, os dois últimos contos mostram a capacidade de Bruno Aurélio na construção das personalidades. “Nossos corpos”, também marcado por violência sexual, contrapõe duas noites, a do sossego familiar e a da criminalidade. No primeiro caso, por exemplo, temos “O meu pai sempre me chamava quando estava noitezinha e esfriando. Minha mãe fechava as janelas pra durante a noite não ter pernilongo.”. No segundo, “Os policiais miravam a lanterna na escuridão do terreiro entre as laranjeiras.” Como se percebe, a noite é dúplice, conforto ou morte. Voltando à proposição de Ricardo Piglia: um conto sempre contrapõe duas histórias.
Noturno como diz o título é o conto “Noite adentro”, o mais longo da obra. De certo modo, a narrativa conjuga os elementos das histórias anteriores num enredo de maior fôlego, atravessado por violência sexual e social. Há aqui um retrato muito ferino, daí tratar-se de realismo crítico, das ambiguidades do discurso e das práticas da elite. A vida patética dos abonados é mostrada no seu lado mais abusivo e doentio, fechando muito bem o livro. O enredo apresenta o encontro de Jampier e Mariana, um ricaço e uma transexual pobre. Ambos transitam na noite da cidade e a velocidade, proporcionada formalmente pelo uso intensivo de diálogos, é a tônica desses atravessamentos de uma geografia noturna. A paranoia opressiva de Jampier, o retrato da família burguesa e a relação doentia com Mariana combinam a dramaticidade no estilo de um Nelson Rodrigues, avançando na condição subterrânea da existência, e o realismo avassalador de Rubem Fonseca. A narrativa avança o sinal sempre, apontando a decrepitude da burguesia, no seu combo de armas, abuso sexual e de drogas, desunião familiar, além da exploração do trabalho e do capital financeiro.
É perceptível um movimento comum às narrativas, o que dá conta de um projeto autoral. Os contos começam poéticos e terminam como verdadeiros pesadelos sociais. Nesse meio, há um mapeamento da cidade, contrastando seus lugares solares à bruma das periferias, onde, paradoxalmente, concentram-se de modo mais puro os valores humanistas. Isso ocorre porque Bruno Aurélio dedica muita atenção aos detalhes do cotidiano pobre, não só por um trato discreto da paisagem e das ambientações, sem exotização, mas também pela eleição de uma língua franca pedestre, coloquial e popular, muito aberta à dicção local. O mais interessante é que a própria voz narrativa, na maioria das circunstâncias, adota esta dicção, pondo-se no mesmo nível das realidades figuradas. Desse modo, o “Prólogo” é também um aviso à leitura: quem escreve esses contos também perfila com os desvalidos. O livro é, nesse sentido, uma tomada de posição. Parodiando o belo título de um livro da indiana Gayatri Chakravorty Spivak (Pode o subalterno falar?), Bruno Aurélio responde criticamente à pergunta “Pode o subalterno de Guarapuava falar?”. O autor apresenta de modo contundente a violência, a invisibilidade, a exploração do trabalho, dos corpos, das almas e das economias da gente pobre.
“Noite adentro” é isso, um atravessamento. Seja o do mapa da cidade, seja o da alma dos cidadãos “de bem” (como na fórmula dos discursos da extrema-direita) e a dos “condenados da terra” (como propôs o martinicano Frantz Fanon). Na franja entre a verdade e a ficção, as narrativas equilibram-se tenuemente entre o acontecido dos jornais e a invenção da literatura. Esse equilíbrio, porém, se faz através da noite, onde tudo se nubla, onde as leis são suspensas e onde a monstruosidade brilha como um sol de terror.