quarta-feira, 28 de abril de 2021

Velas ao vento, de Marilia Kubota (Medusa, 2020)

 

Acordo cedo para ler o livro da Marilia Kubota. Tantas imagens de paina flutuando e eu num travesseiro de paina. O lençol arrancado do colchão por uma noite enrolada na agitação dos tempos. Só leio poesia na cama. Velas ao vento é livro que pode ser lido rapidamente, mas eu me detenho em cada um dos poemas concisos, sentindo/vendo o que há ao lado do que está escrito: vãos que trazem palavras invisíveis. Imagens a serem completadas.

Há um prefácio da Micheliny Verunschk, fala em equilíbrio de força e leveza. Até concordo, mas não acho que o peso esteja dito nos poemas (exceto pela última parte do livro), ele é quase um interdito, algo nas entrelinhas, algo que não se encontra ali, mas nos vazados dos versos de observação. Sim, poemas de observação. É possível dizer que três tempos convivem no livro da Marilia. A primeira parte tem um nítido viés narrativo, talvez biográfico, do que se recolhe do passado. Eu literalmente adorei. A segunda parte do livro, “micropolis”, põe o mundo das coisas no presente. As coisas que passam, as que flutuam, as que são levadas na vida. A terceira parte, “girassóis de Fukushima”, articula uma distopia com imagens inusitadas. Traz um grande peso ao livro, pois ali venta dentro da gente.

As “velas ao vento” recolhem às pinceladas, evitando a articulação discursiva, um percurso formativo. Para que seja efetivo, tal percurso se faz pelos antepassados, observados de perto e à distância, enunciando mesmo conflitos e contatos entre natureza, culturas e ocorridos (os fatos ou situações). Quase não se adjetiva, as coisas e seres predominam, e ditas sem ênfase acabam por adquirir mais consistência: camélia, pêssego, taioba, bambu, deus, hóstia, padre, montanha, escola, flor de chuchu, flor de abóbora. São breves estações à maneira biográfica, articuladas com prudência, sem constituir rostos mas plenas de detalhes significativos:

 

pinguela é ponte

o rio corre

com pedra sapinho

pés na água fria

até a mãe gosta

e a mãe só gosta de chorar

 

A formação se faz na natureza, nos matos, no trabalho no campo, “ainda uma aldeia”. A poesia se abre porosa à vida da prosa. É a primeira metade dessa primeira parte do livro. Depois, articulação, por assemelhados a haicais, de constatações fotográficas das quatro estações:

 

sol de inverno:

em pé na garupa

o guri sorri

 

Um passado que parece retrato na parede, mas que, como dizia o poeta, dói. Há melancolia ali, eu fico pensando. E vou à segunda parte, “micropolis”. Marilia Kubota lançou um livro com o mesmo título, em 2014. Tenho aqui o “Selva de sentidos”, o “Esperando as bárbaras” e o “Diário da vertigem”, mas não tenho o “Micropolis”. Uma pena. No livro atual, os poemas reunidos em “micropolis” apontam para o presente observado:

 

neste outono

nem uma seta no alvo

pássaros nas nuvens

 

Novamente comparece a melancolia, pois se trata de um presente de ausências: Bueno, Leminski, o vento que não sopra a canção, a companhia da vida:

 

te espero

mas não chegas –

flutua a paina

 

É o cotidiano que desliza, guardado (no sentido de “guardar” que o poeta Antonio Cicero deu ao seu livro de 1996) em recortes. Há aqui um certo frescor, o que nos leva ao quase sorriso. Micheliny Verunschk acerta em cheio no prefácio, postulando “uma potência que chamarei aqui de infantil”, num olhar sobre o mundo que se dá sem prévias concepções:

 

estendido no açucareiro:

um cadáver

luto no formigueiro

 

Foi bom ver Wilson Bueno e Paulo Leminski citados no início de “micropolis”. Tanto nos tankas de Bueno como nos haicais de Leminski há o gozo do jocoso, de uma mais ou menos curitibana e tímida bufonaria. Os haicais da Marilia iluminam pontos mínimos, não exatamente de alegria, mas a partir de um olhar menos preocupado ou filosófico. Uma sensibilidade que reinventa o mesmo das rotinas, intentando um respiro.

O livro termina com “girassóis de Fukushima”, e aí estamos diante do peso, um peso distópico que, certamente por isso, articula-se em termos de super-realidade:

 

palavras tomaram ácido sulfúrico e não perguntam a resposta. o cravo é um beduíno com tapetes solares, sonha com um andar herético.

