sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Ricardo Carvalho: Sem Pose de Poeta


 

            Ricardo Schmitt Carvalho (Curitiba, 1966) lançou pela editora Medusa seu primeiro livro de poemas, Lascas (1992-2002). Críticos preguiçosos começam a análise de poetas estreantes com algo que invariavelmente não foge ao querer saber como anda a poesia atual brasileira (como se atuais fossem só os estreantes), se ela ainda tem vigor, quais as matrizes estéticas mais gerais etc. Daí, podem agregar aquele poeta particular a um grupo amplo, o geracional ou o situacional. Generalizam, usam parâmetros defasados, cobram do poeta que dê conta de uma geração. Ricardo Schmitt, para nosso alívio, embora escreva poemas, não faz pose de poeta (nem atua na política da poesia: revistas, universidade, conselhos editoriais). Por isso, creio, seu livro passou sem atenção pela crítica no ano de seu lançamento (2003). Como amigo do poeta, deixei o tempo transcorrer e só recentemente fui alerta ao livro. Li-o como a um acontecimento. Um acontecimento provoca o novo, altera o dado; para dizer como Néstor Perlongher, “os acontecimentos costumam chegar em silêncio, quase imperceptíveis, somente os mais avisados os detectam”.
            Quando digo que o poeta não fez pose de poeta, é porque escreveu com frescor. Os  poemas são puros, poucos posam o hermetismo cerebral de vertente construtiva ou a contemplação enigmática irracionalista. De tão ‘simples’, seus poemas chegam a ser ‘o novo’. Uma pureza original, como os poemas escritos pelos primeiros poetas gregos, desbravadores. Sem o ranço óbvio da leitura, que hoje virou sinônimo, muitas vezes, de criação, com poetas babando demais na tradição. Poemas simples, nítidos seus temas de predileção: a genealogia (pessoal e poética), o transcendentalismo e o gosto pela história antiga (a grega e a bárbara), o cinema e o pop, a sacanagem e o amor.
            Vamos ao título: Lascas. Aqui a questão do arranjo. Cabe ao poeta compor o caos em constelação. O estilhaçamento (cacos) é funcional no livro. Não se trata mais, como nos anos 70/80, de se antepor, como pretendia Paulo Leminski, o savage (sábio) ao sauvage (selvático), ou de realizar o tráfico entre cultura erudita e cultura popular, tráfico esse exaltado por Leminski na cultura de massas. O universo cultural hoje, apesar da globanalização, é estilhaçado. Além das majors, há as microculturas, moleculares, setorizadas. Blogs, drogas, Osho, Terceiro Setor, trips de tribos conjugadas se acotovelando. Ricardo é um poeta que foge dos compartimentos, abraçando-os todos ao mesmo tempo. O livro é sem divisórias estanques, os mini-livros de muitos poetas atuais. Organiza-se o fluxo e não o(s) objeto(s). O objeto-poema é pensado como fluxo, essa sua lógica. Ricardo Carvalho é um poeta do quase..., e do além de... Seus poemas são objetos quase, tendentes a: poema em prosa, soneto, concretismo, letra de rock. Ecletismo sem consistência ? Não. Só se fosse a cópia pura e simples. Ele se apropria enviesado da tradição, querendo fugir dela. Por isso, também está além da tradição.
            O poeta apenas precisa ir depurando a poesia (já passou da hora dele lançar um novo volume...). Vendo o que presta e o que é descartável. No segundo grupo, citaria as fragmentações vocabulares (embora coadunem com o espírito de multiplicidade da obra), a espacialização na página (e lá se vai mais de um século desse recurso). Ou radicalizar, ousar mais nesse sentido, seja pela via racionalista, seja pela via sensorial, já que ambas nele se conjugam. Mas na sua maior parte o livro é uma selvageria gostosa, em que sentimos a poesia realmente acontecer (com tudo de místico e de materialista que tal possa implicar). Em Lascas, os acontecimentos: aqueles que “somente os mais avisados os detectam”.

