Há 16 anos
Wilson Bueno autografava meu exemplar de seu único livro de poemas publicado em
vida. O que não significou ausência de pegada de poeta em sua obra ficcional,
pelo contrário. É por isso mesmo que a obra de Wilson pode estar aqui, num
blogue de poesia. O texto a seguir foi publicado originalmente no suplemento
VAGAU (Curitiba, 2011), e é republicado aqui apenas porque hoje bateu a
saudade. Compõe-se de um perfil crítico, um percurso sentimental, uma
entrevista: acúmulos, nimbos, nebulosas de anilina e caramelos de saudade.
Wilson malíssimo portunhol Bueno, nem sei se roseno, nicolau vagau,
copista paraguayo, tankeiro com carícias, meu tio cristal a cavalo, cachorros
chuvosos, nem sei se com zoofilia, manual de brinquedos, boleros de amar-te a
ti, pequeno tratado do céu, zoológico’s bar, nem sei se mar, guaratuba, Velha
marafona, andradazil, andradazil, brinks’michimirá’itotekemi, tratado pequeno
de la malíssima literatura de Wilson Bueno, nem sei se. Bestial, bestiário,
homem das antologias Medusário, Caribe transplatino, Jardim de camaleões, publicado em penca
de países, lido por c. daniel e m. e. maciel, entre outros els, Bueno outro pai
de Azur, Bueno malíssimo, levíssimo.
Levíssimo? Não se pode exagerar o lado bruxo de Wilson Bueiro (ainda mais
destacado pela morte bestial, o suicidado pela sociedade como um nada, um cão
escorraçado como cantou tão bem porejando sangria o poeta de Montes Claros,
sangrando ainda). É o que faz, arriscando-se na superficialidade da
classificação típica-ideal, José Kozer. O poeta cubano classifica em três categorias
os autores neobarrocos, de Pesado a Leve. E situa Wilson Boreno entre os
pesados. Wilson Bueijo busca o encanto, a leveza. Apesar de também se deixar
levar pela gravidade, belezas carniças de passante passista baudelaireano que
foi, em geral “alterado” pelo fluxo alucinado que empreende, por exemplo, num Cristal,
encavalando metonímias páginas infindas, Bueno, como eu dizia, um pouco como o
próprio Kozer, não abre mão do valor do pequeno (o mais profundo é a pele,
escreve Gilles Deleuze; que seja tatuada, brocada, maquiada, dizem os
neobarrocos), do cotidiano (tanto que foi um ótimo cronista), do ordinário,
incompleto, fragmentário, diante do poder constituído do máximo e do
pretensamente unitário e identitário. Kozer fala de uma aura infernal em Mar Paraguayo.
Mas o que se destaca no livro unânime de Bueno, ao contrário,
parece-me ser o leve: é o brinquedo brinks que é o cãozinho de nome imenso, no
encavalamento do guarani, encavalamento do portunhol cavalgando o português e o
currando o espanhol na dissolução do nome – na identidade gelatinosa, desmaiada
e demasiada, repetida na diferença em Cristal e em Meu tio Roseno, a cavalo,
onde os nomes de personagens se dissolvem na polifonia da nomeação (Ingengowd,
Ingredvolk, Ingengod, Ingelbrood, Ingeldruck, um fetiche do nome, um
desfazimento do nome, Bueno, Bualvo, Buvários; L. P. na identificação do
manuscrito de Amar-te a ti nem sei se com carícias, quem?, Leocádio Prata?,
Lavínia Prata?, Licurgo Pontes?, “o guarani Sumé, tido como Tomás ou Tomé,
Chomé ou Chumé” de Meu tio Roseno Bueno bife a cavalo) – identidade indecidível em Mar Paraguayo, é o
brinquedo cão que se destaca na página de trama que desdenha a fábula, é o
pequeno cão brinquedo jogo de linguagem construção de suspensão no tempo a
verdadeira revolução e não a do tempo linear instantes pontuados (isso, fôlego
fatigado, afago de ofego) ausência de presente do moderno desde o greco-romano,
não, não, Wilson Buébrio quer o cairótico da suspensão do tempo pontuado e do
elixir do gozo aberto – que homem não é um bicho, que bicho não é um homem?, o
animal que logo sou – (também cicatriz, sim, costura, o tempo aberto, separação
evitável pela linguagem de siameses no devir besta, mas menos) como propõe
Giorgio Agamben desde Walter Benjamin e Martin Heidegger. Ah, Friedrich
Schlegel, fazer crítica como quem faz criação, prosa como quem faz poema,
crônica como quem faz reflexão... Arranjar o caos mantendo-o desregrado. Bueno
é prosador? Pensar o Wilson Buego da prosa através de sua autognose da poiesis, entrevistando-o sobre poesia
para o pensar aqui em sua prosa.
