A expressão “dente de cachorro”,
nos diz uma nota introdutória, é um erro tipográfico cuja marca é a introdução
de espaços exagerados entre palavras ou letras. Eu partiria daí na leitura do
livro, mas o título na capa me conduz ao contrário do espaçamento, pois a
expressão vem grafada sem os tais dentes: “dentedecachorro”. Espero encontrar
nos poemas uma negociação ou tensão entre o espaçamento e seu contrário, entre
o muito distante e o muito próximo. Distante parece ser a proposta poética de
Cristiano Moreira diante das referências mais imediatas na poesia
contemporânea. Primeiro que há um andamento dramático (enquanto gênero, drama,
e não como adjetivo para o exasperado), em alguns dos poemas, como nos longos “sinuca”
e “deserto, de resto”. São poemas que tematizam diálogos, íntimo (uma conversa
com o “pai”) e pressuroso (a remoer os golpes políticos recentes), como em “sinuca”,
e mais ritualizados, hieráticos, em “deserto, de resto”. O segundo
distanciamento decorre do primeiro, pois ao instituir a conversa como mote dos
poemas, Cristiano Moreira descarta a exposição de vísceras umbilicais, as
eternas autobiobibliografias de certa poesia cansativa e cansada que rema a favor
da corrente. A conversa, a instituição de vozes em contraponto, nada disso é
muito comum hoje. O que dá um ar adulto ao livro, outra diferença significativa
no mar hodierno de playgrounds. Uma conversa é um aperto de mão, aquele gesto
ao mesmo tempo próximo (de humanidade) e distante, polido, público, isto é, da
pólis. Cristiano Moreira dá a pista citando prosadores calejados, Osman Lins,
João Antônio. Também há um Flaubert evocado na “impressão justa”. De fato, não
há graça ou gratuidade nos poemas. Eles exigem uma firmeza pública, política, e
mesmo popular (por serem partilha do simples: a mesa de sinuca, o pife, a
palha). A ética dos poemas, ao mesmo tempo em que é denúncia, do golpe, da
repressão, da violência política, também é conversa olho no olho, como em “zezuíííno”,
que, sim, pode dar no seu reverso que é a morte. Cito do poema o trecho final:
zuzuíííno (assoviava o vento alongado)
viu a vaga no reflexo da lâmina
zezuíno olandino e olandino zezuíno
ambos fernandes estranho
estranho nem tanto
homo homini lupus
cara a cara
mano a mano
Encontro
nos poemas de Dente de cachorro uma atenção manual com o fazer poético. São
interlocuções (e que beleza pensar o “mano a mano” na condição de espelho e
também de interlocução de mãos), daí que recusem o empolado e o grandiloquente.
Não há nada de açucarado. Açucarados são os maus poemas, sabemos disso na
poética de um João Cabral de Melo Neto. Abel Barros Baptista pensou os poemas
de Melo Neto e a prosa de Graciliano Ramos sob a alcunha “agreste”. Penso em
algo assim ao ler o livro de Cristiano Moreira. Se em Baptista a noção de
agreste tem relação direta com o Nordeste, com a metonímia resultando em “materialista”,
penso que haja materialismo no Dente de cachorro, mas é um materialismo
estrutural (não figurativo, daí que eu rejeite a referência que o próprio
Cristiano cunhou na sua dedicatória à minha pessoa: “novena de imagens de um
presente adverso” – simplesmente não creio ser um livro de imagens), lógico. Eu
escrevi “atenção manual” pensando na atenção materialista ao fazer, na
modelagem do poético. Gosto muito do que escreveu Paul Celan na “Carta a Hans
Bender”, de 1960: “Só mãos verdadeiras escrevem poemas verdadeiros. Não vejo
nenhuma diferença de princípio entre um aperto de mão e um poema”. Outra
referência que trago da mesma carta de Celan é quando fala que “poemas são também
oferendas – oferendas àqueles que são atentos. Oferendas que transportam um
destino.” As oferendas do livro de Cristiano Moreira são sutis (servem aos “que
são atentos”). Falam sob o peso da morte, da infância, do desvalimento, do que
não passa de palha, do que é o popular, ao rés-do-chão. Falam de tais
instâncias a partir da lógica do jogo de salão, numa conversa que, mesmo não
gritada, é atravessada pelos nomes que as coisas de fato têm: “estado de exceção”,
“cacetete”, “bala de borracha”, “golpe”, “o rosnar do camburão”, “embora o país
claudique”. Não falam violentamente do já que é violento. A dicção se mantém
polida, numa eloquência clássica (daí a “impressão justa” flaubertiana). Pascal,
nos Pensamentos, define assim a eloquência: “A eloquência é a arte de
dizer as coisas de maneira: 1º que aqueles a quem falamos possam entendê-las
sem dificuldade e com prazer; 2º que nelas se sintam interessados, a ponto de
serem impelidos mais facilmente ao amor-próprio a refletir sobre elas.” O que
podem os poemas? Eles são poemas, eles devem resistir. É por resistirem que nos
impelem à reflexão e ao agir. Ainda que o ente poético se anuncie desolado,
numa sinuca, sujeito ao falível e incapaz de mudar o destino coletivo,
restam-lhe as formas de vida “outras” que são os poemas. No caso de Cristiano
Moreira, a palavra é justa e o mote sincero, humanista, dádiva dirigida ao
outro em nome de um encontro, que as soluções são e serão sempre partilhadas,
ainda que, para encerrar também com Celan, um poema como dádiva seja a mensagem
numa garrafa lançada ao mar. O muito próximo e o muito distante do que é o “dente
de cachorro” e de como ele é grafado na capa “dentedecachorro” fazem jogo nesse
tomar o poema como encontro, uma conversa que é também um distanciamento do eu.
É em tal direção de minha leitura, que muito ainda teria a dizer de um livro
tão enxuto, o poema “novena contra chumbo”:
uma novena traz a escuridão
noves fora: na mordaça o chumbo
nas vozes do país desolação
rima com o levante, com o lodo
e com todos os lobos dentro da casa
importa o levante na voz, na estrada
ainda que tentem impedir, ainda que rouca
o eco dos tiros não pode calar a boca
importa seguir
o poema ainda é à prova de balas
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