quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Dente de cachorro, de Cristiano Moreira (Florianópolis: Nave/Nauemblu Ciência e Arte, 2018)


A expressão “dente de cachorro”, nos diz uma nota introdutória, é um erro tipográfico cuja marca é a introdução de espaços exagerados entre palavras ou letras. Eu partiria daí na leitura do livro, mas o título na capa me conduz ao contrário do espaçamento, pois a expressão vem grafada sem os tais dentes: “dentedecachorro”. Espero encontrar nos poemas uma negociação ou tensão entre o espaçamento e seu contrário, entre o muito distante e o muito próximo. Distante parece ser a proposta poética de Cristiano Moreira diante das referências mais imediatas na poesia contemporânea. Primeiro que há um andamento dramático (enquanto gênero, drama, e não como adjetivo para o exasperado), em alguns dos poemas, como nos longos “sinuca” e “deserto, de resto”. São poemas que tematizam diálogos, íntimo (uma conversa com o “pai”) e pressuroso (a remoer os golpes políticos recentes), como em “sinuca”, e mais ritualizados, hieráticos, em “deserto, de resto”. O segundo distanciamento decorre do primeiro, pois ao instituir a conversa como mote dos poemas, Cristiano Moreira descarta a exposição de vísceras umbilicais, as eternas autobiobibliografias de certa poesia cansativa e cansada que rema a favor da corrente. A conversa, a instituição de vozes em contraponto, nada disso é muito comum hoje. O que dá um ar adulto ao livro, outra diferença significativa no mar hodierno de playgrounds. Uma conversa é um aperto de mão, aquele gesto ao mesmo tempo próximo (de humanidade) e distante, polido, público, isto é, da pólis. Cristiano Moreira dá a pista citando prosadores calejados, Osman Lins, João Antônio. Também há um Flaubert evocado na “impressão justa”. De fato, não há graça ou gratuidade nos poemas. Eles exigem uma firmeza pública, política, e mesmo popular (por serem partilha do simples: a mesa de sinuca, o pife, a palha). A ética dos poemas, ao mesmo tempo em que é denúncia, do golpe, da repressão, da violência política, também é conversa olho no olho, como em “zezuíííno”, que, sim, pode dar no seu reverso que é a morte. Cito do poema o trecho final:

zuzuíííno (assoviava o vento alongado)

viu a vaga no reflexo da lâmina

zezuíno olandino e olandino zezuíno
ambos fernandes estranho
estranho nem tanto

homo homini lupus

cara a cara

mano a mano


Encontro nos poemas de Dente de cachorro uma atenção manual com o fazer poético. São interlocuções (e que beleza pensar o “mano a mano” na condição de espelho e também de interlocução de mãos), daí que recusem o empolado e o grandiloquente. Não há nada de açucarado. Açucarados são os maus poemas, sabemos disso na poética de um João Cabral de Melo Neto. Abel Barros Baptista pensou os poemas de Melo Neto e a prosa de Graciliano Ramos sob a alcunha “agreste”. Penso em algo assim ao ler o livro de Cristiano Moreira. Se em Baptista a noção de agreste tem relação direta com o Nordeste, com a metonímia resultando em “materialista”, penso que haja materialismo no Dente de cachorro, mas é um materialismo estrutural (não figurativo, daí que eu rejeite a referência que o próprio Cristiano cunhou na sua dedicatória à minha pessoa: “novena de imagens de um presente adverso” – simplesmente não creio ser um livro de imagens), lógico. Eu escrevi “atenção manual” pensando na atenção materialista ao fazer, na modelagem do poético. Gosto muito do que escreveu Paul Celan na “Carta a Hans Bender”, de 1960: “Só mãos verdadeiras escrevem poemas verdadeiros. Não vejo nenhuma diferença de princípio entre um aperto de mão e um poema”. Outra referência que trago da mesma carta de Celan é quando fala que “poemas são também oferendas – oferendas àqueles que são atentos. Oferendas que transportam um destino.” As oferendas do livro de Cristiano Moreira são sutis (servem aos “que são atentos”). Falam sob o peso da morte, da infância, do desvalimento, do que não passa de palha, do que é o popular, ao rés-do-chão. Falam de tais instâncias a partir da lógica do jogo de salão, numa conversa que, mesmo não gritada, é atravessada pelos nomes que as coisas de fato têm: “estado de exceção”, “cacetete”, “bala de borracha”, “golpe”, “o rosnar do camburão”, “embora o país claudique”. Não falam violentamente do já que é violento. A dicção se mantém polida, numa eloquência clássica (daí a “impressão justa” flaubertiana). Pascal, nos Pensamentos, define assim a eloquência: “A eloquência é a arte de dizer as coisas de maneira: 1º que aqueles a quem falamos possam entendê-las sem dificuldade e com prazer; 2º que nelas se sintam interessados, a ponto de serem impelidos mais facilmente ao amor-próprio a refletir sobre elas.” O que podem os poemas? Eles são poemas, eles devem resistir. É por resistirem que nos impelem à reflexão e ao agir. Ainda que o ente poético se anuncie desolado, numa sinuca, sujeito ao falível e incapaz de mudar o destino coletivo, restam-lhe as formas de vida “outras” que são os poemas. No caso de Cristiano Moreira, a palavra é justa e o mote sincero, humanista, dádiva dirigida ao outro em nome de um encontro, que as soluções são e serão sempre partilhadas, ainda que, para encerrar também com Celan, um poema como dádiva seja a mensagem numa garrafa lançada ao mar. O muito próximo e o muito distante do que é o “dente de cachorro” e de como ele é grafado na capa “dentedecachorro” fazem jogo nesse tomar o poema como encontro, uma conversa que é também um distanciamento do eu. É em tal direção de minha leitura, que muito ainda teria a dizer de um livro tão enxuto, o poema “novena contra chumbo”:

uma novena traz a escuridão
noves fora: na mordaça o chumbo
nas vozes do país        desolação
rima com o levante, com o lodo

e com todos os lobos dentro da casa
importa o levante na voz, na estrada
ainda que tentem impedir, ainda que rouca
o eco dos tiros não pode calar a boca

importa seguir
o poema ainda é à prova de balas

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