*artigo publicado originalmente na revista Mulemba, v.11, n.21, 2019.
RESUMO
O
artigo discute as investigações brasileiras sobre a poesia africana de autoria
feminina em língua portuguesa. Através do Catálogo de Teses e Dissertações,
plataforma da CAPES, foram selecionadas pesquisas que tratam das poetas
africanas. A análise se deu a partir de duas categorias: o modo como as
dissertações e teses tratam da poesia como gênero literário e o modo como
dialogam com os estudos de gênero.
PALAVRAS-CHAVE: Poesia africana, autoria feminina, gênero,
Catálogo de Teses e Dissertações.
“Nós somos sombra para os
vossos olhos, somos fantasmas.” (SOUSA, p. 34) O verso pertence ao poema
“Passe”, da moçambicana Noémia de Sousa, que no texto dirige-se diretamente aos
colonizadores, assumindo, de modo orgânico, solidariedade com os “despojados”.
O verso seguinte é a resposta virulenta e otimista àquela percepção de despojo:
“Mas, como estamos vivos, extraordinariamente vivos e despertos!” Fazemos
referência aos dois versos em nome de uma analogia possível com a pesquisa
brasileira em teses e dissertações sobre a poesia africana de autoria feminina
em língua portuguesa. Não exatamente para relacionar a recepção acadêmica
brasileira ao papel do colonizador, ainda que isso também mereça ser discutido
no escopo dessa relação, mas principalmente para destacar um ponto
significativo sobre as teses e dissertações produzidas no Brasil e sobre a
poesia ali estudada. Nosso entendimento é de que a vitalidade e a potência
daquela poesia de mulheres africanas no âmbito (não só) da língua portuguesa
talvez ainda estejam envoltas em sombras se considerarmos grande parte da
recepção brasileira. As sombras se dão principalmente se pensarmos na condição
diminuta que, tanto a poesia enquanto gênero literário, como as escritoras
africanas e suas questões de gênero, ocupam no quadro geral das pesquisas
brasileiras sobre literaturas africanas.
Será a partir desta
constatação que faremos a discussão neste estudo. Iniciamos por uma pesquisa
maior por nós realizada entre outubro de 2018 e junho de 2019, intitulada
“Panorama dos estudos de literaturas africanas na pós-graduação brasileira”.
Através do Catálogo de Teses e Dissertações, disponibilizado pela CAPES,
levantamos 840 investigações defendidas sobre autores literários africanos. A
perspectiva é inédita em se tratando de sociologia e teoria literárias no
Brasil, pois o Catálogo ainda não foi utilizado para qualquer reflexão semelhante.
Ao oferecer um quadro da produção de pós-graduação em literatura, nosso estudo
abre inúmeras possibilidades de discussões teóricas, desde aquelas sobre o
campo das literaturas africanas no Brasil, até a temáticas como a
literatura-mundo, as questões do pós-colonial – particularmente quanto às
comunidades simbólicas lusófonas e suas tensões, solidariedades e contradições
–, a teoria afrodiaspórica dos estudos decoloniais – como na aproximação
oficial à África através de legislação afrodescendente afirmativa (a lei
10639/03) etc. São temas, porém, que escapam ao foco mais imediato deste texto.
Há evidentes dificuldades
no acesso ao Catálogo da Capes. Para além das diminutas possibilidades de
cruzamento de dados, há ausência de indexação de pesquisas e equívocos na
indexação de outras. Os trabalhos pioneiros, além disso, não constam do
Catálogo. Nesse sentido, nossa pesquisa é incompleta, sendo ainda um trabalho
em construção, uma vez que o Catálogo foi nossa fonte principal. A presente
amostra, portanto, não é conclusiva.[1]
Iniciaremos este artigo
com os dados mais gerais do “Panorama dos estudos de literaturas africanas na
pós-graduação brasileira”, descrevendo métodos e resultados. A seguir, faremos
recortes mapeando os trabalhos sobre poesia, os sobre autoras africanas e, por
fim, os sobre poesia africana de autoria feminina em língua portuguesa, quando
comentaremos as principais premissas e eixos de investigação nas teses e
dissertações, com especial atenção às questões de gênero poético e de gênero
enquanto identidade sexual e performance social, culturalmente construídas e
significadas. Como há um predomínio de análises de ficção nas pesquisas de
literaturas africanas no Brasil, usualmente com enquadramentos a partir da
História (romance como representação de nação e ficção como expressão
discursiva pós-colonial) e das Ciências Sociais (ficção como expressão de
identidade e os temas do hibridismo), de um lado, e uma hegemonia de análises
sobre autores homens, interessa-nos verificar se as abordagens da poesia
escrita por mulheres africanas trazem discussões sobre poesia enquanto escrita
esquiva à própria ideia de representação histórica ou
sociológica/antropológica, e também se/como abordam os temas de gênero. Este
artigo, portanto, propõe uma dupla entrada: um mapeamento descritivo, ao
perguntar quem são as poetas estudadas, como e quando foram estudadas, se o
foram de modo exclusivo ou comparado etc., e uma discussão sobre categorias,
apresentando questões sobre gênero poético e estudos sobre mulheres às teses e
dissertações.
