quinta-feira, 8 de novembro de 2012

A corrosão desassombrada de Ricardo Pozzo



Não, nunca verás nos poemas do Pozzo espalhados por aí, nas revistas, sites, plaquetes, muros e internets o fútil e frágil gozo da linguagem girando em falso, embevecida de seu próprio fosso, da fera feliz ao roer seu próprio osso. Tens ali o poeta indignado, num arco enorme que vai da carne nua, mulheres vibráteis e asselvajadas entre (lições de) lençóis, passando pelas passantes baudelaireanas das ruas cruas, molambos e parangolés em que a experiência, essa sim, gira no nada para culminar em lugar nenhum, mendigos e seus cobertores de esgares, e chegando, enfim, à distorção da civilização ocidental em sua imersão nos ódios do interesse, nas fraturas do capitalismo, na distribuição desigual do trabalho social. O ápice daquele arco de tensões empunhado por Pozzo parece estar em Libertação pela Simbiose Social, poema cuja estrutura nos remete a outros indignados (ardendo de ironia) como Sousândrade, Lorca, Neruda. Pozzo possui a palavra em explosão, rompendo com a perspectiva tão canonizada entre nós da poesia coisificada, em si uma reiteração na reificação, obediência cega à ideologia da técnica, cânone, de resto, coerente com outras experiências sociais (penso em Mallarmé, em Celan), mas não com a nossa experiência da diferença, da margem, do periférico. Poesia aqui no Cone Sur corrói a pedra. E não, poesia aqui, portanto, não é só coisa, pedra reclamando buril, torremarfilenha experiência do vazio. Poesia em Pozzo quer ser signo signando, sim, na pulsação de coisa viva, experiência escarrando no vão de essências. Há uma indignada profusão punk a estalar signos como ‘desafeto’, ‘corrosão’, ‘máscara hipócrita’, ‘desvelamento sádico’, ‘ilusões predeterminadas’, ‘coração trancafiado’, ‘sparring arremessado’, ‘fabulosa meretriz’, ‘criança carbonizada’, ‘generais covardes’, ‘florestas de gás’, ‘degredo’, ‘papelotes intoxicados’, ‘cadáveres calejados’, ‘albergues da solidão’, ‘w.a.s.p.’, ‘faminto povo americano’, ‘casulo fascista’, ‘corrupção’, ‘zumbis feitos de susto’. Essa indignação, marca maior do discurso de Pozzo, no entanto, corrói exatamente por estar formalizada e trazer também uma irritação do estético: por isso Libertação pela Simbiose Social parece ser o ápice deste livro. Pozzo consegue nesse poema ser o homem-jornal (‘jornalizar’, pedia o outro corrosivo, Oswald de Andrade), estraçalhando por referências estilhaçadas, nomes, notícias, acontecimentos, toda a hipocrisia enfim do status quo contra o qual se erige o poético. Afinal, e para que poetas em tempos de penúria? Exatamente para isso, dizer o indizível, rastrear com a linguagem as possibilidades de um dito a ser transcendido, exato justamente por ser fruto de uma concepção de forma que não abole o azar do sentido. O jogo de linguagem, nesse contexto, tem uma fundamentação ética rara nas praias nossas da obscuridade. O poeta corrói como rock, sem ceder, porém, ao star system. Roqueiro que nunca quer ganhar dinheiro, formulando paisagens transitórias diante do espetáculo do absurdo. Pozzo não é, assim, um poeta mudo: ele quer a transcendência esquiva da iluminação profana. O discurso só é poético, sabemos, se ronda as lindes do transe, carcomendo fragmentos de beleza. A poesia em transe (crítica da terra em transe, das coisas como supostamente são), intentada por Pozzo, quer ser a do reconhecimento da possibilidade da transcendência diante do mundo hostil (reparem como ele almeja ser o ‘agrimensor do absoluto’ diante de um rosto que ‘resplandece feito Luas’, no ‘tule tenro do Céu’, na perspectiva de que ainda ‘resta a madrugada...’), operando pelo fluxo e pela respiração entrecortados (Pozzo celebra o fragmento), o ziguezaguear de fosforescências de sentido, espécie de continuidade de quases, negando, desse modo, qualquer utopia da sistematização: a poesia não diz nada com totalidade, é um ressoar quimérico de quases, fluxo bordejante ancorado no impuro nosso de cada dia. A indignação do Pozzo postula essa opalescência e lividez dos fundamentos: ressonância interna de sentidos, ela tanto corrói como, identidade dissolvida, restitui o êxtase da textura.

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