Um livro primoroso no trabalho
editorial e com muitos poemas interessantes. Chegamos talvez, na poesia
brasileira, a um momento de poesia pulverizada e democrática. Há nesse viés
sobretudo um desejo de identificação (autor enquanto leitor, leitor enquanto autor). Também o altar (seja o oficial ou o
erudito) pouco interessa nessa concepção. Poesia deixou de ser a arte difícil?
As vantagens seriam óbvias: uma língua franca e a dessacralização da condição
poética. Borda tem essa luz
democrática: há ali clareza clássica no dizer e por vezes belos tratos de
linguagem. Muitos dos poemas retomam a vocação cotidiana modernista (a própria
voz lírica se reconhece dissonante frente as ingerências do pós-moderno), de
Drummond a Adélia Prado. Um mundo em que ironia e enfado dão as mãos, quando
não perturbados pela violência dos podres poderes. A autora se dá bem nessa
seara. Por outro lado, desagradam-me o excessivamente discursivo, o recurso do
contar, na ordem do livro de memória. Outra coisa é o recurso da recusa, quando
as coisas, e mesmo o mundo do cotidiano, repleto de nadas, simplesmente
acontecem. E Borda me pareceu
irregular justamente nesse sentido. Fala-se muito em certos poemas, gerando o
maldito conto poético. Conheci também bons textos lendo o livro de Norma de
Souza Lopes. Destaco “o gato”, “cortesia”, “passou”, poemas que vibram de um
cuidado de estilete, mais próximos do arabesco que do figurativo. A autora
parece estar se testando, com uma paixão ainda temerosa. Se assume a condição
social, o ser todas as mulheres, todos os oprimidos, o texto ganha em vigor
engajado. Persistir a fragilidade de linguagem, no entanto, impede que a
própria mensagem reverbere em poesia. Existe um cuidado forte em muitos dos
textos, mas outro tanto tateia um quanto pueril. Arrisco-me a dizer que a poeta
está ainda acima dos seus recursos. Como se os poemas insinuassem um querer
dizer diferente, menos condescendente.
domingo, 15 de fevereiro de 2015
[Dentro da betoneira], de Thiago Cervan. 2014.
[Dentro
da betoneira], segundo livro de Cervan, é um conjunto de textos rasgados entre
a rua e o poema: “a poesia/que não é/arma/(nunca/foi&/nunca/será)”. Divide-se
o livro em [pedra], [água], [cimento], [areia]. Na primeira parte, marcando
posição de guerrilha, despreza-se o poema culto, o culto de Herzog, o
blasésismo de enésimos burgueses: “exibe o máximo domínio/da flor do lácio ao
lançar o/hexâmetro dactílico/no tabuleiro da vaidade./exige o
reconhecimento/nobiliárquico lexical.” O poema é um corpo estranho na política.
A política do poema de Cervan é a crônica, ferina. E se o poema é um culto, não
haveria um paradoxo? Um culto ao poema. O poeta cronista, entre translação e
baldeações, toma cicuta e ricina. Vê com olhos marejados outros trabalhadores
cansados, marujos, talvez pedreiros, os do metrô trabalhando aos sábados (cito
de propósito outros populares). Fala por eles, representando-os. A violência é
tema, nem sempre é forma, no sentido de uma violência possível ao poema. Afinal
um poema não é bem literatura, não é bem mimetização. Escrever contra o poema,
e não só contra o culto da erudição, talvez arranhasse mais a significação. “Declive”
é o grande poema da primeira parte, com versos como “aparta-se do parto/mundano
onde a placenta/envolve o feto na caçamba.” Em [água], segunda parte do livro, assistimos
a uma volta placentária. São gerações de carne violentada, remexendo no berço e
sargaço. Lembra Inverno, capítulo de Vidas secas. Estamos no plano da avó, de
varais revirados no crepúsculo, cães latidos latindo. Persiste a luta entre
poema e vida: “a palavra não toca/como uma mão toca/o seio noviço&rijo”, ou
“o nome/não é a coisa”. Nesse sentido, reitero minha crítica: seria necessário
enfatizar mais essa distinção. Se o nome não é a coisa, o que é? Fazer o nome
dobrar-se e incorporar o externo com mais vigor de linguagem. Não que não haja
grandes momentos e pelo menos um poema de muita intensidade (“alice”), quando o
enigmático faz relações com a representação. Um tanto desigual a terceira
parte, mas com pelo menos dois grandes poemas (“2:17 a.m.” e “moenda”). No primeiro,
Cervan tece, através da descontinuidade dos versos, os contatos (enfatizados por
estribilho) entre o cansaço do eu lírico e o estupor de “noites senzalas”. No
segundo, acontece com vigor a relação entre representação (o discurso
mimetizador) e a apresentação (o próprio do poema), na medida em que se abole
justamente aquele que fala por outros. O poema é que fala por outros, não o
poeta. E “moenda” consegue isso. Eu diria que [areia] é o melhor conjunto de
poemas do livro. Resolve-se o que na primeira parte do livro era um excesso de
crônica. Os poemas da última parte mais do que falar do mundo, “são” o mundo. O
poeta se despreocupa dos que não tem voz e passa a conviver de modo mais tenso
com outro problema: o fato de ser simultaneamente uma voz (a poética) e um
homem com os mesmos problemas dos demais (o “ser sem voz”). E isso amplifica a
própria crítica social, condição ética dos poemas do livro. Também não há, como
na segunda parte, alguns apelos condescendentes da infância: a vida é também o
amor entre ais, o gozo da multiplicidade perceptiva, a sinuca, o baseado. E
Cervan vem muito afiado em [areia], rapsodo da própria linguagem. Endurece,
saber cantar a morte, mas sem perder a ternura.
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