Bueno um dos meus Laios (na verdade, Laios-mães) e heróis, como Waly
Sailormoon e Néstor Perlongher. Meus primeiros poemas impressos, em O
Estado do Paraná,
em 1988, tinham a vizinhança de Wilson Buúnico, constante naquela página. Eu,
guri, escrevia o que lia (e hoje não?), tinha principalmente curiosidade sobre
o autor admirado, o homem do Nicolau. Só nos conhecemos, no
entanto, dois homens de tugúrio, no lançamento de pequeno tratado de brinquedos
(Perhappiness, Curitiba, 1996). Eu havia publicado também pela Iluminuras meu
primeiro livro e me apresentei como poeta da editora e como seu leitor. O
Wilson poeta deixava a hibridez de gênero, embora continuasse invertido: um
volume exclusivo de tankas, bucólico e refinado. Um tempo depois nos reencontraríamos em sua
casa, para uma entrevista. No intervalo, me escreveu uma carta (junho, 96).
(irônico sobre seu livro de tankas): Livro
longa e sofridamente gestado (de 1992 ao final de 95) é, em minha pobre opinião,
o meu melhor livro de poesia, até mesmo porque é e provavelmente seguirá sendo
o meu único livro de poesia. Wilson, falseta... Seus poemas hoje são
descarregados das gavetas do tugúrio, poemas que ele já vinha soltando aos
poucos. Recomendo os intensos poemas na Coyote.
Em 1997, liguei e marquei um encontro. Transcreverei em aspas a entrevista.
Fora da transcriação da fala de gala que Wilson me concedeu para o Metáfora,
meu extinto programa de poesia na Educativa FM, ficam: o áudio da apresentação do
programa; a voz do entrevistado como palavra viva e cairótica no seu
brejeirismo algo empolado, emissão apaixonada, didática e mesmo artística, para
não dizer de seu carinho de Peixes; o meu silêncio mais minha escuta de ofego.
O programa foi ao ar sem minhas intervenções, a voz de Bueno ocupando todo o
tempo suspenso. Ler no que ele fala da poesia o que se pode ler também na
prosa, Wilson centáureo, siamesmo.
Voz de Bueno: Eu sou um
incorrigível lírico, não é? Eu sou um incorrigível lírico. É... por mais que eu
faça uma literatura de ponta, como dizem por aí, né? Por mais que faça uma
coisa assim mais experencial em termos de texto, tal, como é o Mar Paraguayo, como é o Cristal, né? Éééé, mas eu sou
essencialmente lírico. Né? Então, é, você pode observar que essa, a leveza
também se comunica, não é? com essa, com esse pendor lírico, digamos assim para
usar uma expressão até meio parnasiana, né?. (parece irritado, talvez não
comigo e minha pergunta, mas por ter usado “uma expressão até meio parnasiana”) Eu gosto, né?, eu gosto dessa coisa dos,
dessa experiênc..., dos limiiites dessa leveza, do paroxiiismo às vezes dessa
leveza, do tão perigoso paroxismo dessa leveza, não é? Então você veja, há um
contraponto realmente até com a poesia digamos, que anda por aí, porque ela às
vezes é dura na sua proposta, até geométrica, atéé, né?, é, de exasperação de
linguagem, não é? E ela é linda, ela, ela consegue ser linda, no meu entender,
quando ela também consegue ser bela, quando ela consegue extrair, disso aí, uuummm,
o dom da leveza, da in-sus-ten-tável leveza!