Panorama
dos estudos de literaturas africanas na pós-graduação brasileira
O mapeamento sobre o
campo da pesquisa literária no Brasil ainda engatinha. Há investigações, como
as de Regina Dalcastagné (2018), por exemplo, analisando num recorte dos
periódicos acadêmicos mais gabaritados, quais os autores mais estudados e sob
que correntes teóricas, ou seja, realizando um mapa estrutural do campo de
investigação literária, revelando hierarquias, dinâmicas e linhas de força. No caso
dos trabalhos sobre literaturas africanas, há alguns balanços pessoais, como o
de Laura Padilha (2010), destacando linhas de pesquisa e orientações teóricas,
mas ainda carecemos de um retrato mais sistemático de um campo de pesquisas ao
mesmo tempo tão recente e tão pujante. Um retrato assim pode ser traçado a
partir de diferentes objetos. Não há entre nós, por exemplo, um estudo como o
feito por Pires Laranjeira (1995), comentando os textos clássicos dos estudos
de literaturas africanas em língua portuguesa. Faltam-nos ensaios que discutam
as contribuições teóricas e analíticas de nossos nomes pioneiros (Simone Caputo
Gomes, Rita Chaves, Maria Nazareth Fonseca, Laura Padilha, Carmen Lúcia Tindó
Secco, Tania Macêdo, Benjamin Abdala Júnior, Mário Lugarinho, entre outros)
dando conta das principais questões epistemológicas, do repertório literário
manipulado, das vinculações interdisciplinares e institucionais, dos percursos
intelectuais etc. Falta-nos também um estudo sobre o estado da arte, repertório
e categorias manipuladas nos periódicos acadêmicos. Além de dissertações e
teses, é notável no país o crescimento da produção de artigos acadêmicos sobre
as literaturas africanas, mas tal campo de recepção também ainda não foi
pesquisado e discutido. É possível dizer que houve, na primeira década do
século XXI, uma consolidação institucional da recepção crítica às literaturas
africanas, seja na produção de dissertações e teses, seja na ampliação do
espaço para aquelas literaturas nos periódicos brasileiros, quando algumas
revistas com foco e escopo em literaturas de língua portuguesa foram fundadas.
A entrada dos Estudos Literários nas questões africanas se dá mais fortemente a
partir do fim dos anos 1990, num relativo atraso em relação a áreas como as
Ciências Sociais e a História. Se as revistas são espaços potenciais para a
multiplicidade de autores(as) dos países africanos, a realização de
dissertações e teses costuma ter maior dependência com certa sedimentação, seja
de pesquisas sobre os nomes e livros investigados, seja com a presença dos
livros no mercado editorial brasileiro, o que em grande parte explica a enorme
concentração de análises em nomes como Mia Couto, Pepetela, Ondjaki e Agualusa.
Essa dependência de sedimentação para as teses e dissertações, mesmo que em
muitos dos casos também prevaleça o trabalho quase artesanal que vai do contato
com os livros raros à pesquisa de nomes ainda sem presença na academia
brasileira, entra em choque com o caráter engajado da própria área de
investigação. Estudar literaturas africanas, afinal, é um procedimento de
resistência e do cultivo da diversidade e do arejamento do cânone em língua
portuguesa. Nesse sentido, pode-se dizer que passamos a ser, também, e de um
modo ainda não definido, pós-coloniais ao estudarmos literaturas pós-coloniais
africanas. Laura Padilha (2010, p. 13), explica que o gesto dessas pesquisas é
de resistência e desconstrução do cânone eurocêntrico:
A
fim de brevemente concluir, devo dizer que se, por sua parte, a
neocolonialidade insiste em não ceder seu espaço, nós, os que a ela nos opomos,
insistimos também em enfrentá-la, pondo em circulação novas vozes, que assim se
deixam ouvir; outras matrizes culturais, que afinal afloram; diferentes formas
de olhar, que ganham espaço. Enfim, objetivamos, como nossos estudos,
contribuir para que o múltiplo cultural que somos tome seu lugar.
Nosso panorama mostra que
apenas em parte acontece o sucesso da utopia do “múltiplo cultural”, havendo
concentração excessiva em poucos nomes, num perverso contraponto ao
empreendimento de resistência que representam tais estudos (ainda mais se
considerarmos a Lei 10639/03 como impulsionadora de mais atenção às culturas
africanas). Este contraponto, queremos sugerir, é a permanência do colonial
através de uma visão orientada pelo mercado global e pela reapropriação
contemporânea da noção de literatura mundial. A discussão não cabe aqui, mas
não podemos nos furtar ao que escreve Pires Laranjeira (2016, p. 207):
Escolhas
como as de Agualusa, elevado a representante da literatura angolana (e já ouvi
chamar-lhe escritor português e brasileiro!), criam um novo cânone, que pode
resvalar para uma espécie de neo-paternalismo ou mesmo neo-colonialismo
cultural, com o consentimento de uma parte generosa dos actores institucionais.
O estudo sobre dissertações
e teses foi realizado através de consultas ao Catálogo de Teses e Dissertações,
entre 01-10-2018 e 01-06-2019. Verificamos 1222 nomes das literaturas africanas
no sistema de busca da plataforma da CAPES, sendo 298 dos países lusófonos e
924 dos não-lusófonos. Consultamos também inúmeras expressões como “literatura
africana”, “literatura moçambicana”, “poesia angolana” etc. A partir da
consulta, selecionamos pesquisas que, de modo exclusivo ou comparado, citassem
o nome de escritor(a), o que se confirmou caso a caso pelo acesso aos resumos dos
trabalhos (na quase totalidade deles, pois alguns poucos não se encontram online). Da consulta dos 298 nomes da
África lusófona, 117 foram confirmados (39,3%), e 180 nomes não. Dos 924 nomes
da África não-lusófona, houve menção a apenas 47 autores (5,1%). Há, portanto,
intensa concentração de investigações na literatura dos países que sofreram
colonização portuguesa, demonstrando o peso do repertório lusófono nas análises
brasileiras. São 33 nomes de Angola, 33 de Cabo Verde, 23 de Moçambique, 20 de
Guiné-Bissau e 8 de São Tomé e Príncipe. Neste artigo, discutiremos somente os
resultados quanto aos países de língua oficial portuguesa.
Selecionamos os dados em
duas ordens diferentes: a) a quantidade de dissertações e teses, com
subclassificações de ano, instituição de origem, área acadêmica etc.; b) a
quantidade de menções de cada autor(a), igualmente subclassificadas em ano e
tipo, isto é, se pesquisa exclusiva ou comparada, permitindo traçar cruzamentos
de autores(as), dividindo-os(as) em subcategorias, como comparações com nomes
do Brasil, de Portugal, de ambos, de outras nações africanas etc.