 

São trechos curtos com andamento de prosa, afirmativos: “o cravo é um beduíno”, “uma forma de inteligência é um sapato pensante”, “o vento é uma catástrofe”, “lagartixa é um tipo de ferrugem estrangeira”. Interessante que o livro termine assim, em ritmo de sonho e deslocamento semântico. O “vento” do título faz mais sentido agora. E não corre exatamente por fora, apesar do que há de objetivo no que se guardou do passado, do que há de observação contemplativa nos haicais e do super-real na última parte do livro. O vento corre por dentro, “em nossos interiores desolados”. E eu me levanto, e escrevo isto.

terça-feira, 27 de abril de 2021

O traço do calígrafo, de Adalberto Müller (Medusa, 2020)

 

O livro de Adalberto Müller, poeta e tradutor já bastante conhecido, compõe-se de duas partes: os contos curtos de “O traço do calígrafo” e os um pouco menos curtos de “[outros orientes]”. Há esse chamado do oriente, que vai desde a proposta “caligráfica” do livro às tramas, e, principalmente, aos três contos finais.

Após o prefácio, de Marcelo Sandmann (que destaca o nomadismo cosmopolita, a errância, o trânsito de identidades, além de um concerto mundial convocado nos textos), o conjunto se abre com “duas palavras”, que é e não é uma narrativa, pois é uma apresentação do autor ao livro, mas ao mesmo tempo é incluído, ao menos no índice, como sendo a primeira das narrativas. “duas palavras” abre com o típico mote borgeano de quem lê e comenta o que lê, entre ensaio e narrativa. Além da discussão do gesto caligráfico, há duas questões embutidas, uma de contiguidade com o título do livro (“representar a intensidade da vida num único traço”), e outra não, pois questão de representação (fatos reais e fatos irreais estariam na origem dos textos).

As narrativas são blocos textuais com um único ponto final (as vírgulas e os pontos finais são estrelas nesta forma fixa de prosa). Está em jogo o fôlego único/a apneia, o que institui uma temporalidade acelerada aos textos. Ao mesmo tempo, essa concentração dá conta de temporalidades dilatadas: um reencontro de amantes depois de duas décadas, um escafandrista que mergulha atrás da esposa há cinco anos, uma foto de 1969 vista no momento em que se é assassinada etc.

Os textos são muito nítidos em geral. Em “o retorno”, de outro lado, flagra-se um sujeito, “desturista” e ao mesmo tempo de identidade em trânsitos de oriente e ocidente, atravessado por uma odisseia (o que supõe uma temporalidade maior) e por memórias supostamente distantes.

Além disso, também há o “momento decisivo”, quase sempre o encontro com a morte/a eternidade: uma personagem que é assassinada, uma bomba que explode num trem, o casal que se suicida numa paisagem clichê, a Torre Eiffel. O tempo longo e o agora são represados e entrelaçados nas narrativas. “delícias” é assim: uma volta súbita na geografia para declarar uma mudança que a personagem vivera já desde os catorze anos de idade (sentir-se atraída pelo cheiro de homens) e que ainda não tinha assumido. Em “pãezinhos” há mesmo uma descrição do que se recolhe no átimo dos textos: “e o levaria a uma existência errante de quarenta anos, os quais, agora, se resumiam a um segundo, em que o tempo dos relógios se desmanchava na duração da vida mais intensa, e se recompunha dentro dos olhos um do outro, como um filme ao avesso.” (p. 34)

Já em “a descida”, o elogio do instante: “e por isso mesmo ele agora se ativara inteiro nos braços daquele instante como quem se atira nos braços da vida” (p. 35) Henri Cartier-Bresson, o fotógrafo francês, escreveu sobre o “instante decisivo”. Ele fala da fotografia como a captação de um equilíbrio entre os diferentes movimentos do fotografado. A fotografia deve intervir num instante que imobilize o equilíbrio. Isso decorre de um ângulo, um movimento do fotógrafo, gestos e atenção enfim. O instinto atua em nome de um equilíbrio geométrico da imagem. Isso não pode ser racionalizado no momento da fotografia, mas quando a imagem se revela no laboratório.

Essas epifanias, porém, se constituem iluminações no plano da existência individual, em geral não atingem a condição da iluminação profana, na qual há sempre um componente histórico, da herança das contradições e derrotas históricas. Daí que muitas das situações beirem o fantástico ou o absurdo (e não exatamente o acaso). Não se pode, por outro lado, chamar de fragmentos (no sentido de Schlegel e Novalis) aos textos de Adalberto, pois não lidam com a incompletude. São mônadas, rosebuds, madeleines (“e aqueles jasmins olentes jamais se desprenderam de suas narinas” – p. 50). Momentos de (des)encontro e despedida, de fusão e de corte. Mundos fechados, no entanto, apesar de toda a porosidade de identidades e trânsitos, pois imunes à tipicidade social. A discussão deste parágrafo, o leitor deve ter notado, configura o oriente como norte do livro, pois iluminação profana e tipicidade são cosmovisões ocidentais.

Nem todos os contos são assim, mas há uma constante na maioria deles e me concentrarei nela agora. Um dos temas dos pequenos contos é a evasão final, rompantes que conduzem ao suicídio, à morte, ao desaparecimento de si ou do passado. Nisso, cada narrativa (ou quadro narrativo) precisa em poucas linhas concentrar uma energia que possibilite e torne verossímil aquela explosão das personagens, que desembestam. Adalberto não recorre ao mágico para tanto, mas a linhas de fronteira existenciais que são ultrapassadas após uma longa demora. É aquela demora existencial, de angústia, de desistência, de tédio, subitamente rompida nos contos, que deve ser objeto de poucas linhas de construção, o que o autor faz com maestria e parcos elementos, no entanto sempre nomeados/nomeáveis: a identidade pessoal e um lugar/uns lugares. Pessoas e lugares nomeados, os textos articulam a duração e preparam o salto final, a única ação de cada narrativa, definidora. Tais ações precisam acontecer no conto, mas no traço do calígrafo elas parecem acontecer quando o calígrafo abdica de continuar o traço e dá por terminado o gesto que grafou. E também no momento decisivo de Cartier-Bresson, o decisivo é resultado de uma seleção a posteriori, uma identificação entre quem viu no momento prévio e quem revê no laboratório (que sim, está ligada à intuição prévia da captação fotográfica). Os rompantes e sua urgência são bem descritos ao final de “o México não é longe daqui”: “e se perdeu, ou se achou, para sempre.” (p. 59) “perdeu”: o fim do traço do calígrafo, quando ele tira a pena da superfície. “achou”: o gesto do fotógrafo na “revelação” do instante decisivo. Então, não é pequena a dificuldade técnica da proposta do livro, pois se trata, obviamente, de palavras narrativas, isto é, que remetem a outra coisa que não a elas mesmas (como o são, ou podem ser melhor, a poesia, a caligrafia ou a fotografia).

Qual a necessidade/dificuldade de narrar em apenas um fôlego? Pode-se dizer também, “em apneia”. Como a concentração de energia para as ações súbitas acontecem nos contos? Pois não bastam a nomeação de personagem e lugar, é preciso uma consistência em geral obtida na descrição detida e muito concreta de efeitos e sujeitos de real: as coisas, sua materialidade e sentido. Por exemplo, em “sobreviventes (I)”, quando as coisas da casa em chamas entrelaçam um destino final para a cadela Nika e a menina Annie. Acompanhamos a dança do fogo e da cachorra em direção ao rompante: “o fogo já subia pela escada, o próprio chão do quarto de Annie já estava começando a abrir-se com a força das labaredas, e a fumaça vinha de todos os lados, por isso a única coisa que Nika podia fazer era saltar na cama de Annie, que já estava tossindo muito, engasgando-se, e aninhar-se ao seu lado, para sempre.” (p. 63)

É preciso, pois, haver uma rápida apresentação de personagens e lugares e concentração de história em síntese de coisas descritas, para que um gesto final (o golpe de katana) contemple uma espécie de eternidade. No conjunto do livro, a repetição do funcionamento das estruturas não remete à monotonia, até mesmo pela variação de geografias e de trânsito entre elas, um dado interessante da proposta de O traço do calígrafo, pois institui, para além daquela tensão entre o não-tempo do instante (o “ocorrerá?” de Lyotard) e a longa duração de um dado existencial, um destempo, algo do exílio ou da transumância múltipla e errante. Não-tempo, tempo (passado e presente), um futuro eterno que se pode colher das decisões abruptas, e o destempo. Convenhamos ser muita coisa para textos tão curtos. E no entanto, “ocorre”, acontece, consegue-se. É questão de equilíbrio, como escreveu Cartier-Bresson. Não por acaso, o último conto da série do livro, “equilibração”, mostra que Adalberto sabe em que ramo está, “no ramo do equilíbrio” (p. 74)

Há, por fim, os “[outros orientes]”, um bloco ao final do livro. São três peças um pouco mais longas (mas não muito), já sem a moldura do fôlego de um só ponto final de grande parte do volume. São narrativas que orientalizam o gesto de Adalberto na composição de “O traço do calígrafo”. Há nelas o prazer intenso da criança, a busca que só tem resultado no esquecimento de si, e a aceitação dos limites (a pequenez, por exemplo, a bastar por si só) resultando noutra “primavera, eterna”. Exploram, no epílogo do livro, a oralidade da narração infantil, o ensaísmo da discussão filosófica, a figura exemplar da narrativa mítica. Um fecho muito adequado à série de quadros dos contos mais curtos.