O livro impossível de Adriana Zapparoli



Como ler a prosa de poeta que Adriana Zapparoli exercita em Lontra Corola Libido? É um longo poema, recortado a esmo? Pode ser. Mas também pode não ser: aglomerado de fosforescências verbais, onde apenas intuímos, num ritmo impreciso, o discurso em que o siso se traveste em brilhos. Como ler isso, afinal? Sabemos que corpos pulsam ali, talvez se esbarrem e fluam e se dissolvam. Ainda assim, a reflexão é insegura. Torções sobre torções, staccatos de texturas com vírgulas de recheio, às vezes fora do tempo, às vezes mesmo faltantes para que a sintaxe desobedeça ao que o cérebro traz condicionado. Acho impossível conter esses impulsos desejantes, palavras caras e parolagem destronada do dicionário científico, amareladas algumas de raro, acho impossível conter tudo isso num discurso nítido. Descrevem o que mesmo?
Lyotard, em O Inumano, fala de poesia como descrita, a escrita da descrição impossível. A desolação interior implica na compreensão da miserabilidade das palavras diante do nada melancólico. A poesia busca, aí, o não-conceitual: o mundo da ansiedade técnica leva à desolação de que nada acontece, sendo tudo efêmero. A arte moderna inaugura a apresentação do inapresentável, fugindo ao simbólico e à comunicação. Para Lyotard, “quando se quer apresentar algo que não é apresentável, é necessário martirizar a apresentação.” Essa martirização é tanto o afastamento do artista da cultura (que implica em ensino e simbologias), sua marginalização social – suicidado da sociedade – quanto a radicalização da forma de apresentação, voltada ao processo e não à representação. O processo é o de um trato com a matéria. O interesse é pela matéria e não pela forma. A matéria é infinda, não cabe em uma forma, em um suporte. No caso neobarroco, essa matéria é a do encontro, logo, a matéria é questão de textura, e o olhar lançado a ela se faz de dentro, na mesma carne esponjosa, e não na distinção entre sujeito e objeto. Não se trata de cobrir mimeticamente com palavras um suporte, uma imagem pré-concebida. O próprio ato de costurar palavras (a tatuagem do barroco, como queria Sarduy) acaba por criar uma forma (que não é prévia). Se na poesia as palavras são a matéria do pensamento, tratá-las, no caso neobarroco, como textura, significa uma atenção molecular ao texto. Erige-se a atenção como altar: para que algo ocorra suspende-se o entendimento conceitual, aproximando-se das palavras em seus timbres e matizes.
Para que a poesia faça sentido, ela deve estar além do hábito, do familiar, da estrutura, da cultura, da territorialização. Deve estar além também da rememoração, da linguagem de reatualização própria à ciência. Segundo Lyotard, esse além é o da abertura perlaborativa da linguagem, que deve ser pensada como um campo de percepção capaz de fazer sentido por si mesmo, independente de qualquer intenção de significar. As frases, longe de serem colocadas sob as responsabilidades dos locutores, devem ser concebidas como concreções descontínuas e espasmódicas de um meio falante contínuo, o que coaduna com a preferência pela prosa (onde o poema não tem brancos, mas flancos). O sujeito dessa voz é o silêncio (e é preciso que o poema o ouça, passivo) (mais silencioso que o corpo não há, e, se no laboratório de Zapparoli seus rodeios terminam em sonoridades febris, isso só amplia seu não de cadáver, como bichos na ampola). O poema deve superar a impaciência moderna do significado, ainda Lyotard: “ser e continuar a ser questionado por ele (um fenômeno), de se suster pela mediação em resposta com ele, sem neutralizar pela explicação o seu poder de inquietação.” Logo, nas palavras de Lyotard, passar do tempo (ocidental, mercadológico) para o templo (aceitação do inominável). A descrita é, portanto, da ordem da passividade (mais difícil, no entanto do que a conquista, pois implicando em suspensão para o acolhimento): depende-se da suspensão da nebulosa de hábitos da cultura (a tradição do verso, a mesmice da poesia de gabinete), de um vazio interior propenso ao acontecimento da linguagem. Aceitação difícil, pois coloca a linguagem no plano do sofrimento: o não-pensado participa da hesitação de não sabermos o que ocorrerá e se ocorrerá.
Adriana Zapparoli desenha o que não se vê, rastreando nos fonemas  aproximações (em forma de sentenças fraturadas) de gozo e/ou desolação (pois dá no mesmo, em ambos havendo a suspensão do sentido). O poema em prosa é escrito mais para ser lido ou para ser ouvido (recitado)? O verso enquanto marcação mais extremada da voz... A própria extensão da frase implicaria na exigência mais da leitura silenciosa que da oralizada. A voz do poeta deixa de ser literal. Como se a ‘voz’ do poema passasse a ser instrumental e não orgânica, material e não formal. E tudo se complica aqui, pois as imagens de fundo são de organismos, talvez com órgãos de fogo ou vento. O verso tradicional seria uma espécie de demagogia oral, por entregar-se explicitamente (espacialmente) ao ritmo. O poema em prosa tende a se tornar infixável. O que implica numa atenção descontínua e fulgurante por parte do poeta e do leitor. A prosa favorece, portanto, a deriva do poemático, o quase, a perda. Ao mesmo tempo, é informe, não se deixa reconhecer enquanto objeto figurativo. É um poema, assim, sem memória (se tomarmos verso=memória, rima=memória).
O fragmento impõe uma abertura ao texto, já na origem do poema em prosa. Na primeira e canônica definição do poema em prosa, Baudelaire coloca em primeiro plano a brevidade e a unidade: se, em si, poema em prosa é também uma espécie de fragmento, de resto (Baudelaire usa os termos “morceaux”, “fragments”, “tronçons”), nada nele pode ser sobra, resto. Propõe-se como fragmento autônomo, distante de dilações digressivas das chamadas prosas poéticas. Cortes dessincronizados, descontinuidades de mão-dupla, tudo é invocado nos textos curtíssimos de Zapparoli, abrindo o poema e, portanto, aceitando e negando, ao mesmo tempo, Baudelaire. A prosa de poeta já não é a da convulsão da modernidade, e Adriana consegue isso como poucas.
A poeta faz do/no poema (e da prosa) alvo e seta do poético. Trata-se, nos bons poetas, de um fazer modelar, concentrado, intenso. No caso de Zapparoli, é principalmente de intensidade que se trata. O poema (e a prosa) intenso. A prosa sem função de ficção ou de convencimento quer ser um poema mais intenso. Um poema como fazer que assume plenamente a acepção, fazendo-se na intensidade da experiência duplicada: a experiência da intensidade no corpo (que é principalmente um corpo político, que diz uma demanda explosiva), ou melhor, num corpus, na medida em que a instabilidade faz nômade a(s) identidade(s), o que só acentua a intensidade, tornando-a, também, ágil, e a experiência da intensidade na prosa, que é um corpo à parte, logo reflexivo, mas não reflexo. Para ser intensa, recorre-se à velocidade e ao derretimento de uma prosa de poeta, onde o dito tende a não terminar nunca, fazendo com que a experiência visual da leitura se apague e se concentre numa concomitância ideal com a experiência (de corpo e de linguagem) que acontece no poema, faça-se mais internamente, sem o extravio visual dos versos e sem o extravio espiritual dos enjambements. Essa intensidade quer dizer da prosa de poeta como fazer e como fazer acontecer, incompleto, mas vivo. A reflexividade não é um processo posterior à experiência do corpo trasladado. A prosa se constrói como ensaio do apresentável, e não do representável. Para que seja intensa, a prosa deve ser também um evento de devir transcendência. O ideal seria que não tivesse suporte. Por isso não lemos paisagem ali. Ainda bem que não.