Com relação ao número de dissertações e teses, entre 1979 e 2018,
encontramos 840 trabalhos sobre literatura africana dos PALOP (mas também
comportando algumas poucas comparações fora da lusofonia), com 613 dissertações
(73%) e 227 teses (27%). Dividimos a evolução da produção acadêmica em três
patamares temporais, tendo como marco central a edição da lei 10639/03.
Consideramos também fatores como o incremento de programas de pós-graduação e o
aumento expressivo de bolsas de estudo no país após o ano 2003. Os três
períodos mostram um crescimento consistente: a) 1979 a 2004 – um período
formativo, pioneiro, com produção ininterrupta desde 1990, e que resultou em 109
trabalhos (13% do total, média de 4,2 pesquisas/ano); b) 2005 a 2012 –
escolhemos o ano 2005 como marco para as primeiras dissertações produzidas já
sob a vigência da lei 10639/03, sendo um período de consolidação, com 275
trabalhos defendidos (32,7% do total, 34,4/ano); c) 2013 a 2018 – período de
disseminação dos estudos em universidades de todo o país e também período de
confirmação acadêmica, com muitos mestres em literaturas africanas defendendo
agora suas teses de doutorado, sendo realizadas 456 pesquisas em apenas 6 anos
(54,3% do total, 76/ano). O último período é também o de descoberta de novos
autores. Será nesse último período que se dará a maioria das dissertações e
teses exclusivamente voltadas às autoras africanas.
Quanto às menções de
escritores(as), existe grande quantidade de nomes citados, se compararmos com a
pesquisa feita sobre os não-lusófonos. Temos na pós-graduação das investigações
de literaturas africanas apego à diversidade e discussão de materiais sempre
renovados, incluindo-se aí a retomada de nomes do passado (como ficará evidente
quanto às pesquisas sobre Noémia de Sousa), embora sob enorme concentração na
África de língua oficial portuguesa. Também há concentração exagerada na
recepção de alguns poucos nomes. Assim, um dos problemas mais significativos
demonstrados pelo panorama é o da contradição entre diversidade e concentração,
sendo possível pensar num possível sequestro de interesses acadêmicos pela
diminuta disponibilidade de nomes africanos no mercado editorial brasileiro, o
que revela um dos aspectos de nossa herança colonial e também da nossa
submissão à literatura do capitalismo global, das casas editoriais
multinacionais etc. De outro lado, temos demandas políticas que também orientam
a dinâmica das pesquisas, como é o caso do crescimento bastante recente de
análises de escritoras africanas, a partir das discussões de gênero, como nos
casos mais evidentes de Paulina Chiziane e de Chimamanda Adichie, além das
demandas que põem em intersecção ativismos afirmativos transnacionais, como os
estudados por Sérgio Costa (2006). O próprio estudo da recepção brasileira às
literaturas africanas pode ser pensado nesse último enquadramento.
Concebemos um ranking de
escritores(as), tendo como critérios o número de pesquisas, número de teses,
número de dissertações, investigações exclusivas, presença no período 2013-2018
e trabalhos de 2018. O número de citações de nomes (1012) é naturalmente maior
que o de pesquisas defendidas (840), já que as análises comparatistas são mais
de um terço do total. No plano mais geral, dos 117 nomes confirmados, apenas 50
estão em 3 ou mais pesquisas, compondo 92% do total de registros. Para se
dimensionar a concentração, há no fim da lista outros 50 nomes que constam com
apenas uma menção nos estudos, usualmente em teses e dissertações
comparatistas. Já no topo, se ficarmos apenas nos 20 mais citados, a
concentração é de 78,5% das menções, com muitos trabalhos exclusivos. Pesquisas
exclusivas, como as que discutiremos sobre as poetas africanas, abordam em
geral mais de um livro de mesma autoria.
É o caso, naturalmente,
de Mia Couto. Editado e reeditado todos os anos no Brasil, o moçambicano lidera
o ranking de menções acadêmicas, tendo 24% do total de citações. Um autor
sozinho, note-se, com um quarto das referências. Em seguida vêm Pepetela,
Paulina Chiziane, Agualusa, Luandino Vieira, Ondjaki, Boaventura Cardoso, Ruy
Duarte de Carvalho, João Melo e Ana Paula Tavares. Os 10 primeiros concentram
67,1% das referências. Trata-se, porém, de um quadro dinâmico, pois, até 2003,
Luandino Vieira era o mais analisado. Entre 2004 e 2007, Pepetela era o mais
citado, sendo que Mia Couto assumiu a liderança em 2008, disparando à frente
dos demais.
Na base da lista, dos 50
nomes com 1 menção, 16 são de Guiné-Bissau, 12 de Cabo Verde, 10 de Angola, 7
de Moçambique e 5 de São Tomé e Príncipe, o que mostra que as literaturas
guineense e cabo-verdiana foram estudadas preferencialmente em moldes
comparativos, incluindo, em geral, 3 ou mais nomes numa mesma pesquisa. Autores
angolanos têm 454 menções (44,8% do total), numa média de 13,8 menções/autor.
Os moçambicanos têm 393 menções (38,8%), mas com média de 17/autor (devido,
basicamente, a Mia Couto). Autores de Cabo Verde têm 106 menções (10,5%), média
de 3,2/autor; de Guiné-Bissau 41 (4,1%), média de 2/autor; e de São Tomé e
Príncipe 18 (1,8%), média de 2,2/autor.
