Ricardo Schmitt
Carvalho (Curitiba, 1966) lançou pela editora Medusa seu primeiro livro de poemas, Lascas (1992-2002). Críticos
preguiçosos começam a análise de poetas estreantes com algo que invariavelmente
não foge ao querer saber como anda a poesia atual brasileira (como se atuais
fossem só os estreantes), se ela ainda tem vigor, quais as matrizes estéticas
mais gerais etc. Daí, podem agregar aquele poeta particular a um grupo amplo, o
geracional ou o situacional. Generalizam, usam parâmetros defasados, cobram do
poeta que dê conta de uma geração. Ricardo Schmitt, para nosso alívio, embora
escreva poemas, não faz pose de poeta (nem atua na política da poesia:
revistas, universidade, conselhos editoriais). Por isso, creio, seu livro
passou sem atenção pela crítica no ano de seu lançamento (2003). Como amigo do
poeta, deixei o tempo transcorrer e só recentemente fui alerta ao livro. Li-o
como a um acontecimento. Um acontecimento provoca o novo, altera o dado; para
dizer como Néstor Perlongher, “os acontecimentos costumam chegar em silêncio,
quase imperceptíveis, somente os mais avisados os detectam”.
Quando digo que o poeta não fez pose de poeta, é porque
escreveu com frescor. Os poemas são
puros, poucos posam o hermetismo cerebral de vertente construtiva ou a
contemplação enigmática irracionalista. De tão ‘simples’, seus poemas chegam a
ser ‘o novo’. Uma pureza original, como os poemas escritos pelos primeiros
poetas gregos, desbravadores. Sem o ranço óbvio da leitura, que hoje virou
sinônimo, muitas vezes, de criação, com poetas babando demais na tradição.
Poemas simples, nítidos seus temas de predileção: a genealogia (pessoal e
poética), o transcendentalismo e o gosto pela história antiga (a grega e a
bárbara), o cinema e o pop, a sacanagem e o amor.
Vamos ao título: Lascas.
Aqui a questão do arranjo. Cabe ao poeta compor o caos em constelação. O
estilhaçamento (cacos) é funcional no livro. Não se trata mais, como nos anos
70/80, de se antepor, como pretendia Paulo Leminski, o savage (sábio) ao sauvage
(selvático), ou de realizar o tráfico entre cultura erudita e cultura popular,
tráfico esse exaltado por Leminski na cultura de massas. O universo cultural
hoje, apesar da globanalização, é estilhaçado. Além das majors, há as microculturas, moleculares, setorizadas. Blogs, drogas, Osho, Terceiro Setor, trips de tribos conjugadas se
acotovelando. Ricardo é um poeta que foge dos compartimentos, abraçando-os
todos ao mesmo tempo. O livro é sem divisórias estanques, os mini-livros de
muitos poetas atuais. Organiza-se o fluxo e não o(s) objeto(s). O objeto-poema
é pensado como fluxo, essa sua lógica. Ricardo Carvalho é um poeta do quase..., e do além de... Seus poemas são objetos quase, tendentes a: poema em
prosa, soneto, concretismo, letra de rock. Ecletismo sem consistência ? Não. Só
se fosse a cópia pura e simples. Ele se apropria enviesado da tradição,
querendo fugir dela. Por isso, também está além da tradição.
O poeta apenas precisa ir depurando a poesia (já passou
da hora dele lançar um novo volume...). Vendo o que presta e o que é
descartável. No segundo grupo, citaria as fragmentações vocabulares (embora
coadunem com o espírito de multiplicidade da obra), a espacialização na página
(e lá se vai mais de um século desse recurso). Ou radicalizar, ousar mais nesse
sentido, seja pela via racionalista, seja pela via sensorial, já que ambas nele
se conjugam. Mas na sua maior parte o livro é uma selvageria gostosa, em que
sentimos a poesia realmente acontecer (com tudo de místico e de materialista
que tal possa implicar). Em Lascas,
os acontecimentos: aqueles que “somente os mais avisados os detectam”.
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