O poema em prosa exercita um uso apresentativo da linguagem, mais do que representativo, contrariando a ordem mimética. Sendo assim, abre-se para o pictórico (além, é claro, da musicalidade inerente a qualquer lírica posterior a Verlaine). Já no nascedouro é assim, com Aloysius Bertrand propondo seu livro à maneira de Rembrandt e de Callot. É assim com Baudelaire, que propõe instantâneos urbanos numa poética do olhar. Ou com Rimbaud, que intitula seus textos de Illuminations, e com Huysmans e seus “Croquis Parisiens”. Paisagens subjetivas, olhar interior. Mas que em Zapparoli ganham concretudes sinistras, bichos redobrados (“abutre-das-montanhas, “urubu-de-cabeça-amarela”), recompondo-se no fragmento seguinte para serem decompostos no seguinte e daí por diante, num fazer infindo e arreganhado de ecos. Matéria de formas que folham ou falham, tudo, menos o falar típico dos foles tradicionalistas. Nem sempre, porém, alcançamos todos os seus anelos. Ficam, muitas vezes, fósforos borbulhando no vazio, estilo da língua em cepos. Muito difícil, disse, ler como se houvesse um princípio. Entre no rastro do cometa, ela parece nos convidar.
O dogma retórico rompido pelo poema em prosa é o do princípio antimétrico. Já na Retórica de Aristóteles estabelecia-se o princípio antimétrico como uma regra preceptiva para a prosa: evitar o verso, que, além de artificial, distrairia a atenção. A função poética postulada por Jakobson baseia-se justamente nessa faculdade da distração, do gozo em si, da dança e não do caminhar, como formulou Valéry. Em Aristóteles, porém, não se prescrevia que a prosa não pudesse ter ritmo, pelo contrário. A prosa não poderia ser um discurso de indefinição rítmica, desagradável retoricamente. Um ritmo, portanto, sem metro (no caso de Zapparoli, propício ao fôlego e ao ofego: “resvalo de esôfago”). Cícero, nas suas reflexões sobre oratória, pregava que os ritmos da prosa são os mesmos da poesia, embora nesta se evidenciem explicitamente, devendo estar ocultos naquela. A questão, a partir daí, passa a ser a do disfarce: a boa prosa seria aquela que mesclasse secretamente diferentes metros e ritmos, disfarçando sua organização pausal. A prosa ficou com o privilégio da irregularidade e da aparente espontaneidade, o que a poesia só adquirirá com o verso livre e com o poema em prosa. A modernidade romântica construirá mesclas de convergências explícitas, poetizando a prosa e tornando prosaica a poesia: o poema em prosa insere-se numa estética da modernidade. Curiosamente, o efeito obtido em geral visava tanto a um rebaixamento da poesia quanto a uma elevação da prosa. Tal imbricação de lírica e narrativa faz-se, geralmente, na forma de fragmentos narrativos, quase contos cantados, como diria Borges (canções sem metro, diria Raul Pompéia): diferencia-se do conto, no entanto, por sua impossibilidade de resumo (lembrar do “não parafraseável” tal como proposto por Jacques Roubaud). Não se consegue enxergar um objeto nesse texto: estamos no olho do furacão de um dizer sem pistas, ou de disfarces extremos. O que ressalta mais a matéria, nos seus signos fugitivos que transam até o amanhecer.
Zapparoli não quer unidade, não quer ligação, sua cola é diferente, o que está até no título dessa plaquete, Lontra Corola Libido. Feixes assimétricos de luz e sombra, rastros de animais extintos habitando a carne do texto que evita a voz, numa posição explícita de radicalização da emissão. Destronar o sujeito e ampliar a espessura que contém, no mesmo oco sincopado (ovo com rabo e miçangas), linguagem e realidade. Não se pode mesmo ler Adriana Zapparoli. E eu gosto muito disso.