Três questões são as mais
problemáticas da relação entre a recepção brasileira e a produção literária
africana: a orientação dos estudos pela disponibilidade dos livros enquanto
mercadoria, na medida em que os autores mais presentes no mercado tendem a ser
os mais pesquisados, situação gritante no caso de Mia Couto; a concentração nas
narrativas, em nome de um enquadramento usual a partir da leitura histórica ou
cultural dos textos literários, objetivando a descrição de retratos de nação ou
de discussão de identidade nas obras; a concentração na lusofonia, tanto em
função da condição autocentrada e isolada da academia e da literatura
brasileira, quanto em razão do projeto imperialista de baixo impacto que o
Estado e o mercado cultural brasileiros representam e fazem funcionar sobre a
produção africana. De outro lado, três pontos podem ser vistos como
extremamente positivos: a profusão de nomes analisados em paralelo ao processo
de concentração nos mais pesquisados, havendo de fato uma pulverização
cartográfica bastante significativa nas investigações, em particular naquelas
comparatistas; a predominância, ainda que não tão avantajada, dos estudos
exclusivos sobre autores africanos e daqueles sob perspectiva intra-africana,
mesmo que muito restrita ao espaço lusófono, o que denota uma atenção
específica e um possível aprimoramento das ferramentas analíticas pelo acúmulo
crítico e teórico; o crescimento avassalador da área de estudos, com intensa
concentração das análises nos anos mais recentes, o que promete incorporação de
novos nomes, consolidação profissional de mestres que também façam suas teses
sobre as literaturas africanas, num horizonte de diversificação das análises a
partir da reflexividade proporcionada pela autonomização do campo de
investigação, contribuindo para a oxigenação dos repertórios lidos no Brasil.
Poesia
africana em língua portuguesa
A poesia é um gênero
pouco estudado nas dissertações e teses. São 95 (11,3%) das 840 pesquisas
catalogadas. É preciso, porém, relativizar o dado, uma vez que não dispomos de
comparativos com a presença de pesquisas sobre poesia no quadro de outras
literaturas. A concentração em análises que leem as literaturas africanas como
construção de retrato de nação e discussão de identidade faz com que se
privilegie o romance, em primeiro plano, e o conto, em segundo. Se é diminuta a
presença da poesia nas pesquisas, o que diremos do teatro, com uma ou outra
análise sobre a dramaturgia de Pepetela ou Abdulai Sila, por exemplo, e com
apenas um autor mais destacado, o angolano Mena Abrantes? O mesmo ocorre com a
literatura infantil e para relações entre literatura e outras produções
simbólicas, como o cinema. Pode estar acontecendo, portanto, que a concentração
nas narrativas se dê em nome de uma expectativa brasileira representacional da
história e da cultura africanas, o que tanto despolitiza a relação crítica
entre a recepção e a produção, quanto reifica de modo cultural e histórico (e
menos literário) a literatura estudada. Despolitização e, paradoxalmente,
desestetização. Apesar da profusão de investigações, parece haver um fechamento
crítico da recepção literária, na medida em que o impulso que orienta os
trabalhos é predominantemente histórico e cultural.
Dos 95 trabalhos com
poesia, 61 (64,2%) são com poetas homens e 34 (35,8%) com poetas mulheres. Se
tomarmos o número de pesquisas com poetas mulheres, as 34 representam apenas 4%
do total. Já as 61 pesquisas com poetas homens são 7,3% do total. No plano
geral, as escritoras são nitidamente menos investigadas que os escritores. São
130 pesquisas (15,5%) das 840 catalogadas. Nas 130 análises, ocorre predomínio
da ficção, com 97 investigações (74,6%), sobre os 33 estudos de poesia (25,4%).
Como se nota, nas análises de escritoras, o índice da poesia (25,4%) é bem
superior ao do índice de poesia em geral sobre o total das 840 (11,3%). Também
é muito superior ao índice de pesquisas com poetas homens (61 ou 8,6%), se
tomarmos apenas o número de pesquisas com homens (710). Constata-se um paradoxo
no cruzamento de dados. No espaço diminuto das pesquisas com poesia, conclui-se
que há mais poetas homens sendo estudados que poetas mulheres, mas entre os
trabalhos que analisam escritoras, o índice de análise de poesia é muito
superior. Na esfera universal, portanto, homens são mais lidos enquanto poetas
que mulheres, mas na esfera específica destas, há proporcionalmente mais
presença de poetas. A contradição, dita de modo simples, enuncia que, enquanto
gênero, poesia é mais lida nos poetas homens, mas, de outro lado, no gênero
feminino há proporcionalmente mais leituras de poesia. Obtivemos também um dado
interessante para a discussão da recepção brasileira às literaturas africanas.
Tanto nos países lusófonos, como nos não-lusófonos, o autor mais estudado é
homem branco (Mia Couto e J. M. Coetzee) e a autora mais estudada é mulher
negra (Paulina Chiziane e Chimamanda Adichie). De outro lado, são
predominantemente mulheres (cerca de 75%) as autoras de pesquisas sobre
literaturas africanas no Brasil.
Entre os 10 nomes mais citados, há três que são poetas, além de
ficcionistas (Mia Couto, João Melo, Ruy Duarte de Carvalho). Todos têm, no
entanto, pouquíssimas leituras de suas obras poéticas. Naqueles mais
explicitamente identificados à poesia, destacam-se 4 nomes entre os 20 mais
mencionados: Ana Paula Tavares, José Craveirinha, Agostinho Neto e Noémia de
Sousa. Deles, apenas Ana Paula Tavares também é estudada para além da poesia,
pois seus contos e crônicas já receberam análises na pós-graduação brasileira.
A busca por “Ana Paula
Tavares” retorna 16 pesquisas (10 dissertações e 6 teses), contando com 5
dissertações exclusivas sobre sua obra. A poeta tem menos pesquisas a partir de
2013 (37,5%), sendo o trabalho pioneiro defendido em 2000. Há, contudo, outras teses e dissertações sobre a
poeta. Infelizmente, por questão de espaço, foram, neste artigo, algumas em
detrimento de outras. Por exemplo, na Faculdade de Letras da UFRJ, dois estudos
exclusivos sobre Paula Tavares foram defendidos em 2014: a dissertação de
Pamela Maria do Rosário Mota sobre a metáfora do sangue na poesia de Paula,
abordando o sangue menstrual, o sangue dos rituais míticos, o sangue da guerra
e o sangue da escrita; a tese de Fernanda Antunes Gomes da Costa que versou
sobre a poética dos sentidos na obra toda da referida poeta.