Recita “volta”: chove a chuva
fina/lua névoa na neblina/chegamos a Ikedo//a casa de meus pais/céu brincando
de brinquedo
Wilson Poiésico faz a
poesia progressiva do par Schlegel-Novalis, fragmentária. É que também a prosa
teve sua Crise de Verso quando Flaubert, em 1852, pretendeu um livro sobre
nada, descolando a prosa da pretensão de um além percebido (verdadeiro,
metafísico) a ser representado. Concordando com Marcos Siscar, a crise
detectada com esse nome de Crise de Verso por Mallarmé não designa uma
interrupção ou um colapso histórico do verso, mas uma irritação do verso,
interior ao verso, e sobre ele. Também com a prosa após a carta de Flaubert,
irritada em relação ao imperativo da mimese representativa, doxa burguesa. Se a poesia enquanto
gênero optou depois de Mallarmé pelo quase verso (do verso livre ao poema em
prosa, à linha e à reflexão), a prosa passou a tentar a apresentação para além
da representação. Uma irritação da prosa (obrigado, Siscar), uma quase mimese
da representação em conluio com uma quase mimese da linguagem. Uma quase trama
na mesma carne esponjosa de, O visível e
o invisível, uma quase fábula. A prosa se faz pensamento: ordenação de
relações entre significantes em busca de uma divinação. Entenda-se: quer-se
substituir a progressão lógica, como em Mallarmé que busca uma finalidade pela
estrutura musical, em
Wilson Bielo, jazzística, fluídica, virgulada no tempo do
ofego, querendo que a imagem brilhe com mais e mais camadas até desmaios,
pequenas mortes. Wilson Buácido é (o-Eu) Leocádio Prata de Amar-te a ti nem sei se com
carícias, título decassilábico de sua homenagem ao velho Machadinho,
personagem que de início aponta o provisório como mote para o liberto que faz
par com a escritura, morte da esterilização das máscaras sociais da ordem.
Existe, porém, a proposição de outras máscaras. As máscaras balinesas, que
Artaud ensinou para o Ocidente, em Wilson Proseno são as atualizações significativas
(o que o afasta da complacência do mercado de repertórios da pós-modernidade
estética) de formas de priscas eras, como o tanka ou o livro que faz o
artesanato molecular da linguagem oitocentista ou o livro de viagem rosiana ou
o bestiário escorrido – escorreito de atualidade – do medievo para a operação
de travestimentos e hibridizações sul-americanas (ivitus, êulikes, nácares,
agoalumens, catoblepas, zembras, lazúlis e limosos), política do (des)autor de
afirmação do direito e da contribuição perlongadamente portunholada da
linguagem cruzada de incaico e negróide e guarani e português e teutônico e
brasiguaio e, e, e, :::::, a dobra neobarroca de entre-fronteiras, limes da convivência afirmada – ciente
porém da destruição via homogeneização operada pelas forças da ordem
eurocentrada –, a deriva nossa latino-americana para o patrimônio (também
negando-o, propondo sua explosão ou corrosão) ocidental da literatura.
Literatura afirmativa e que finca pé no seu direito expressivo do diverso
entre-rios, entre-américas, terra do transe em trânsito nosso antropofágico.
