Como ler a prosa de poeta que Adriana Zapparoli
exercita em Lontra Corola Libido? É
um longo poema, recortado a esmo? Pode ser. Mas também pode não ser: aglomerado
de fosforescências verbais, onde apenas intuímos, num ritmo impreciso, o discurso
em que o siso se traveste em brilhos. Como ler isso, afinal? Sabemos que corpos
pulsam ali, talvez se esbarrem e fluam e se dissolvam. Ainda assim, a reflexão
é insegura. Torções sobre torções, staccatos
de texturas com vírgulas de recheio, às vezes fora do tempo, às vezes mesmo
faltantes para que a sintaxe desobedeça ao que o cérebro traz condicionado. Acho
impossível conter esses impulsos desejantes, palavras caras e parolagem destronada
do dicionário científico, amareladas algumas de raro, acho impossível conter
tudo isso num discurso nítido. Descrevem o que mesmo?
Lyotard, em O Inumano,
fala de poesia como descrita, a escrita da descrição impossível. A desolação
interior implica na compreensão da miserabilidade das palavras diante do nada
melancólico. A poesia busca, aí, o não-conceitual: o mundo da ansiedade técnica
leva à desolação de que nada acontece, sendo tudo efêmero. A arte moderna
inaugura a apresentação do inapresentável, fugindo ao simbólico e à
comunicação. Para Lyotard, “quando se quer apresentar algo que não é
apresentável, é necessário martirizar a apresentação.” Essa martirização é
tanto o afastamento do artista da cultura (que implica em ensino e
simbologias), sua marginalização social – suicidado da sociedade – quanto a
radicalização da forma de apresentação, voltada ao processo e não à
representação. O processo é o de um trato com a matéria. O interesse é pela
matéria e não pela forma. A matéria é infinda, não cabe em uma forma, em um
suporte. No caso neobarroco, essa matéria é a do encontro, logo, a matéria é
questão de textura, e o olhar lançado a ela se faz de dentro, na mesma carne
esponjosa, e não na distinção entre sujeito e objeto. Não se trata de cobrir mimeticamente
com palavras um suporte, uma imagem pré-concebida. O próprio ato de costurar
palavras (a tatuagem do barroco, como queria Sarduy) acaba por criar uma forma
(que não é prévia). Se na poesia as palavras são a matéria do pensamento, tratá-las,
no caso neobarroco, como textura, significa uma atenção molecular ao texto.
Erige-se a atenção como altar: para que algo ocorra suspende-se o entendimento
conceitual, aproximando-se das palavras em seus timbres e matizes.
Para que a poesia faça sentido, ela deve estar além do
hábito, do familiar, da estrutura, da cultura, da territorialização. Deve estar
além também da rememoração, da linguagem de reatualização própria à ciência.
Segundo Lyotard, esse além é o da abertura perlaborativa da linguagem, que deve
ser pensada como um campo de percepção capaz de fazer sentido por si mesmo,
independente de qualquer intenção de significar. As frases, longe de serem
colocadas sob as responsabilidades dos locutores, devem ser concebidas como
concreções descontínuas e espasmódicas de um meio falante contínuo, o que
coaduna com a preferência pela prosa (onde o poema não tem brancos, mas flancos).
O sujeito dessa voz é o silêncio (e é preciso que o poema o ouça, passivo)
(mais silencioso que o corpo não há, e, se no laboratório de Zapparoli seus
rodeios terminam em sonoridades febris, isso só amplia seu não de cadáver, como
bichos na ampola). O poema deve superar a impaciência moderna do significado,
ainda Lyotard: “ser e continuar a ser questionado por ele (um fenômeno), de se
suster pela mediação em resposta com ele, sem neutralizar pela explicação o seu
poder de inquietação.” Logo, nas palavras de Lyotard, passar do tempo
(ocidental, mercadológico) para o templo (aceitação do inominável). A descrita
é, portanto, da ordem da passividade (mais difícil, no entanto do que a
conquista, pois implicando em suspensão para o acolhimento): depende-se da
suspensão da nebulosa de hábitos da cultura (a tradição do verso, a mesmice da
poesia de gabinete), de um vazio interior propenso ao acontecimento da
linguagem. Aceitação difícil, pois coloca a linguagem no plano do sofrimento: o
não-pensado participa da hesitação de não sabermos o que ocorrerá e se
ocorrerá.