José Craveirinha, por sua
vez, é citado em 14 pesquisas (8 dissertações e 6 teses), sendo mais estudado a
partir de 2013 (64,3%). Recebeu 3 dissertações exclusivas e uma tese. O perfil
de Agostinho Neto é semelhante ao de Tavares, pois tem 14 menções (13 dissertações
e uma tese), com menor ênfase após 2013 (35,7%). Por fim, o perfil de Noémia de
Sousa se assemelha ao de Craveirinha, sendo citada em 10 pesquisas (9
dissertações e uma tese), tendo 6 dissertações exclusivas e concentração após
2013 (70%). Há, pois um crescimento nos nomes moçambicanos, que se faz
inclusive pelo resgate de poetas fundadores(as). Parece mesmo estar ocorrendo
uma transição da recepção de escritores(as) de Angola para os de Moçambique,
pois, além de Tavares e Neto, também Pepetela, Boaventura Cardoso e Luandino
Vieira têm menos de 50% das análises a partir de 2013 (mas há exceções, como
Ondjaki e João Melo), enquanto, a exemplo de Sousa e Craveirinha, Mia Couto
(60%), Paulina Chiziane (61,8%) e João Paulo Borges Coelho (100%) são nomes de
Moçambique com maior concentração a partir de 2013. À falta de melhor
explicação, pode-se creditar a transição para a recepção da literatura
moçambicana em função do predomínio avassalador de Mia Couto e mesmo à produção
mais tardia da literatura moçambicana (sendo Craveirinha e Noémia de Sousa
notáveis exceções).
Poesia
africana de autoria feminina em língua portuguesa
Para esta discussão,
optamos por um corte radical naquelas 34 análises que envolvem poetas africanas
mulheres, reduzindo nossa abordagem às 16 pesquisas sobre poesia africana de
autoria feminina. Há um significativo número de trabalhos comparatistas, o que
é característica das análises sobre poesia (assim como sobre as literaturas
nacionais de São Tomé e Príncipe ou de Guiné Bissau). A perspectiva panorâmica
permite relacionar três ou mais nomes, com prejuízo para o estudo de obras em
favor da análise de poemas específicos. Opta-se bastante também pela
perspectiva da lusofonia, com poetas de diferentes países. Assim, Ana Paula Tavares,
a poeta mais mencionada, é estudada em conjunto a nomes como Manoel de Barros,
Marilza Ribeiro, Olga Savary, Ricardo Aleixo, Edimilson de Almeida Pereira,
Ronald Augusto, Hilda Hilst, Conceição Evaristo, Seu Beto, Luís Carlos
Patraquim, Ruy Duarte de Carvalho e Adília Lopes. Já Noémia de Sousa recebeu
investigações em conjunto a Landê Onawale, Clã Nordestino, Cyro dos Anjos,
Orlando Mendes, Paulina Chiziane, Agostinho Neto e Fernando Pessoa. Nota-se,
entretanto, a inexistência de dissertação ou tese que trate de Tavares e Sousa,
as duas poetas mais citadas, em conjunto. Perceba-se, igualmente, que nenhuma
das duas recebeu teses de doutorado exclusivas. Também há comparações
envolvendo poetas como Vera Duarte, Conceição Lima, Alda Espírito Santo e Odete
Semedo. Nesse sentido, delimitamos nossa discussão ao conjunto das 14
dissertações e 2 teses que tratam especificamente, mesmo que no viés
comparativo, de poetas africanas mulheres. A escolha deixa de fora muitos dos
trabalhos dedicados a Ana Paula Tavares, na medida em que é um nome bastante
investigado nas pesquisas comparatistas.
Nos 16 trabalhos
selecionados, o dado mais evidente à primeira vista é a condição recentíssima
da maioria deles, pois 10 dissertações foram defendidas apenas entre 2017 e
2018 (e somente 4 trabalhos foram defendidos antes de 2014), apontando, numa
perspectiva otimista, para possíveis continuidades de análise da poesia
feminina africana em futuros doutoramentos. A poesia africana de autoria
feminina em língua portuguesa é um campo praticamente em aberto. Será sobre
esses 16 trabalhos (1,9% das 840 teses e dissertações catalogadas sobre
literaturas africanas lusófonas) que nos debruçaremos a seguir, apontando de
forma breve as características de cada um deles. Dezesseis pesquisas são
“sombras para os vossos olhos”, como no verso de Noémia de Sousa, podendo-se mesmo
falar numa quase invisibilidade da poesia africana de autoria feminina. É
sugestivo, nesse sentido, que Homi Bhabha (1998, p. 78) discuta a questão
pós-colonial, ao tratar do legado de Frantz Fanon, a partir da ideia de
“invisibilidade”, citando o poema de Meiling Jin. Invisibilidade que o próprio
poema de Sousa desmente, num gesto pós-colonial (“extraordinariamente vivos e
despertos”). De fato, é pela devolução de um olhar que vigie e assombre (como
no poema citado por Bhabha) que a mulher pós-colonial, invisibilizada, se
defende e agencia sua condição de sujeito. Não à toa, tal agenciamento se dá
pelo olhar, ou como descreve Judith Butler (2003, p. 7) a respeito da intrusão
repentina das mulheres na cena patriarcal, por uma “intervenção não antecipada,
de um ‘objeto’ feminino que retornava inexplicavelmente o olhar, revertia a
mirada, e contestava o lugar e a autoridade da posição masculina.” Nesse
sentido, não buscamos avaliar as dissertações e teses, mas traçar delas um
resumo que se oriente principalmente pela discussão que fazem de poesia e pela
referência que trazem (ou não) dos estudos de gênero.