Voz de Bueno: O lance com a leveza,
o mais fascinante com a leveza, no meu entender, é que, ele, ela é sempre um
projeto de conquista. Você nunca tem a leveza nas mãos, você tá sempre
perseguindo, é um jogo de de de, de caça e caçador.Eu acho que a poesia, de uma
forma geral, talvez eu diga uma coisa, até meio dura, não sei, mas eu acho que
aaa, que a poesia (está mais calmo agora na segunda questão, respira leve,
parou de usar os conciliadores e pedagógicos “né?”), de uma forma geral, no Brasil e não fora, e não só no Brasil, fora
dele também, tem sido muito vulgarizada, Ricardo, tem sido muito ba-na-li-zada,
todo mundo é poeta, sabe?, a senhôra do Rotary é poeta, a mulher que promove o
evento da, sabe?, na, na, da Prefeitura, da Secretaria da Prefeitura do não sei
daonde, do, o burocrata, é, todo mundo é poeta, quer dizer, houve uma banalização. Então quando eu me propus a
fazer um livro de poesia, eu falei puta merda, como é que eu vou fazer? Um livro
de poesia é, eu não posso, a poesia é muito transparente, cara, ela é muito
vi-sí-vel, ela não deixa mentir, ela não deixa esconder. Então eu falei, porra,
eu tenho que mostrar que eu sou capaz da métrica mais rigorosa, que é a métrica
oriental. Eu tenho que mostrar, nesses tankas, eu fiz noventa e nove tankas,
que é o número inclusive cabalístico de deus, né? E quando eu cheguei neste
noventa e nove, não é? que foi uma experiência muito incrível, falei, bom,
agora acabou a minha trajetória poética, lite..., objetivamente poética,
estritamente poética, a poesia de um verso
por cima do outro, não é? Então eu esgotei ali. Eu tenho muitos poemas,
as pessoas até me cobram, pessoas importantes até, até que eu respeito muito,
cobram, elas cobram não é? E eeuu não sei, sabe?, eu, pra mim, o pequeno tratado de brinquedos, porque
dentro dessa fôrma e dentro dessa forma, né?, ele, valeu nesse sentido... Eu
acho que um livro de poema tem que ser um livro de poema. Você tem que montar o
livro, você não pode pegar um monte de livro da gaveta e fazer, fiz um livro.
Não é assim. Poesia é uma coisa,
muito visível. Muito imediatamente, é, devassada. Sabe, então você tem que ter
todas as contenções, você tem que ter todas as, as fôôrrmas, nesse sentido. Até
mesmo pra não te dizer, não, ele fez qualquer coisa.
Tio Roseno, Rosemundo, Rosalvo, Rosinante, Rosamante etc. Tal profusão
discute a identidade, pois pode marcar tanto a inutilidade da nomeação-
identificação, quanto, em termos fenomenológicos, as diferentes
intersubjetividades em atuação na construção múltipla de identidades.
Labilidade do nomear que se estende numa constante e ritmada explicitação da
própria ficcionalidade do texto, apontando para a própria recusa de autoridade
do narrador em nomear, em indiciar uma origem a partir de uma “grande
narrativa” (nos termos de Lyotard em A Condição Pós-Moderna). Assim, o narrador vai,
espaçadamente, veiculando nomes para sua própria narrativa, mostrando como a
autoconsciência do texto é oscilante e também híbrida: “fábula ao relento,
lenda sem uso, raconto aragem, lenda de viés, história visagem, cuento índio,
lenda neblina, história a cavalo, história a esmo, fábula estrela”. Dissonante
a mensagem que a escrita manda numa garrafa para um leitor algum-nenhum.
Cito, de Wilson Puído outras missivas: carta amarela de agosto, 97: uma coisa fundamental das ditas narrativas
curtas – ritmo ágil, às vezes quase veloz, o que confere ao texto uma graça
assim espontânea, “fluídica”. V. sabe – não sou do varejo crítico, sou artesão.