Adriana Zapparoli desenha o que não se vê, rastreando
nos fonemas aproximações (em forma de
sentenças fraturadas) de gozo e/ou desolação (pois dá no mesmo, em ambos havendo
a suspensão do sentido). O poema em prosa é escrito mais para ser lido ou para
ser ouvido (recitado)? O verso enquanto marcação mais extremada da voz... A
própria extensão da frase implicaria na exigência mais da leitura silenciosa
que da oralizada. A voz do poeta deixa de ser literal. Como se a ‘voz’ do poema
passasse a ser instrumental e não orgânica, material e não formal. E tudo se
complica aqui, pois as imagens de fundo são de organismos, talvez com órgãos de
fogo ou vento. O verso tradicional seria uma espécie de demagogia oral, por
entregar-se explicitamente (espacialmente) ao ritmo. O poema em prosa tende a
se tornar infixável. O que implica numa atenção descontínua e fulgurante por
parte do poeta e do leitor. A prosa favorece, portanto, a deriva do poemático,
o quase, a perda. Ao mesmo tempo, é informe, não se deixa reconhecer enquanto
objeto figurativo. É um poema, assim, sem memória (se tomarmos verso=memória,
rima=memória).
O fragmento impõe uma abertura ao texto, já na origem
do poema em prosa. Na
primeira e canônica definição do poema em prosa, Baudelaire coloca em primeiro
plano a brevidade e a unidade: se, em si, poema em prosa é também uma espécie
de fragmento, de resto (Baudelaire usa os termos “morceaux”, “fragments”,
“tronçons”), nada nele pode ser sobra, resto. Propõe-se como fragmento
autônomo, distante de dilações digressivas das chamadas prosas poéticas. Cortes
dessincronizados, descontinuidades de mão-dupla, tudo é invocado nos textos
curtíssimos de Zapparoli, abrindo o poema e, portanto, aceitando e negando, ao
mesmo tempo, Baudelaire. A prosa de poeta já não é a da convulsão da
modernidade, e Adriana consegue isso como poucas.
A poeta faz do/no poema (e da prosa) alvo e seta do
poético. Trata-se, nos bons poetas, de um fazer modelar, concentrado, intenso.
No caso de Zapparoli, é principalmente de intensidade que se trata. O poema (e
a prosa) intenso. A prosa sem função de ficção ou de convencimento quer ser um
poema mais intenso. Um poema como fazer que assume plenamente a acepção,
fazendo-se na intensidade da experiência duplicada: a experiência da
intensidade no corpo (que é principalmente um corpo político, que diz uma
demanda explosiva), ou melhor, num corpus,
na medida em que a instabilidade faz nômade a(s) identidade(s), o que só acentua
a intensidade, tornando-a, também, ágil, e a experiência da intensidade na prosa,
que é um corpo à parte, logo reflexivo, mas não reflexo. Para ser intensa,
recorre-se à velocidade e ao derretimento de uma prosa de poeta, onde o dito
tende a não terminar nunca, fazendo com que a experiência visual da leitura se
apague e se concentre numa concomitância ideal com a experiência (de corpo e de
linguagem) que acontece no poema, faça-se mais internamente, sem o extravio
visual dos versos e sem o extravio espiritual dos enjambements. Essa intensidade quer dizer da prosa de poeta como
fazer e como fazer acontecer, incompleto, mas vivo. A reflexividade não é um
processo posterior à experiência do corpo trasladado. A prosa se constrói como
ensaio do apresentável, e não do representável. Para que seja intensa, a prosa
deve ser também um evento de devir transcendência. O ideal seria que não
tivesse suporte. Por isso não lemos paisagem ali. Ainda bem que não.