O trabalho pioneiro foi a dissertação de Marcelo Pereira Machado
(2006), com análise sobre o livro O lago
da lua, de Ana Paula Tavares. Machado, sob guarida da teoria pós-colonial e
dos estudos de gênero, pensa a poesia da autora a partir da negociação
temporal, haja vista, no seu entender, a dupla condição da mulher angolana, elo
com a memória e abertura para a transgressão. Isso se daria por “piscadelas”
(que o autor associa ao olhar feminino), e não de modo panfletário, engendrando
discussões matizadas e sensíveis sobre a identidade nacional e a identidade
feminina. A poesia de Tavares é caracterizada como transformadora, dando conta
da multiplicidade cultural angolana e aproximando a identidade nacional das
margens e do feminino, subvertendo a norma colonial. Predomina na análise a
discussão da nação e da cultura, orientada a partir da escrita feminina.
De 2010 é a dissertação de Mara Regina Ávila de Ávila, também sobre
a relação entre a poesia de Ana Paula Tavares e a nação angolana. Analisando um
conjunto de poemas retirados dos livros Ritos
de passagem, O lago da lua e Ex-votos, a pesquisa relaciona a poesia
de Tavares à reconstrução histórica pós-colonial, principalmente no plano
identitário e com ênfase no resgate da tradição de africanidade ou negritude.
Há uma atenção ao gênero poético, contrapondo “lírica moderna” e “lírica
pós-colonial”. Ávila faz a discussão da poesia de Tavares a partir das questões
de identidade, e sua abordagem dos temas de gênero é bastante tributária das
reflexões de Homi Bhabha.
Também de 2010 é a tese de Érica Antunes Pereira, analisando em
conjunto as obras iniciais das poetas Alda Espírito Santo, Alda Lara, Conceição
Lima, Noémia de Sousa, Ana Paula Tavares e Vera Duarte. Para Pereira, há
unidade entre elas na construção social do sujeito feminino. Os poemas são
lidos à luz da hermenêutica do cotidiano feminino e por informes oficiais sobre
a situação social das mulheres nos contextos em que se inscrevem. A perspectiva
é a da condição feminina (nas “submissões”, “encruzilhadas” e “resistências” da
subjetividade) como voz subalterna e envolta no cotidiano, mas de pungente
potencial transformador. O trabalho apresenta discussão de gênero, citando
várias autoras, com destaque para Elaine Showalter e Joan Scott. Pereira
enfatiza a ruptura que o cruzamento de cotidiano (casa, família,
ancestralidade) e gênero, operado nos poemas estudados, realizou sobre os
cânones nacionais, por exemplo, ao relacionarem maternidade e pátria ou ao
explicitarem a subjetividade desejante e erótica (como em Ana Paula Tavares e
Vera Duarte), além de dignificar o lugar das mulheres na construção de nação.
Vera Lúcia da Silva Sales Ferreira, em tese de 2011, usa a imagem
do “carpir”, seja como choro da dor do outro (as carpideiras), seja como marca
textual (a capina), para apresentar, também em perspectiva panorâmica, a
construção de poemas nas escritoras Alda Lara, Amélia Dalomba, Ana Paula Tavares,
Maria Alexandre Dáskalos, Yolanda Morazzo, Odete Semedo, Noémia de Souza, Alda
Espírito Santo e Conceição Lima. Ao selecionar nomes dos cinco países africanos
de língua portuguesa, Ferreira pensará os poemas como retratos da condição
feminina e da condição nacional, em diálogo com a tradição e com a oralidade.
De outro lado, a pesquisadora aponta para a condição de deslocamento e
hibridismo nos poemas em tela. Ao investigar a construção do gênero poético
(figuras de linguagem, intertextualidade, sintaxe da oralidade), porém,
Ferreira praticamente não toca nos temas de gênero a partir de bibliografia
específica.
A dissertação pioneira sobre Noémia de Sousa foi defendida em 2014,
por Carla Maria Ferreira Sousa. A pesquisadora estudou o livro Sangue negro a partir do engajamento
político dos poemas, destacando, além do ambiente estético no qual Noémia se
formou, a condição resistente dos textos da poeta moçambicana. Além de ler os
poemas à luz das ideias de militância e engajamento social, a estudiosa apresenta
a trajetória da poeta a partir da noção de “Atlântico Negro”, cunhada por Paul
Gilroy, em particular na análise do poema dedicado a Jorge Amado e naqueles que
tratam da música estadunidense (o blues, o jazz), enfatizando, portanto, a
aderência à negritude na poesia de Noémia de Sousa. Ainda que bastante se
mencione na dissertação a intersecção de raça, classe e gênero, não há
abordagem específica das questões quanto à autoria feminina.
A poesia de Odete Semedo
é analisada na dissertação de Karina de Almeida Calado (2015). Sob a
perspectiva da imaginação de nação através da obra No fundo do canto, Calado discute a noção de “cantopoema” enquanto
forma discursiva de imagens da ancestralidade guineense. No “cantopoema”
estariam conjugadas identidade nacional e identidade da voz poética. A pesquisa
de Calado se orienta pelos Estudos Culturais, mostrando a diversidade étnica e
linguística a partir da exposição das relações entre oralidade e literatura. A
análise do gênero poético peculiar de Semedo se dá, além da problemática social
e histórica do contexto, pela discussão das influências das cantigas de mandjuandadi na obra e pela análise do
épico e do lírico em No fundo do canto.
Como a pesquisa discute nação e identidade, a temática do gênero não é considerada.
Noémia de Sousa também
foi a escolha de Leonardo Alonso dos Santos (2017), em dissertação sobre a
condição de resistência solidária presente na poesia da intelectual
moçambicana. Discute-se a presença colonial e sua subjugação de identidades
para, em contraponto, apresentar nos poemas de Sangue negro uma literatura de combate ancorada em princípios
humanistas novos. Destacando a função social da literatura, Santos se apoia em
Boaventura de Sousa Santos e em Hannah Arendt para rever epistemologicamente a
situação da poesia, apontando sua condição de libelo da resistência
moçambicana. De outro lado, ainda que haja uma seção da dissertação sobre a
“voz feminina”, não se discutem questões de gênero no trabalho, pois a poesia
de Noémia é analisada na sua condição de luta coletiva e de solidariedade a
partir da negritude.