E quando no varejo crítico (“Estadão”) não abro mão do artesanato. Carta
efusiva de novembro, 98: o saudável
caminho de “la malíssima literatura” que é como os argentinos abonam os relatos
mais inventivos, em oposição às letras caretas... Viva o Mar Paraguayo, deixa que em causa própria eu diga, e viva.
Voz de Bueno: Eu saí daqui. Eu, foi
uma coisa muito, muito engraçada. Mas, não, saí daqui na coisa mais búdica
possível, que é, estar in-ten-samente aqui. (o escritor fala sublinhando) O que, não, você sabe que eu não estou
fazendo um paradoxo. Sabe, uma coisa
dialoga e conversa com a outra. Estar profundamente aqui. Estar profundamente
na minha aldeia. Estar profundamente no meu subúrbio, no meu bairro, na minha
casa de madeira, no arrabalde. Estar profun... No mundo. É que este livro, é
incrível, sabe?, é incrível. Ele não tem uma pretensão estetizante. Ele não tem,
ele quer dizer apenas o seguinte: olha como é interessante estar aqui. O melhor
lugar do mundo é aquii e agoora. Então, no momento em que eu digo que é o livro
mais desprendido meu, é, ao mesmo tempo, o mais egóico, o livro mais
egocentrado. É um livro cheio de eus. Sou eu no sofrimento amoroso. O-eu. Não
é? O-eu. Na terceira pessoa. O-eu na terceira pessoa. Sou o-eu no sofrimento
amoroso, o-eu diante do encantamento, o-eu diante das miúdas coisas do
cotidiano. Né? Sempre, mas, a, ao, ao se pretender, essa coisa egóica, ele, se
pretendeu, tudo são pretensões, é, atravessar e ir purificando esses eus. Foi
uma forma de salvação, também. Então, foi uma forma de salvação. Eu passava o
dia inteiro, Ricardo, tamborilando os dedos dentro do ônibus, eu não tenho
carro, eu sou um pedestre por convicção, eu gosto de andar a pé, né? Então, eu,
passava os dedos tamborilando no, no, sabe, os, os dedos dentro dos ônibus, pra
achar, eu vinha o tempo inteiro na rima, e na, na métrica, né? É,
Eu-ea-mi-nha-mes-tra Sa-í-mos-ca-çar-cepilhos. E depois essa coisa com a
métrica é uma coisa muito séria, Ricardo. Porque vêm imagens e vêm versos
únicos, luxuriantes e preciosos! Meu deus do céu, como é que eu...? e você tem
que jogar fora. O que eu tenho de verso guardado. Pelo menos jogar fora, não,
deixa eu guardar! Quem sabe eu posso usar mais tarde nalguma outra coisa.
Porque de repente não tá na rima, é, não tá na métrica. E aí? Não tá na
métrica... dançou, já pode desprezar. Dançou. Tira fora.
Recita “exercício escolar”: trinta
tigres trêfegos/são mais que três tigres tristes/decora o menino//depois dorme
mansamente/e sonha com passarinho
O pensamento pensa através do ritmo, que é um quase, quase forma que já
nasce fragmentária, única possibilidade de uma ritualização atualizada dos
fragmentos tornados e tomados lidos no tugúrio e ouvidos na abertura, na escuta
de um “e para que prosadores progressivos em tempos de penúria?”. Exercendo a
negatividade (e é como negatividade que se morre, cão ouriço exposto, mas
fechado na estrada de Jacques se há pergunta é prosa Derrida), embora a
negatividade seja para o escritor aquela suspensão da autoridade do tempo
linear em nome do gozo da leve lava linguagem, leve lava, entrecruzamento de
desvios, como escreveu Perlongher sobre Mar Paraguayo, entre o devir animal
e o devir mulher, língua menor, elogio do indeterminado, além de lábios
lancinados de quem leu muito Manuel Puig, trocando dez mil toneladas de cartas
com João Antonio, bas-fond, certo guiñolesco e pitada de pós-Dalton Trevisan de
bicho urbano, luxuriante de lixo como o fato de intitular o primeiro livro de Bolero’s
bar, assumindo a marafonice, rindo COM o kitsch, a novela e o rádio e o
tarô e o Rotary, ironizando (despersonalizando)
COM o melodramático o melífluo filho da cultura de massa, ou da massa retorcida
da memória de província, sertão longínquo jaguarapitânico filho da Guerra do
Paranavaí e da cultura de entre-rios, portunholizada, devir híbrido e oxímoro,
lobisomem (morto) das madrugadas (vivas) como reescreveria hoje Leminski.
