É difícil dizer que
Ricardo Corona deu aqui seu passo mais ousado, pois quase todas as intervenções
desse poeta que escreve “pra não ser chamado de poeta” são ousadas além da
conta. No esforço para não ser tão só poeta, Corona segue a pista das
vanguardas do século XX. Corona segue a trilha daquilo que as vanguardas mais
enfatizaram: que a arte deve se fundir à vida. Não ser chamado de poeta (o
verso é de Pessoa ruim, faixa de Ladrão de Fogo) implica em abandonar um
duplo confinamento: o do livro e o da voz lírica. Curare é um dos passos mais radicais nessa atitude dupla.
Primeiro, o próprio
livro é reconfigurado iconicamente numa sucessão de poemas onde o discurso é
tão importante quanto os brancos, e, mais que isso, os preenchimentos. A
maioria dos poemas traz nos sinais gráficos da pontuação um uso abusivo ao
ponto de ser estruturante o procedimento. Corona não se cansa: expande as
palavras, corta-as, enche-as de grafismos, preenche de negro as páginas finais
do livro, simulando a linha do carretel de uma fala infinita, aberta nas
significações e, portanto, desvinculada da mimetização do outro que se poderia
supor numa operação de etnopoesia, no caso, concentrada sobre os praticamente
extintos Xetá.
O livro, nesse sentido,
quase deixa de ser um livro (um depósito de poemas) para se tornar de fato uma
experiência viva. Mas não foi sempre assim? Afinal, o ‘poeta’ Corona é também
um performer, levando sua poesia para o corpo e para a voz, repercutindo em
experiência o que se poderia supor restrito à cultura da letra. O mesmo se dá
com relação à voz lírica, ao “estilo” tão procurado por poetas ingênuos que
almejam chegar a uma identidade. Corona quer que a indecidibilidade e é essa
sua contribuição à poesia. O que não é de hoje. Poesia é obra de todos, diria
mais ou menos assim Lautréamont. Corona assinaria embaixo e é um
poeta-parceiro: fez com Eliana Borges o Tortografia,
experiência de interpenetrações de imagem e palavra; fez com Grace Torres (e
muitos outros parceiros) o CD Ladrão de
Fogo; com Roseane Yampolschi o CD Sonorizador
e tem parcerias espalhadas pelo Brasil todo. A identidade da emissão é apagada
nessa fusão com o outro. O caminho para a etnopoesia de Curare já estava, portanto, traçado desde o início.
Corona trabalha, pois,
na perspectiva da perda de
mandato do estilo. Uma
das conseqüências mais visíveis é a desistência da voz própria. Na medida em que se dissolve a centralidade
do cânone, as experiências contemporâneas mais interessantes, como a de Corona,
parecem abdicar tanto da voz grupal unitária (uma vez que se extinguem os
movimentos poéticos), como das pretensões formais racionalistas, optando por
soluções como o fragmento poético, o rascunho, o inacabamento, revelando não uma
incompetência formal, mas uma consciência acentuada para uma situação de crise
de forma. A forma da poesia mais sugestiva entra em tensão com o que se chamava
o estilo de um autor. Digamos que os bons poetas apagam suas assinaturas, ou as
rasuram. A ética da poesia contemporânea é sua relação com essa falta.
Agora, não acho fácil
ler Curare. Justamente pelos motivos
que nele elogio. Muitas vezes parece que estamos diante de uma partitura para
as performances de Corona. O próprio poeta recomenda que o livro se encaminhe
para a oralização ritualizada na etnoperformance Carretel Curare. O epílogo se conclui assim: “Por isso, mesmo com
cautela, sugiro ao leitor, toda vez que fizer o poema repercutir com a voz, se
assim o desejar, coloque-o em estado de rito oral.” Estamos, portanto, diante
de um livro inusitado para os padrões já repetitivos de grande parte da poesia
ocidental.
Propõe-se no livro a poesia enquanto trânsito
através do transe. O poeta enquadra seu livro no conceito de Etnopoesia (o que
ele próprio já praticara, a seu modo, com a experiência com a voz de Jardelina
da Silva, em Corpo Sutil). Maiores
esclarecimentos nas teorias, antologias e produções de nomes como os de Dennis
Tedlock (tradutor do Popol Vuh) e de Jerome Rothenberg (por exemplo na
coletânea Etnopoesia no milênio). A discussão principal de Rothenberg, citado
por Corona no prólogo de Curare, foi
sempre a da superação do paradigma nacional e da unidade da voz, pressuposto
para uma poesia pouco porosa e, portanto, ordenada segundo os ditames da ordem
social mais conservadora. Rothenberg anuncia em nomes como os de Tristan Tzara
e Khlébnikov a percepção de uma poética em pé de igualdade com os poemas das
origens, os mitos, as tradições orais etc.
Nesse sentido, a
dificuldade crítica para se ler um livro como Curare é a de se responder à aspiração do sair de si ali solicitada.
Impulsionada para o sair de sua identidade de crítica, mas também pela lucidez
do possível num acontecimento de leitura entre outros. A importância desse
duplo devir para a teoria da poesia é, a partir da atividade de Corona, que uma
crítica de poemas cujo êxtase se dá em torno à explicitação da alteridade,
implica sempre para a crítica numa recusa à identidade, em especial a judicativa-normativa.