Lília Maria Santiago de
Lira também tratou da poeta de Sangue
negro em dissertação defendida em 2017. Além da contextualização do
processo histórico no qual emergiram os poemas de Noémia de Sousa, a
pesquisadora enfatiza o “eu lírico feminino”, com a expressão “feminino” citada
nas palavras-chave do trabalho. O referencial é pós-colonial (Edward Said, Homi
Bhabha), feminista (Simone de Beauvoir), mas também parte da intersecção de
gênero e subalternidade proposta por Gayatri Spivak. A estudiosa propõe que a
condição feminina do eu lírico seja lida na integração à voz coletiva, no
resgate da altivez da negritude e na solidariedade com os despojados pelo
processo colonial. Ainda assim, mencionam-se poemas expressando tanto a voz
feminina silenciada quanto a revolucionária, com a presença de imagens como a
Mãe-África, a irmã Lua e as “moças das docas”, o que não resulta, entretanto,
em análises propriamente a partir dos estudos de gênero.
Em dissertação defendida
em 2017, Élen Rodrigues Gonçalves trouxe a primeira análise exclusiva da poesia
de Conceição Lima. O trabalho de Gonçalves, amparado em teóricos como Gayatri
Spivak e Édouard Glissant, discute a formulação identitária na poeta,
contrapondo-a à homogeneização do discurso colonial e apontando a condição
diaspórica e crioulizada como característica dos poemas de Conceição Lima. Nas
palavras-chave há tanto “literatura de autoria feminina” como “escritas de
gênero”. Investigando os livros O útero
da casa, A dolorosa raiz do Micondó,
e O país de Akendenguê, Gonçalves
destaca, em seus termos, a subjetividade multicultural e diaspórica das
mulheres negras dos países periféricos, tal como expressadas nos poemas, em
particular associando a mulher africana à resistência, à ideia de “mátria” e à
desconstrução do conceito de lar, quando a tensão entre a rememoração do
passado e o combate ao presente ressignificam o papel social da mulher.
Daniela de Souza Vianna
pesquisou a poesia de Noémia de Sousa em dissertação defendida em 2018. A
pesquisa inova ao trazer a leitura de Sangue
negro a partir dos espaços geográficos contemplados nos poemas, articulando
história e política aos lugares. Pensando os poemas de Noémia como orientados
para o devir, para a transformação, Vianna mostra como os espaços sociais
marginais de Moçambique, mesmo que também sejam lugares de manifestação da
opressão, articulam a utopia e a resistência, propondo uma geografia
anticolonial. Ao propor a intersecção de Geografia e Literatura, Vianna aponta
uma perspectiva de investigação inovadora, evitando a abstração na leitura dos
poemas de Noémia de Sousa. Se o poético é lido como rediscussão da história,
não se faz, porém, qualquer menção à condição feminina da poesia da autora
moçambicana.
Também de 2018 é a
dissertação de Maysa Morais da Silva Vieira, analisando em contraponto os
poemas de Sangue negro, de Noémia de
Sousa, e os de Imaginar o poetizado,
de Sônia Sultuane. A partir de referencial feminista (bell hooks, Simone de
Beauvoir, Michelle Perrot), o trabalho propõe a análise do “eu feminino” nas
duas poetas moçambicanas, pensando no lugar social da produção dos poemas, seja
no espírito combativo em Sousa, seja na abertura à subjetividade em Sultuane. A
perspectiva analítica é interessante, na medida em que aborda as poetas a
partir da discussão de gênero, mas também na diferença cronológica e social que
informam os poemas de ambas. Identificando Sousa à voz coletiva e aliada à
tradição e Sultuane à voz individual e aliada à modernidade, a investigação
ressalta pontos comuns às poetas, como a expressão das vivências e a busca de
significar e dar lugar de fala à condição feminina. De outro lado, Noémia de
Sousa identificaria a mulher à noção de África, enquanto Sultuane, através da
subjetividade, expressaria uma condição mais descentrada, aberta e indefinida
em termos identitários.
A poesia do livro O lago da lua, de Ana Paula Tavares, foi
objeto da dissertação de Michel Augusto Carvalho da Silva (2018). O pesquisador
destaca as componentes da oralidade como matriz dos poemas engajados na
denúncia e na resistência das mulheres angolanas. Discutindo as identidades
africanas à luz da teoria pós-colonial, Silva aponta para uma reinscrição do
papel feminino na tradição, onde ritos culturais das mulheres (casamento,
maternidade) e cotidiano (os trabalhos domésticos) são ressignificados enquanto
estratégia discursiva da memória poética. A subjetividade feminina, porém,
encontra-se articulada à voz coletiva, por exemplo ligando o corpo feminino à terra
angolana. Há um esforço hermenêutico dedicado aos poemas e ao desvendamento do
sujeito lírico de Paula Fernandes, mas o trabalho não adentra às discussões dos
estudos de gênero sob bibliografia específica.
Mariana Alves Barbosa
(2018) também fez sua dissertação sobre Sangue
negro, de Noémia de Sousa. A pesquisa destaca a noção de africanidade
presente nos poemas sob escrutínio, apontando a dupla exclusão, racial e
cultural/colonial, contra a qual eles foram escritos. Barbosa faz a leitura dos
poemas selecionados considerando o diálogo com a negritude e com a noção de
“máscaras brancas”, não tratando, portanto, da exclusão de gênero. Nesse
particular, o contexto histórico da produção artística e intelectual de Noémia
de Sousa é ressaltado, apontando para o viés universalista da noção de
Mãe-África.
