Musga
é um livro tenso. A tensão que Mario Domingues impõe à criação poética é a
indecidibilidade proposital entre escrita e reescrita (ou tradução). O
procedimento é de extrema subversão dos conceitos de originalidade e de gênio,
tão caros aos lugares-comuns da poesia brasileira. A reescrita como processo
operativo impõe a tensão através de três movimentos: reescrita de um poema de
seu outro livro, paisagem transitória; reescrita por amplificação de poemas;
tradução de autores clássicos. Mas essa tensão é intestina, não vem à luz de
imediato se olhamos superficialmente os poemas concisos, de dicção clássica e
temática contemplativa com que Mario Domingues abre seu livro. A arte clássica
de Domingues parece querer uma clareza suave. A concisão, magrura da síntese,
quer afastar qualquer expressionismo. O poeta está-no-mundo para esculturas
precárias, que tendem a um tanto de dissolução oriental, esvaziamento como
resultante da construção pausada e pensada, que parece já se apresentar como
esvaecimento do eu. O zen não conclui e é uma das forças imprevistas diante do
que parece ser um projeto de poesia em que o clássico latino tem proeminência.
Ou não. A ausência, marca deceptiva dos finais de poemas de Musga,
segundo livro de Domingues, pode estar imbricada já no projeto dessa arte
escrita aparentemente no osso da linguagem.
Os poemas
iniciais projetam um bestiário suave, de organização atmosférica: a reescrita
aqui é a das poéticas do olhar. O estilo quer capturar o movimento de formas da
natureza: lince, alce, andorinhas, gaivota, beija-flor, percevejo, lesma, gato,
goiabeira, gelo, fonte; tudo na primeira parte de Musga é objeto de uma
contemplação onde o esforço de forma – sintética, fluida – consegue ser apagado
pela obtenção da leveza. Destaco os versos da metamorfose dinâmica do segundo
poema: “As andorinhas,/todas várias juntas,/desenham outra andorinha,//ou uma
tulipa,/que emerge do chão/e foge da chuva.” Os ricos dois últimos versos, de
fato, não terminam o poema, deixando o vazio (a fuga) como conclusão para o
fluir de formas desenhado pelas andorinhas. Se no poema famoso de João Cabral
de Melo Neto, os galos teciam pelo canto conjunto uma manhã, aqui não há
resultante, as andorinhas são a mutação de formas, captadas na sua própria
dança interna de figuras: a tulipa (andorinhas) que emerge/foge do chão/da
chuva. O poema não é um chamamento humanista, ele submete-se a ser um
configurador de sensibilidade para a dança metamórfica da percepção. A poesia
do livro expressa uma força da modéstia, o que contribui para a autonomia do
poético (sem a ambição de poesia como veículo discursivo). Trata-se de uma
circularidade (Domingues tenta recusar arestas e vertigens, embora elas atuem
como sintoma) operada pelo fragmento amaciado: o lince não devora o alce, as
andorinhas são metamorfoses, a gaivota “vai e volta”, o beija-flor brilha numa
piscadela do observador, o verde verte psicodelicamente do percevejo. A mutação
é sempre sem história, ela é quase um milagre: “A goiabeira/(como se
descolasse/de si uma serpente/seca/ou só sua carcaça)/descasca.” O poeta se vê
obrigado aos símiles no processo milagroso do descascar da goiabeira. Há algo
de mofo, fungo, musgo. Um tempo lesma, que de tão lento pode expressar melhor o
instante, seu relâmpago, seu coração palpitante. Também uma recusa da fala, um
alcance do silêncio dos seres: de um “céu-ressaca”, fórmula também da ordem da
condensação vibrátil.
Em “Paisagem
transitória revisitada”, Domingues reescreve um poema de seu primeiro livro (paisagem
transitória), iniciando o projeto interno de reescrita que atravessa Musga:
o procedimento agora é o do corte, sendo o resultado aquilo que o tempo entre
os dois livros depurou na concepção de poesia do escritor. O poema é reduzido à
metade. Algumas mudanças, inversão de alguns versos, eliminando algo de
discursivo da primeira versão. Tudo depurado para um único foco: a ondulação
das dunas, semoventes. Novamente, porém, como nos poemas já comentados, as
dunas são reduzidas, no último poema, ao mais molecular da duna, seu grão de
areia grávido de cristal, repentina e violenta mudança de foco (o átomo). De
fato, talvez não consiga ser tão arredondada a arte de Mario Domingues: arestas
irrompem travando o gozo desinteressado, da arte concebida como o prazer
ekfrásico. Um exemplo dessas arestas é o súbito corte no final desse poema
revisitado, em que se parte da ondulação da paisagem de larga escala para a
imobilidade do grão mínimo; outro é o “corte diagonal da sombra” que faz
desaparecer a lesma lenta e ondulante de outro poema. De fato, a tensão curva e
reta aparece no próprio projeto gráfico do livro, particularmente na capa, na
diagramação do título (arestas, M e A – esta letra, deitada, à maneira de uma
seta –, nas pontas, e os redondos U, S e G, meio que encavalados no centro da
palavra). Na contracapa, por sua vez, enquanto o poema fala em “insinuante e
sinuosa”, os grafismos desenhados explicitam vértices e arestas. Batalha
interna, incorporação naturalizada da contradição entre curva e reta.
As duas partes
seguintes do livro, “Relâmpagos” e “Noturnos”, explicitam outra tensão: parece
haver uma consciência de que a escrita é quase impossível. Persiste a secura
tensa nas duas partes, só rompida em “A vinha da baleia”, de resto, uma bela
anomalia em seu gozo da dobra e da dilatação sonora num livro de opção pelo
descarnado, uma possibilidade de respiro melódico num livro de leveza “bossa
nova” austera. Noutro poema, embora haja “respiros fortes”, a corporalidade
volta ser reduzida a “uma ossada de sonhos”. Em “Relâmpagos”, um mundo que gira
por si mesmo, num vazio da rotina cuja manifestação é vibrátil: “peixes
faca/feixes prata”. Em “Noturnos”, porém, os verbos anunciam a presença de um
corpo: “abre/e vibra/a carne de fogo.” O poeta está ali, afinal (“Sinto o
cheiro:”). Os poemas parecem seguir uma respiração corporal, contraindo-se e
dilatando-se. O processo é visível nos poemas das páginas, talvez as melhores
do livro, 49-51 e 53-55. O segundo poema de cada conjunto dessas páginas
amplifica e dilata o primeiro poema, como se o reescrevesse, operando
palimpsestos, anunciando, portanto, as traduções com que Domingues fecha seu
livro.
Luis Dolhnikoff,
em texto de apresentação, aponta o caráter contrastante das paisagens descritas
em Lucrécio com relação às fanopeias de Domingues (insinuando, assim, outra
reescrita): paisagem clássica de nuvens retumbantes e paisagem cansada do poeta
contemporâneo. Além disso, fica mais nítido, com as traduções, o projeto de
despersonalização como condição do poético presente no texto de Domingues. São
traduzidos poemas de Catulo e Lucrécio. Nos poemas do primeiro, do Cancioneiro de Lésbia, as opções de
Domingues tendem à síntese e a uma urgência do oral que as traduções de Paulo
Sérgio de Vasconcellos não têm. Os poemas ganham em agilidade, atualizados para
a concisão de Mario Domingues. Nos de Lucrécio, a tensão retorna sob a forma de
poemas que se querem, simultaneamente, proposições de ciência e obras de arte.
O que reitera o caráter extremamente vivo de Musga, uma vez que o
transe de matéria e linguagem e o trânsito entre escrita e reescrita mostram que
a ossificação e o mínimo (a melancolia, por exemplo, é rebatida pelos poemas de
Catulo) não são a única marca do livro (aquela “unidade ultra discreta”
apontada por Dolhnikoff). Deve-se atentar, além disso, para a saudável proposta
de fazer equivaler criação e tradução, em dia com a eliminação do
expressionismo. O livro faz sentido, portanto, como projeto de constelação de
tensões, potencializado pelas várias partes e pelo hibridismo que traz a
presença de algumas traduções: é naquela nebulosa tensão interna que os poemas
trazem seu maior valor.
Ficha: Musga - Mário Domingues - Primeiro de Maio - PR: Editora Mirabilia, 2010.
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