sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Rilke Shake, de Angélica Freitas




a poesia não precisa ficar enrolando. pode ser direta e reta. nem precisa ficar pintando quadrinhos mostrando a corzinha neobarroca pra gente ver como o poeta é bom esteta e conhece o japonismo no impressionismo. e olha que eu amo o neobarroco e o excesso. mas fiquei tão impactado com o tom de “basta o corte preciso, com toques de sujeira aqui e ali, pra disfarçar e tornar mais viva a conversa”. pq não existe conversa geométrica. e é no dialogismo que os poemas de angélica freitas melhor funcionam. ali a chave deles, as vozes que vêm de todos os lados e mesmo do sujeito que não tem unidade, que se esquece e faz questão de frisar isso no poema. que não só se esquece, mas não sabe direito quem é e que, para além disso, queria ser outra coisa, um ser de bigodinho às vezes, outras alguém do harém de stein. falar de poesia como conversa é retomar a ironia sacana que vem de gregório e chega até cacaso ou francisco alvim. mas é uma ironia culta como a de adília lopes. dizer o percurso e percutir o discurso ficam em tensão nos poemas de angélica, tensão que está no próprio título, maravilhoso título que eu queria ter inventado. há esse pop culto que na verdade não conjuga exatamente os pólos e fica numa espécie muito interessante de talvez. sempre achei interessante a arte que põe em circulação, ao mesmo tempo, diferentes programações possíveis de sua própria recepção. então, aquilo que é aparentemente direto, uma linha reta, tem sempre algo de torto, de instável. é aquela velha conversa: “quem quer a voz?” (manoel ricardo de lima, entre outros, e angélica freitas também parece optar assim, toma a posição da ausência de voz: ele o diz, com sua voz, no vídeo de ricardo carvalho para o festival de poesia de goyaz: alguém leia o “estatuto do desmallarmento” e entenderá o que eu digo). raúl antelo tem, num instigante texto (“a fala do fora: uma lida”), uma discussão com a poesia da estabilidade. ele propõe ali, no texto que é prefácio a uma antologia de 6 poetas brasileiros em tradução ao inglês (desencontrários-unencontraries, curitiba: 1995), que o percurso do contemporâneo supõe um sujeito (em agamben o termo seria ‘espectral’) desenraizado, desgeograficado, “um ser que passa por relações, declinações (orfeu, orftu, orfele) catastróficas, flexões ou simples pré-posições de sua fala. Seu lugar é o entre. Sua celebração, o entrudo. A estratégia oblíqua.” em alguns momentos, angélica talvez tenha relaxado demais, e o que era pra ser um acúmulo de desastres familiares ritmado pelo “vende tudo” de tempos neoliberais, tensionando acúmulo e dispersão, encaminha-se, por fim, no poema “família vende tudo”, para um desenlace banal e excessivamente espelhado na realidade (ainda que ficcional) – mesmo a simulação do discurso publicitário fica nisso, simulação. mas são escorregões menores (acho que o problema está nessa opção por narrativas familiares, vejo o mesmo em “a mina de ouro de minha mãe...”: o problema não está no universo familiar, ainda que certamente saturado, mas na abordagem excessivamente condescendente e não mediada). felizmente aquela agilidade na abordagem dos diferentes ritmos do cotidiano culto voltam nos poemas subsequentes. dá pra entender o que eu prefiro em angélica quando surge um poema como “sereia a sério”. de fato, há ainda um certo comedimento em alguns momentos do livro e “sereia a sério”, ao contrário, cospe fogo (acho que essa intensidade que aqui e ali se anunciam possa vir no novo livro de angélica freitas, cujo título, ao menos, insinua isso: um útero é do tamanho de um punho... preciso ler logo). outra coisa que me incomoda é uma espécie de ditadura do humor. sim eu sei, amor, humor. e mesmo o discurso da violência e da rapidez, da instabilidade e da dessincronização das sintaxes as mais fraturadas que invadem os poemas, mesmo esse discurso forte só é forte se dito com paixão, com amor. angélica não quer saber mesmo de tudo aquilo que é escuro nas luzes da existência? alguns poemas de angélica queriam ser canções e “sashimi” é um ótimo representante. alguém que ama “as canções do rádio” e que nunca leu chaucer antes, consegue justamente ser pau-brasil: fala com o concretista e com o repentista. assim, se há uma penúria respondida pelos poemas de angélica, essa não é a do intelectual que fala em nome dos outros, mas a do discurso que recusa a identidade. a política, portanto, comparece nesse outro nível. e é por isso que considero os melhores momentos do livro justamente os dessa explicitação de uma demanda da desrepressão. são os poemas que entram em livros e vidas literárias, gertrude stein, liz e lota. quando a estratégia da máscara é radicalizada, o ganho político é considerável ao desestabilizar a mimesis do espelhismo. MAS CARAMBA. quando chega a página 32, daí em diante, a gente parece estar diante, daí em diante, do melhor livro dos últimos tempos. narrativa, poesia da fossa, humor, sexualidades, intertextualidades, autobiobliografias, tudo explode sem que a forma exploda, e tudo se funde num compósito muito charmoso, extremamente sensual, com toques de agressividade que iluminam páginas inteiras (“lésbicas são um desperdício ele disse/você já ouviu falar em mussolini?”). eu fiquei apaixonado por esse rilke shake da angélica freitas (são paulo: cosac naify; rio de janeiro: 7letras, 2007) no miolo do livro: poemas como “o que é um baibai?” são sensacionais. gosto de poemas como “treze de outubro”, o desolamento combina com angélica e certa atitude passiva em relação à linguagem, hesitando em prosseguir, em encetar narrativa, ganhando a linguagem uma circularidade muito afeita à escrita de gertrude stein: acho que seria um caminho legal para angélica explorar mais (*estou fazendo a leitura de rilke shake sem conhecer o livro novo da poeta). “(não consigo terminar este poema).” é de uma simplicidade cortante e diz muito do que prefiro em relação às narrativas prontas com as quais me incomodei. as narrativas prontas também não têm o ar sacana de uma (quase) ladra de livros (e de citações, e de vozes), de uma moleca que fumava escondido, de alguém de bigodinho, baseados no bolso e que cola chicles no banco de alguém. um humor mais ferino se insinua aí, menos apaziguador, que rima inglês e português com falta-de-caráter macunaímica, sem mímica, cara esperta de alguém que só foi “rir no elevador”. rsrsrs

Um comentário: