segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Musga, de Mário Domingues



Musga é um livro tenso. A tensão que Mario Domingues impõe à criação poética é a indecidibilidade proposital entre escrita e reescrita (ou tradução). O procedimento é de extrema subversão dos conceitos de originalidade e de gênio, tão caros aos lugares-comuns da poesia brasileira. A reescrita como processo operativo impõe a tensão através de três movimentos: reescrita de um poema de seu outro livro, paisagem transitória; reescrita por amplificação de poemas; tradução de autores clássicos. Mas essa tensão é intestina, não vem à luz de imediato se olhamos superficialmente os poemas concisos, de dicção clássica e temática contemplativa com que Mario Domingues abre seu livro. A arte clássica de Domingues parece querer uma clareza suave. A concisão, magrura da síntese, quer afastar qualquer expressionismo. O poeta está-no-mundo para esculturas precárias, que tendem a um tanto de dissolução oriental, esvaziamento como resultante da construção pausada e pensada, que parece já se apresentar como esvaecimento do eu. O zen não conclui e é uma das forças imprevistas diante do que parece ser um projeto de poesia em que o clássico latino tem proeminência. Ou não. A ausência, marca deceptiva dos finais de poemas de Musga, segundo livro de Domingues, pode estar imbricada já no projeto dessa arte escrita aparentemente no osso da linguagem.
Os poemas iniciais projetam um bestiário suave, de organização atmosférica: a reescrita aqui é a das poéticas do olhar. O estilo quer capturar o movimento de formas da natureza: lince, alce, andorinhas, gaivota, beija-flor, percevejo, lesma, gato, goiabeira, gelo, fonte; tudo na primeira parte de Musga é objeto de uma contemplação onde o esforço de forma – sintética, fluida – consegue ser apagado pela obtenção da leveza. Destaco os versos da metamorfose dinâmica do segundo poema: “As andorinhas,/todas várias juntas,/desenham outra andorinha,//ou uma tulipa,/que emerge do chão/e foge da chuva.” Os ricos dois últimos versos, de fato, não terminam o poema, deixando o vazio (a fuga) como conclusão para o fluir de formas desenhado pelas andorinhas. Se no poema famoso de João Cabral de Melo Neto, os galos teciam pelo canto conjunto uma manhã, aqui não há resultante, as andorinhas são a mutação de formas, captadas na sua própria dança interna de figuras: a tulipa (andorinhas) que emerge/foge do chão/da chuva. O poema não é um chamamento humanista, ele submete-se a ser um configurador de sensibilidade para a dança metamórfica da percepção. A poesia do livro expressa uma força da modéstia, o que contribui para a autonomia do poético (sem a ambição de poesia como veículo discursivo). Trata-se de uma circularidade (Domingues tenta recusar arestas e vertigens, embora elas atuem como sintoma) operada pelo fragmento amaciado: o lince não devora o alce, as andorinhas são metamorfoses, a gaivota “vai e volta”, o beija-flor brilha numa piscadela do observador, o verde verte psicodelicamente do percevejo. A mutação é sempre sem história, ela é quase um milagre: “A goiabeira/(como se descolasse/de si uma serpente/seca/ou só sua carcaça)/descasca.” O poeta se vê obrigado aos símiles no processo milagroso do descascar da goiabeira. Há algo de mofo, fungo, musgo. Um tempo lesma, que de tão lento pode expressar melhor o instante, seu relâmpago, seu coração palpitante. Também uma recusa da fala, um alcance do silêncio dos seres: de um “céu-ressaca”, fórmula também da ordem da condensação vibrátil.
