a poesia não precisa ficar
enrolando. pode ser direta e reta. nem precisa ficar pintando quadrinhos
mostrando a corzinha neobarroca pra gente ver como o poeta é bom esteta e
conhece o japonismo no impressionismo. e olha que eu amo o neobarroco e o
excesso. mas fiquei tão impactado com o tom de “basta o corte preciso, com
toques de sujeira aqui e ali, pra disfarçar e tornar mais viva a conversa”. pq
não existe conversa geométrica. e é no dialogismo que os poemas de angélica
freitas melhor funcionam. ali a chave deles, as vozes que vêm de todos os lados
e mesmo do sujeito que não tem unidade, que se esquece e faz questão de frisar
isso no poema. que não só se esquece, mas não sabe direito quem é e que, para
além disso, queria ser outra coisa, um ser de bigodinho às vezes, outras alguém
do harém de stein. falar de poesia como conversa é retomar a ironia sacana que
vem de gregório e chega até cacaso ou francisco alvim. mas é uma ironia culta
como a de adília lopes. dizer o percurso e percutir o discurso ficam em tensão
nos poemas de angélica, tensão que está no próprio título, maravilhoso título
que eu queria ter inventado. há esse pop culto que na verdade não conjuga
exatamente os pólos e fica numa espécie muito interessante de talvez. sempre
achei interessante a arte que põe em circulação, ao mesmo tempo, diferentes
programações possíveis de sua própria recepção. então, aquilo que é
aparentemente direto, uma linha reta, tem sempre algo de torto, de instável. é
aquela velha conversa: “quem quer a voz?” (manoel ricardo de lima, entre outros,
e angélica freitas também parece optar assim, toma a posição da ausência de
voz: ele o diz, com sua voz, no vídeo de ricardo carvalho para o festival de
poesia de goyaz: alguém leia o “estatuto do desmallarmento” e entenderá o que
eu digo). raúl antelo tem, num instigante texto (“a fala do fora: uma lida”),
uma discussão com a poesia da estabilidade. ele propõe ali, no texto que é
prefácio a uma antologia de 6 poetas brasileiros em tradução ao inglês
(desencontrários-unencontraries, curitiba: 1995), que o percurso do
contemporâneo supõe um sujeito (em agamben o termo seria ‘espectral’)
desenraizado, desgeograficado, “um ser que passa por relações, declinações
(orfeu, orftu, orfele) catastróficas, flexões ou simples pré-posições de sua
fala. Seu lugar é o entre. Sua celebração, o entrudo. A estratégia oblíqua.” em
alguns momentos, angélica talvez tenha relaxado demais, e o que era pra ser um
acúmulo de desastres familiares ritmado pelo “vende tudo” de tempos
neoliberais, tensionando acúmulo e dispersão, encaminha-se, por fim, no poema “família
vende tudo”, para um desenlace banal e excessivamente espelhado na realidade
(ainda que ficcional) – mesmo a simulação do discurso publicitário fica nisso,
simulação. mas são escorregões menores (acho que o problema está nessa opção
por narrativas familiares, vejo o mesmo em “a mina de ouro de minha mãe...”: o
problema não está no universo familiar, ainda que certamente saturado, mas na
abordagem excessivamente condescendente e não mediada). felizmente aquela
agilidade na abordagem dos diferentes ritmos do cotidiano culto voltam nos
poemas subsequentes. dá pra entender o que eu prefiro em angélica quando surge
um poema como “sereia a sério”. de fato, há ainda um certo comedimento em
alguns momentos do livro e “sereia a sério”, ao contrário, cospe fogo (acho que
essa intensidade que aqui e ali se anunciam possa vir no novo livro de angélica
freitas, cujo título, ao menos, insinua isso: um útero é do tamanho de um
punho... preciso ler logo). outra coisa que me incomoda é uma espécie de
ditadura do humor. sim eu sei, amor, humor. e mesmo o discurso da violência e
da rapidez, da instabilidade e da dessincronização das sintaxes as mais
fraturadas que invadem os poemas, mesmo esse discurso forte só é forte se dito
com paixão, com amor. angélica não quer saber mesmo de tudo aquilo que é escuro
nas luzes da existência? alguns poemas de angélica queriam ser canções e “sashimi”
é um ótimo representante. alguém que ama “as canções do rádio” e que nunca leu
chaucer antes, consegue justamente ser pau-brasil: fala com o concretista e com
o repentista. assim, se há uma penúria respondida pelos poemas de angélica,
essa não é a do intelectual que fala em nome dos outros, mas a do discurso que
recusa a identidade. a política, portanto, comparece nesse outro nível. e é por
isso que considero os melhores momentos do livro justamente os dessa
explicitação de uma demanda da desrepressão. são os poemas que entram em livros
e vidas literárias, gertrude stein, liz e lota. quando a estratégia da máscara
é radicalizada, o ganho político é considerável ao desestabilizar a mimesis do
espelhismo. MAS CARAMBA. quando chega a página 32, daí em diante, a gente
parece estar diante, daí em diante, do melhor livro dos últimos tempos.
narrativa, poesia da fossa, humor, sexualidades, intertextualidades,
autobiobliografias, tudo explode sem que a forma exploda, e tudo se funde num
compósito muito charmoso, extremamente sensual, com toques de agressividade que
iluminam páginas inteiras (“lésbicas são um desperdício ele disse/você já ouviu
falar em mussolini?”). eu fiquei apaixonado por esse rilke shake da angélica
freitas (são paulo: cosac naify; rio de janeiro: 7letras, 2007) no miolo do
livro: poemas como “o que é um baibai?” são sensacionais. gosto de poemas como “treze
de outubro”, o desolamento combina com angélica e certa atitude passiva em
relação à linguagem, hesitando em prosseguir, em encetar narrativa, ganhando a
linguagem uma circularidade muito afeita à escrita de gertrude stein: acho que
seria um caminho legal para angélica explorar mais (*estou fazendo a leitura de rilke shake sem conhecer o livro novo da poeta). “(não consigo terminar este
poema).” é de uma simplicidade cortante e diz muito do que prefiro em relação
às narrativas prontas com as quais me incomodei. as narrativas prontas também
não têm o ar sacana de uma (quase) ladra de livros (e de citações, e de vozes),
de uma moleca que fumava escondido, de alguém de bigodinho, baseados no bolso e
que cola chicles no banco de alguém. um humor mais ferino se insinua aí, menos
apaziguador, que rima inglês e português com falta-de-caráter macunaímica, sem mímica, cara esperta de alguém que só foi “rir no elevador”. rsrsrs
Excelente leitura!
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