terça-feira, 27 de abril de 2021

O traço do calígrafo, de Adalberto Müller (Medusa, 2020)

 

O livro de Adalberto Müller, poeta e tradutor já bastante conhecido, compõe-se de duas partes: os contos curtos de “O traço do calígrafo” e os um pouco menos curtos de “[outros orientes]”. Há esse chamado do oriente, que vai desde a proposta “caligráfica” do livro às tramas, e, principalmente, aos três contos finais.

Após o prefácio, de Marcelo Sandmann (que destaca o nomadismo cosmopolita, a errância, o trânsito de identidades, além de um concerto mundial convocado nos textos), o conjunto se abre com “duas palavras”, que é e não é uma narrativa, pois é uma apresentação do autor ao livro, mas ao mesmo tempo é incluído, ao menos no índice, como sendo a primeira das narrativas. “duas palavras” abre com o típico mote borgeano de quem lê e comenta o que lê, entre ensaio e narrativa. Além da discussão do gesto caligráfico, há duas questões embutidas, uma de contiguidade com o título do livro (“representar a intensidade da vida num único traço”), e outra não, pois questão de representação (fatos reais e fatos irreais estariam na origem dos textos).

As narrativas são blocos textuais com um único ponto final (as vírgulas e os pontos finais são estrelas nesta forma fixa de prosa). Está em jogo o fôlego único/a apneia, o que institui uma temporalidade acelerada aos textos. Ao mesmo tempo, essa concentração dá conta de temporalidades dilatadas: um reencontro de amantes depois de duas décadas, um escafandrista que mergulha atrás da esposa há cinco anos, uma foto de 1969 vista no momento em que se é assassinada etc.

Os textos são muito nítidos em geral. Em “o retorno”, de outro lado, flagra-se um sujeito, “desturista” e ao mesmo tempo de identidade em trânsitos de oriente e ocidente, atravessado por uma odisseia (o que supõe uma temporalidade maior) e por memórias supostamente distantes.

Além disso, também há o “momento decisivo”, quase sempre o encontro com a morte/a eternidade: uma personagem que é assassinada, uma bomba que explode num trem, o casal que se suicida numa paisagem clichê, a Torre Eiffel. O tempo longo e o agora são represados e entrelaçados nas narrativas. “delícias” é assim: uma volta súbita na geografia para declarar uma mudança que a personagem vivera já desde os catorze anos de idade (sentir-se atraída pelo cheiro de homens) e que ainda não tinha assumido. Em “pãezinhos” há mesmo uma descrição do que se recolhe no átimo dos textos: “e o levaria a uma existência errante de quarenta anos, os quais, agora, se resumiam a um segundo, em que o tempo dos relógios se desmanchava na duração da vida mais intensa, e se recompunha dentro dos olhos um do outro, como um filme ao avesso.” (p. 34)

Já em “a descida”, o elogio do instante: “e por isso mesmo ele agora se ativara inteiro nos braços daquele instante como quem se atira nos braços da vida” (p. 35) Henri Cartier-Bresson, o fotógrafo francês, escreveu sobre o “instante decisivo”. Ele fala da fotografia como a captação de um equilíbrio entre os diferentes movimentos do fotografado. A fotografia deve intervir num instante que imobilize o equilíbrio. Isso decorre de um ângulo, um movimento do fotógrafo, gestos e atenção enfim. O instinto atua em nome de um equilíbrio geométrico da imagem. Isso não pode ser racionalizado no momento da fotografia, mas quando a imagem se revela no laboratório.

Essas epifanias, porém, se constituem iluminações no plano da existência individual, em geral não atingem a condição da iluminação profana, na qual há sempre um componente histórico, da herança das contradições e derrotas históricas. Daí que muitas das situações beirem o fantástico ou o absurdo (e não exatamente o acaso). Não se pode, por outro lado, chamar de fragmentos (no sentido de Schlegel e Novalis) aos textos de Adalberto, pois não lidam com a incompletude. São mônadas, rosebuds, madeleines (“e aqueles jasmins olentes jamais se desprenderam de suas narinas” – p. 50). Momentos de (des)encontro e despedida, de fusão e de corte. Mundos fechados, no entanto, apesar de toda a porosidade de identidades e trânsitos, pois imunes à tipicidade social. A discussão deste parágrafo, o leitor deve ter notado, configura o oriente como norte do livro, pois iluminação profana e tipicidade são cosmovisões ocidentais.