Elogio da térmita, elogio do riso, tesão pelo chiste e o espirituoso,
necessidade prazerosa de seus ditos. Necessidade da ironia, da linguagem do
artifício que não ilude, mas que goza em seu encadear vibrátil e paratático: em
Meu
tio Roseno, a cavalo, permitam-me a ironia do acadêmico, temos a
exibição deliberada da trama, ressaltando seus passeios pela intertextualidade,
o que torna irônica a própria representação da viagem, feita em busca de uma
continuidade marcada pela mistura, isto é, na própria descontinuidade, entre
branco, negro e índio, possibilidade que, no entanto, se mostrará fracassada,
abortada pela guerra de hegemonia branca num mundo de suposta pureza e convívio
edênico. Para além dos dados fabulatórios, estamos aqui num outro ambiente de
trama literária, que recusa, ou vê com restrições, a estratégia da
transparência realista. Sério? Bueno, com a força do pequeno, brinca. Seu
elevado (como pode se perceber pela entrevista) é sempre forçado, o que muitas
vezes dá um ar de velharia parnasiana tiazona ao seu artesanato de texturas e
personagens. Wilson Esboroando marafônico também. Ou Wilson Bambino então em Os Chuvosos. O
poeta é outros.
Voz de Bueno: A literatura é uma
coisa autônoma, a literatura é uma coisa fascinante nesse sentido. Não dá.
Olha, você pode mentir em moda, você pode mentir... no jornalismo, você pode
mentir no cinema, você pode mentir... (...) talvez no teatro. Mas na
literatura, Ricardo, jamais conseguirás. Nenhum de nós. Nenhum de nós. Nós
seremos desmascarados i-me-dia-ta-mente. É a transparência. É a ponta extrema
da expressividade. Já tá dito: é alii e é iisso.
Recita “magrura”: minha
meia-irmã/chegou de Piracicaba/ainda mais magra//corremos em seu socorro/de
magra voou pro morro
Voz de Bueno: Isso é real. Isso
aconteceu, ah ah ah ah ah.(o ar em A de sua risada: ouçam-no:::::).
Foi uma experiência saudosa ter conhecido Wilson Bueno no auge de seu
elogio ao pequeno, ao efêmero das folhinhas álulas do pequeno ipê amarelo no
copinho de iogurte porejando brilhos florescentes de fosfenos (na idéia de que
“há sempre algo que subverte na transgressão miúda – quieta e nada humilde”,
como escreve a respeito da grafitagem urbana em Diário vagau). Talvez por
isso eu tenha no meu livro barato optado
pela exclusividade da caixa baixa (copiando sem quereres o que ele fizera em pequeno
tratado de brinquedos, todo minusculado), caligrafia do ínfimo e do
efêmero, mínimo máximo poder da literatura malíssima: Pound citando nec spe nec
metu. O poeta não está. É outros, escreveu Perlongher. O-eu. Máscaras
balinesas, um gosto pelo ritual como possibilidade de despersonalização: o eu
do eu é a aceitação de “se há a há não-a” como propõem Schlegel-Novalis.