O poema em prosa exercita um uso apresentativo da
linguagem, mais do que representativo, contrariando a ordem mimética. Sendo
assim, abre-se para o pictórico (além, é claro, da musicalidade inerente a
qualquer lírica posterior a Verlaine). Já no nascedouro é assim, com Aloysius
Bertrand propondo seu livro à maneira de Rembrandt e de Callot. É assim com
Baudelaire, que propõe instantâneos urbanos numa poética do olhar. Ou com
Rimbaud, que intitula seus textos de Illuminations,
e com Huysmans e seus “Croquis Parisiens”. Paisagens subjetivas, olhar
interior. Mas que em Zapparoli ganham concretudes sinistras, bichos redobrados
(“abutre-das-montanhas, “urubu-de-cabeça-amarela”), recompondo-se no fragmento
seguinte para serem decompostos no seguinte e daí por diante, num fazer infindo
e arreganhado de ecos. Matéria de formas que folham ou falham, tudo, menos o
falar típico dos foles tradicionalistas. Nem sempre, porém, alcançamos todos os
seus anelos. Ficam, muitas vezes, fósforos borbulhando no vazio, estilo da
língua em cepos. Muito difícil, disse, ler como se houvesse um princípio. Entre
no rastro do cometa, ela parece nos convidar.
O dogma retórico rompido pelo poema em prosa é o do
princípio antimétrico. Já na Retórica
de Aristóteles estabelecia-se o princípio antimétrico como uma regra preceptiva
para a prosa: evitar o verso, que, além de artificial, distrairia a atenção. A
função poética postulada por Jakobson baseia-se justamente nessa faculdade da
distração, do gozo em si, da dança e não do caminhar, como formulou Valéry. Em
Aristóteles, porém, não se prescrevia que a prosa não pudesse ter ritmo, pelo
contrário. A prosa não poderia ser um discurso de indefinição rítmica,
desagradável retoricamente. Um ritmo, portanto, sem metro (no caso de Zapparoli,
propício ao fôlego e ao ofego: “resvalo de esôfago”). Cícero, nas suas
reflexões sobre oratória, pregava que os ritmos da prosa são os mesmos da
poesia, embora nesta se evidenciem explicitamente, devendo estar ocultos
naquela. A questão, a partir daí, passa a ser a do disfarce: a boa prosa seria
aquela que mesclasse secretamente diferentes metros e ritmos, disfarçando sua
organização pausal. A prosa ficou com o privilégio da irregularidade e da
aparente espontaneidade, o que a poesia só adquirirá com o verso livre e com o
poema em prosa. A
modernidade romântica construirá mesclas de convergências explícitas,
poetizando a prosa e tornando prosaica a poesia: o poema em prosa insere-se
numa estética da modernidade. Curiosamente, o efeito obtido em geral visava
tanto a um rebaixamento da poesia quanto a uma elevação da prosa. Tal
imbricação de lírica e narrativa faz-se, geralmente, na forma de fragmentos
narrativos, quase contos cantados, como diria Borges (canções sem metro, diria
Raul Pompéia): diferencia-se do conto, no entanto, por sua impossibilidade de
resumo (lembrar do “não parafraseável” tal como proposto por Jacques Roubaud). Não
se consegue enxergar um objeto nesse texto: estamos no olho do furacão de um
dizer sem pistas, ou de disfarces extremos. O que ressalta mais a matéria, nos
seus signos fugitivos que transam até o amanhecer.
Zapparoli não quer unidade, não quer ligação, sua cola
é diferente, o que está até no título dessa plaquete, Lontra Corola Libido. Feixes assimétricos de luz e sombra, rastros
de animais extintos habitando a carne do texto que evita a voz, numa posição
explícita de radicalização da emissão. Destronar o sujeito e ampliar a
espessura que contém, no mesmo oco sincopado (ovo com rabo e miçangas),
linguagem e realidade. Não se pode mesmo ler Adriana Zapparoli. E eu gosto
muito disso.