Em “Paisagem transitória revisitada”, Domingues reescreve um poema de seu primeiro livro (paisagem transitória), iniciando o projeto interno de reescrita que atravessa Musga: o procedimento agora é o do corte, sendo o resultado aquilo que o tempo entre os dois livros depurou na concepção de poesia do escritor. O poema é reduzido à metade. Algumas mudanças, inversão de alguns versos, eliminando algo de discursivo da primeira versão. Tudo depurado para um único foco: a ondulação das dunas, semoventes. Novamente, porém, como nos poemas já comentados, as dunas são reduzidas, no último poema, ao mais molecular da duna, seu grão de areia grávido de cristal, repentina e violenta mudança de foco (o átomo). De fato, talvez não consiga ser tão arredondada a arte de Mario Domingues: arestas irrompem travando o gozo desinteressado, da arte concebida como o prazer ekfrásico. Um exemplo dessas arestas é o súbito corte no final desse poema revisitado, em que se parte da ondulação da paisagem de larga escala para a imobilidade do grão mínimo; outro é o “corte diagonal da sombra” que faz desaparecer a lesma lenta e ondulante de outro poema. De fato, a tensão curva e reta aparece no próprio projeto gráfico do livro, particularmente na capa, na diagramação do título (arestas, M e A – esta letra, deitada, à maneira de uma seta –, nas pontas, e os redondos U, S e G, meio que encavalados no centro da palavra). Na contracapa, por sua vez, enquanto o poema fala em “insinuante e sinuosa”, os grafismos desenhados explicitam vértices e arestas. Batalha interna, incorporação naturalizada da contradição entre curva e reta.
As duas partes seguintes do livro, “Relâmpagos” e “Noturnos”, explicitam outra tensão: parece haver uma consciência de que a escrita é quase impossível. Persiste a secura tensa nas duas partes, só rompida em “A vinha da baleia”, de resto, uma bela anomalia em seu gozo da dobra e da dilatação sonora num livro de opção pelo descarnado, uma possibilidade de respiro melódico num livro de leveza “bossa nova” austera. Noutro poema, embora haja “respiros fortes”, a corporalidade volta ser reduzida a “uma ossada de sonhos”. Em “Relâmpagos”, um mundo que gira por si mesmo, num vazio da rotina cuja manifestação é vibrátil: “peixes faca/feixes prata”. Em “Noturnos”, porém, os verbos anunciam a presença de um corpo: “abre/e vibra/a carne de fogo.” O poeta está ali, afinal (“Sinto o cheiro:”). Os poemas parecem seguir uma respiração corporal, contraindo-se e dilatando-se. O processo é visível nos poemas das páginas, talvez as melhores do livro, 49-51 e 53-55. O segundo poema de cada conjunto dessas páginas amplifica e dilata o primeiro poema, como se o reescrevesse, operando palimpsestos, anunciando, portanto, as traduções com que Domingues fecha seu livro.  
Luis Dolhnikoff, em texto de apresentação, aponta o caráter contrastante das paisagens descritas em Lucrécio com relação às fanopeias de Domingues (insinuando, assim, outra reescrita): paisagem clássica de nuvens retumbantes e paisagem cansada do poeta contemporâneo. Além disso, fica mais nítido, com as traduções, o projeto de despersonalização como condição do poético presente no texto de Domingues. São traduzidos poemas de Catulo e Lucrécio. Nos poemas do primeiro, do Cancioneiro de Lésbia, as opções de Domingues tendem à síntese e a uma urgência do oral que as traduções de Paulo Sérgio de Vasconcellos não têm. Os poemas ganham em agilidade, atualizados para a concisão de Mario Domingues. Nos de Lucrécio, a tensão retorna sob a forma de poemas que se querem, simultaneamente, proposições de ciência e obras de arte. O que reitera o caráter extremamente vivo de Musga, uma vez que o transe de matéria e linguagem e o trânsito entre escrita e reescrita mostram que a ossificação e o mínimo (a melancolia, por exemplo, é rebatida pelos poemas de Catulo) não são a única marca do livro (aquela “unidade ultra discreta” apontada por Dolhnikoff). Deve-se atentar, além disso, para a saudável proposta de fazer equivaler criação e tradução, em dia com a eliminação do expressionismo. O livro faz sentido, portanto, como projeto de constelação de tensões, potencializado pelas várias partes e pelo hibridismo que traz a presença de algumas traduções: é naquela nebulosa tensão interna que os poemas trazem seu maior valor.   

Ficha: Musga - Mário Domingues - Primeiro de Maio - PR: Editora Mirabilia, 2010.



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