Forma ritualizada, aquela diminuição das possibilidades de incorrer na
literatura de confissão (tentando uma confissão da confissão, isso sim): o
tanka, o oitocentismo, o livro seriado (bestiário), a marcação despersonalizada
de nomes como Sirigaita e Velha em Cristal. Liturgia da revelação, linguagem
gnóstica. Narrar o narrar e narrar o narrado, oxímoro, ficções do intervalo,
clepsidra que leva do dilúvio de linguagem à fabulação esgarçada, que se faz
por uma dinâmica entre reiteração que se vai erodindo a partir de uma primeira
entrada em cena (o nome que se vai dilapidando, meta de formose e de morfose) e
encadeamento rítmico mítico (da ordem da circularidade e do final deceptivo em Meu
tio Roseno, a cavalo) ou esvaziado como em Amar-te a ti nem sei se com
carícias: “escrevinhações obsessivas, desditas de amor, passos turvos,
águas aéreas, fragmentos diversos, a viva lembrança dos meus”. A memória viva,
atualizada no sentido forte da proposta de Walter Benjamin, significativa e
refeita, em busca de, através da diferença, atingir (sem nunca atingir, e aí
sua beleza e seu convencimento) a unidade de origem, antes de Babel, nos dias
de Adão antes da Queda, caidinho na Eva, a memória viva que está atravessada em
cada escrito de Wilson Bodeado, mas que não é representada, é construída no
entretecimento (enternecido ou contorcido) de sua hibridização de idioletos.
Wilson no Diário vagau evoca o vagau, “do fundo de sua natureza lúdica”.
O Wilson Buélice de natureza búdica. O peso leve, pequeno cão, anfíbio, fluido,
liquefeito, lábil, delineado em raspas de geada (força do fraco), portanto, do
neobarroco.
Voz de Bueno: O cinema americano,
é, os gibis, os contos de fada, os programas de televisão, ééé, as série
dan-tes-cas que tem na madrugada, da Record, com, os, os, o, aaii os exorcismos
pra expulsar os demônios, eh eh eh. E são milhares de pessoas sendo exorcizadas
ao mesmo tempo, sabe? Éé, o cartaz, o outdoor, eu não desprezo a minha época.
Sabe, eu acho que um poeta (em vários dos trechos recentes resmungos e
partes de falas minhas são ouvidas no fundo),
é, não pode desprezar a sua época, é uma coisa... Imagine se o Machado de Assis
esquecesse do tílburi. Ele seria tão falso e tão inverossímil hoje se ele
esquecesse do tílburi. Ele não esqueceu do tílburi. Ele não esqueceu do canapé.
Não é? Que era o sofá da época. Ele não esqueceu do tílburi, que era a
carruagem da época, o meio de locomoção tal. Então eu acho que sabe eu sou, eu
acho que influência eu recebo até da tela acesa do computador. E eu vejo a
literatura como uma coisa assim mais a flor da pele. Eu acho que literatura tem
que ser uma coisa a flor da pele. Temos que ver que é uma, uma atividade
limítrofe da bruxaria. E ela só vai valer aí. Ela vai valer, só vai valer
enquanto alquimia. Ela só vai valer enquanto transformação, Ricardo. Ela só vai
valer enquanto busca profunda da modéstia. Sabe, quando eu digo que, quando eu
faço uma escolha, não estou dizendo que a outra escolha deva ser
necessariamente descartada. Eu apenas faço uma escolha. Minha escolha é outra.
Minha tribo, minha praia é outra. Né? Mas a poesia tem que estar em tudo. A poesia nos ônibus.
A poesia devia estar nos guardanapos, não é? Está. Sabe? Onde a poesia estiver
tendo vigência, estará tendo vigência a poesia. Muito melhor um mundo com
poesia do que um mundo sem poesia, não é? Literal e figurativamente, inclusive.
Recita
“mudança”: minha mãe nas
costas/atravessamos aldeias/mais de cem quilômetros//tanto a levamos nos
braços/que agora somos aéreos
Voz de Bueno: Ah ah ah Eu gosto
deste livro, Ricardo.