A escrita em transe (Corona sempre propôs o poeta como xamã) implica, ademais,
numa formalização ritual: há a necessidade de um saber para que o transe (o
texto) seja de um hermetismo lúcido. Dessa forma, o poeta combina ao dizer da
oralidade Xetá uma pegada quase científica, em que os textos se arranjam um
pouco à maneira de arquivos (elencando, por exemplo, nomes de insetos, ou de
coletividades). A pulsão para o sair de si colabora na radicalização do
questionamento da identidade estabilizada (aplicável também à crítica e ao uso
da teoria) que a modernidade do “je suis un autre” de Rimbaud começou a abalar,
e que se evidencia com vigor em Corona. Parece haver, portanto, a necessidade
de uma reinvenção crítica. Curare
exige novos fundamentos por ser um novo objeto artístico.
O transe (e a
experiência de etnopoesia do livro o sugere) é o lugar por excelência do
trânsito, do deixar-se impregnar pela alteridade (e do impregnar pelas
substituições metonímicas). A identidade aí é dissolvida, evidenciando os
‘outros’ naquilo que se conhecia outrora por sujeito (essa é uma das bandeiras
de Rothenberg). Descentramento: trata-se de uma movimentação em que a paisagem
viva de uma fala que se extingue (a dos Xetás) é travestida, despida e
perfurada, mas nunca representada, imitada. Para essa paisagem viva (construída
na experiência de que também faz parte o transe), nenhuma mimese é desejada ou
mesmo possível: o descentramento é também um aproximar-se do indizível.
O poeta, na experiência
com a linguagem (que é também uma experiência da relação entre linguagem e
mundo), compartilhando a assinatura do livro de poesia com o culto da oralidade
de um mundo indígena que se evapora, é o poeta que respeita sua fonte e se coloca
no mesmo nível dela, descendo o poeta do pedestal da emissão. Não há, no
entanto, discurso referencial, isto é, Corona é Xetá não o sendo, obtendo por
apresentação um resultado similar mas não idêntico, pela evidenciação da
construção, desprezando a imitação. As imagens de Corona são antes construções
da deriva e da sobreposição. De fato, o poeta fala através de colagens,
enxertos, sobreposições, palimpsesto. O canto se encontra com a vibração
conjunta de fragmentos, obtendo assim o afastamento do solipsismo e do
narcisismo da voz.
Desse modo, o fragmento impõe uma abertura ao
texto, e a última parte do livro é explícita quanto a isso. A verdade do
fragmento abre-se também ao inorgânico, recusando a totalidade simbólica. No
livro de Corona, interessado na indecidibilidade do eu, há, para além dos
fiapos que formam significados, uma espécie de ritualização mântrica de cada
uma das partes (são doze no total), em geral extensas e enumerativas, criando longos
fluxos fragmentários. Estamos diante de uma experiência de
trânsito entre formas, ou de formas mistas, numa espécie de síntese de poesia,
prosa, filosofia, canto, crítica (o que nos remeteria à poesia progressiva
universal da dupla F. Schlegel e Novalis, justamente marcada pela eleição do fragmento
como forma propícia diante da constatação
da inapresentabilidade do absoluto). Ora, a própria condição de etnia extinta,
como é o caso Xetá, confronta o poeta em relação ao fragmento. Assim, pode-se
apenas evocar uma existência, apresentando-a pelas formas provisórias do
fragmento e da montagem e desmontagem.
Essa opção pelo fragmentário e pelo sair de si
(“olhos virados para o avesso” escreve num trecho) em Curare adquire sua razão de ser como modo de dizer parcialmente,
sem perder, entretanto, a palpitação do vivo, do corpo em fôlego de fogo que
diz (um dito que nunca se completa e que tem na metamorfose líquida um de seus
paradigmas: basta conferir o longo caminho de rios que se dissolvem em mar,
numa das mais sugestivas partes do livro). Trata-se da aceitação corajosa de
uma inevitabilidade (“riscará seu nome em nome do mar”).
Os melhores poetas contemporâneos são os que sabem-se parte, sabem-se
no meio, entre, mais um, nenhum. Implicar a etnopoesia na equação significa, ao
contrário de um contrato político meramente mimético (o poeta como o mártir, o
herói, o demiurgo, o condutor das massas) em reconsiderar questões como a da
alteridade em Rimbaud. A questão em si do contemporâneo parece ser o
deslocamento dessa relação em termos de mimetização do outro para uma inclusão
que mistura tudo e todos e o faz justamente através da linguagem. Sendo assim,
o “bugrinho” dialoga com Beuys, ou com Cage, num nomadismo cuja marca maior é a
da porosidade. A própria experiência de uma leitura, como esta, vê-se
desafiada. A dificuldade, portanto, pressentida na abordagem do livro, acaba
sendo a que maiores prazeres trará. Poema como reflexão. Reflexão como transe.
Transe como trânsito.
*publicado
em: Suplemento Literário, Março/Abril, 2013, n.1347.
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