Nem todos os contos são assim, mas há uma constante na maioria deles e me concentrarei nela agora. Um dos temas dos pequenos contos é a evasão final, rompantes que conduzem ao suicídio, à morte, ao desaparecimento de si ou do passado. Nisso, cada narrativa (ou quadro narrativo) precisa em poucas linhas concentrar uma energia que possibilite e torne verossímil aquela explosão das personagens, que desembestam. Adalberto não recorre ao mágico para tanto, mas a linhas de fronteira existenciais que são ultrapassadas após uma longa demora. É aquela demora existencial, de angústia, de desistência, de tédio, subitamente rompida nos contos, que deve ser objeto de poucas linhas de construção, o que o autor faz com maestria e parcos elementos, no entanto sempre nomeados/nomeáveis: a identidade pessoal e um lugar/uns lugares. Pessoas e lugares nomeados, os textos articulam a duração e preparam o salto final, a única ação de cada narrativa, definidora. Tais ações precisam acontecer no conto, mas no traço do calígrafo elas parecem acontecer quando o calígrafo abdica de continuar o traço e dá por terminado o gesto que grafou. E também no momento decisivo de Cartier-Bresson, o decisivo é resultado de uma seleção a posteriori, uma identificação entre quem viu no momento prévio e quem revê no laboratório (que sim, está ligada à intuição prévia da captação fotográfica). Os rompantes e sua urgência são bem descritos ao final de “o México não é longe daqui”: “e se perdeu, ou se achou, para sempre.” (p. 59) “perdeu”: o fim do traço do calígrafo, quando ele tira a pena da superfície. “achou”: o gesto do fotógrafo na “revelação” do instante decisivo. Então, não é pequena a dificuldade técnica da proposta do livro, pois se trata, obviamente, de palavras narrativas, isto é, que remetem a outra coisa que não a elas mesmas (como o são, ou podem ser melhor, a poesia, a caligrafia ou a fotografia).

Qual a necessidade/dificuldade de narrar em apenas um fôlego? Pode-se dizer também, “em apneia”. Como a concentração de energia para as ações súbitas acontecem nos contos? Pois não bastam a nomeação de personagem e lugar, é preciso uma consistência em geral obtida na descrição detida e muito concreta de efeitos e sujeitos de real: as coisas, sua materialidade e sentido. Por exemplo, em “sobreviventes (I)”, quando as coisas da casa em chamas entrelaçam um destino final para a cadela Nika e a menina Annie. Acompanhamos a dança do fogo e da cachorra em direção ao rompante: “o fogo já subia pela escada, o próprio chão do quarto de Annie já estava começando a abrir-se com a força das labaredas, e a fumaça vinha de todos os lados, por isso a única coisa que Nika podia fazer era saltar na cama de Annie, que já estava tossindo muito, engasgando-se, e aninhar-se ao seu lado, para sempre.” (p. 63)

É preciso, pois, haver uma rápida apresentação de personagens e lugares e concentração de história em síntese de coisas descritas, para que um gesto final (o golpe de katana) contemple uma espécie de eternidade. No conjunto do livro, a repetição do funcionamento das estruturas não remete à monotonia, até mesmo pela variação de geografias e de trânsito entre elas, um dado interessante da proposta de O traço do calígrafo, pois institui, para além daquela tensão entre o não-tempo do instante (o “ocorrerá?” de Lyotard) e a longa duração de um dado existencial, um destempo, algo do exílio ou da transumância múltipla e errante. Não-tempo, tempo (passado e presente), um futuro eterno que se pode colher das decisões abruptas, e o destempo. Convenhamos ser muita coisa para textos tão curtos. E no entanto, “ocorre”, acontece, consegue-se. É questão de equilíbrio, como escreveu Cartier-Bresson. Não por acaso, o último conto da série do livro, “equilibração”, mostra que Adalberto sabe em que ramo está, “no ramo do equilíbrio” (p. 74)

Há, por fim, os “[outros orientes]”, um bloco ao final do livro. São três peças um pouco mais longas (mas não muito), já sem a moldura do fôlego de um só ponto final de grande parte do volume. São narrativas que orientalizam o gesto de Adalberto na composição de “O traço do calígrafo”. Há nelas o prazer intenso da criança, a busca que só tem resultado no esquecimento de si, e a aceitação dos limites (a pequenez, por exemplo, a bastar por si só) resultando noutra “primavera, eterna”. Exploram, no epílogo do livro, a oralidade da narração infantil, o ensaísmo da discussão filosófica, a figura exemplar da narrativa mítica. Um fecho muito adequado à série de quadros dos contos mais curtos.  

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