Sob a ótica da
resistência feminina, as poetas Alda Espírito Santo e Conceição Lima são
analisadas conjuntamente na dissertação de Paulo Sérgio Gonçalves (2018). Da
primeira, são tratados os poemas de É
nosso o solo sagrado da Terra – poesia de Protesto e Luta, e de Conceição
Lima são lidos poemas dos livros O útero
da casa, A dolorosa raiz do Micondó
e O país de Akendenguê. A resistência
feminina é acompanhada enquanto conscientização possível pela literatura, apontando
para a representação social assumida pelas poetas de diferentes gerações, sendo
a poesia de Alda vista como legado na obra de Conceição Lima. Combinando
apresentação histórica e análise interpretativa dos poemas, a pesquisa não traz
discussões junto aos temas de gênero. Para Gonçalves, a poesia de Alda Espírito
Santo apresenta o papel das mulheres no processo de libertação do colonialismo,
em particular no pan-africanismo e na ideia de Mãe-Terra. Já Conceição Lima
traria a continuidade daquela discussão, expressando de modo feminino o
“sentimento africano”.
A dissertação de
Roseleine Vitor Bonini (2018) aborda a poesia de Noémia de Sousa, no livro Sangue negro. A investigação se
concentra na temática da identidade, observada à luz do processo histórico
moçambicano, particularizando a condição das mulheres naquele quadro, como na
análise do “corpo feminino colonizado” (embora também o “homem colonizado” seja
discutido). A experiência de mulher mestiça teria sido ponto essencial para a
postura engajada da poeta. Ainda que não traga referenciais dos estudos de
gênero, a dissertação se destaca ao analisar alguns poemas à luz dos mecanismos
de dominação patriarcal. A temática da identidade, portanto, aparece no
trabalho entrelaçada pelas noções de gênero e nação.
Por fim, a dissertação de
Camila Dias de Souza Christo Aleixo (2018) pesquisou a poesia de Conceição
Lima, no livro A dolorosa raiz do Micondó.
Ressaltam-se, no trabalho, as noções de raiz e de testemunho, mostrando como a
poética de Lima trata a catástrofe histórica. Sob a imagem da exposição da raiz
da violência e da catástrofe, Aleixo trata os poemas como reflexões sobre a
dignidade e como elementos de conscientização social. O movimento crioulizado
que os poemas fazem sobre a tradição explicita a denúncia da violência colonial
e aponta para a reestruturação do presente. O testemunho, desse modo, presente
nos poemas, é um convite à organização coletiva, revertendo a herança
catastrófica.
Os trabalhos acima
arrolados, como advertimos, são bastante recentes, mas nota-se neles já algumas
saturações e redundâncias, como no caso das análises sobre Noémia de Sousa. No
plano geral, as análises de literaturas africanas na pós-graduação brasileira
não abdicam da contextualização, usualmente traçando percursos biográficos dos nomes
estudados e, principalmente, retratos históricos do percurso das nações
africanas do colonialismo à independência, destacando sempre as questões de
identidade (tanto a negritude quanto o hibridismo, numa tensão algo irresolvida
em termos analíticos) e de nação (o contradiscurso literário em nome do
múltiplo e dos subalternos).
Considerações
finais
Se a discussão da poesia
está presente em todas as pesquisas selecionadas, ela não se faz de modo
homogêneo, havendo análises via imaginário, leituras de poesia como mimese do
percurso histórico de nação, investigações estruturais dos poemas e propostas
de politização da leitura do poético. Insiste-se, porém, na abordagem de poesia
em moldes muito próximos da leitura de ficção, buscando-se na palavra poética
uma representação dos mesmos moldes da prosa, o que certamente demanda mais
estudos críticos sobre as diferentes condições miméticas entre a poesia e a
prosa literária.
Quanto às discussões de
gênero, elas estão presentes em pelo menos metade das dissertações e teses
selecionadas, mas raramente com atenção teórica às especificidades das mulheres
africanas. As teses e dissertações que trazem referencial dos estudos de
gênero, muitas vezes se apropriam da discussão a partir de nomes do
pós-colonial, como Homi Bhabha, Stuart Hall e Gayatri Spivak. Em outros casos,
citam-se e discutem-se nomes mais característicos daquelas propostas
epistemológicas, como Simone de Beauvoir ou Judith Butler. Ainda que as
pesquisas não pensem as mulheres africanas, enquanto autoras e enquanto parte
da sociedade representada nos poemas, como uma essência, reificando-as no papel
colonial a elas atribuído (reprodutoras do atraso, do exotismo e do erotismo),
não há, entretanto, investigações mais profundas sobre as relações entre patriarcado
e matriarcado na especificidade das nações e povos africanos. Nota-se a
ausência de referências teóricas do feminismo negro (bell hooks, Angela Davis)
e, principalmente, das teóricas africanas, como, por exemplo, da nigeriana Ifi
Amadiume (1997) e da moçambicana Isabel Maria Casimiro (2014). Casimiro tem
significativa discussão sobre as lutas das mulheres moçambicanas a partir do
processo de independência, contrariando imagens deturpadas de subordinação e
inação política. Já fora do continente, mas com reflexões pertinentes para a
recepção brasileira das literaturas africanas, teríamos a contribuição de Lila
Abu-Lughod, tratando dos limites do relativismo cultural a partir do
posicionamento ocidental (em particular das mulheres ocidentais) quanto às
mulheres muçulmanas. A autora insiste na diferença entre as mulheres do mundo,
algo que já se evidenciara na década de 1970, quando a ONU passou a coordenar
reflexões e ações globais visando as mulheres. Assim, quando falamos de poesia
africana de autoria feminina, um dos pressupostos é que se reflita sobre o que
é poesia “africana” e o que entendemos por autoria feminina “africana”. O
caminho sugerido em algumas das dissertações e teses é o da leitura cultural,
entendendo a poesia de autoria feminina como elo indispensável com as tradições
africanas, correndo-se o risco do anacronismo ou de uma correspondência
essencial entre mulheres e ancestralidade, desconsiderando o permanente jogo de
forças entre modernidade e tradição inerente aos processos colonial e
pós-colonial.
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Paraíba, 2018.
[1]
Um dos problemas do Catálogo da CAPES é a indexação. A pesquisa para
“Ana Paula Tavares”, por exemplo, não retorna alguns trabalhos indexados em
“Paula Tavares”, infelizmente ausentes neste artigo.