segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Quando vieres ver um banzo cor de fogo, de Nina Rizzi. (São Paulo: Patuá, 2017)


Em 2017, Ano 463 da Deglutição do Bispo Sardinha, Nina Rizzi teve publicado pela Patuá (“livros são amuletos”, nunca talvez tanto quanto no livro de Rizzi), o seu Quando vieres ver um banzo cor de fogo. Após um poema prefacial, pode-se dizer que é com “ninadí ricy” que o livro é inaugurado. Ali já se insinua a poética decolonial que orienta os textos da obra. Ecoa a deglutição do Bispo e a resistência nomeada por Oswald de Andrade, no Manifesto Antropófago, como a “peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo”.

ninadí ricy

eu já fui u'a índia

falava co fogo co'as águas plantas y ventanias
coisas da terra e da boca do céu

dançava me banhava nuinha co'a maloca toda

mai'bão memo
era cumê homi branco

Está em jogo, o tempo todo no livro, a batalha por um falar selvagem (“deixai falar o animal”). No Catatau, de Paulo Leminski, para citar só um trecho, o homem racional Cartesius é invadido por aquele falar animal (“tenho assomos de fera”). A operação no livro de Nina Rizzi, porém, vem de outra direção, talvez pela sobreposição de fera a fera. Não se animaliza nada, na medida em que já se parte daquela condição: “o animal que logo sou” (Jacques Derrida). Já se parte do lugar-Iauaretê. Tanto assim que Rizzi, na “primeira poema” (para usar a estrutura da poeta, que feminiza o poema, compondo a própria differánce, estrutura que usaremos daqui em diante neste texto), postula uma condição que já vem do passado, de quando foi índia. Um livro assim exige algo da crítica que certamente não alcançarei aqui. O desafio de tal projeto poético foi enunciado por Jacques Derrida, no texto supracitado. Para o filósofo, a liberação de animots (algo como animais-palavras) tinha na recusa da fábula sua primeira condição. Cito o trecho de Derrida: “Como acolher ou liberar tantos ANIMOTS em mim? Em mim, para mim, como eu? Isto teria dado ao mesmo tempo mais e menos que um bestiário. Seria preciso sobretudo evitar a fábula. A afabulação, conhecemos sua história, permanece um amansamento antropomórfico, um assujeitamento moralizador, uma domesticação. Sempre um discurso do homem; sobre o homem; efetivamente sobre a animalidade do homem, mas para o homem, e no homem.” Aí o que se pode pensar como uma das questões a se fazer ao livro de poemas de Nina Rizzi. Por exemplo: o quanto a condição prosaica de parte das poemas não reduz o falar animal ao discurso assujeitado. É só uma dúvida, até mesmo por talvez não haver sujeito ali, o que discutirei mais abaixo.
Antes, é bom lembrar que a busca do asselvajado tem uma tradição literária, o que não significa origem, naturalmente. Está no desregramento dos sentidos das estações no inferno, está no surrealismo, na poética beatnik, na etnopoesia. Há um quê de escrita em transe, formas do êxtase das transas, algo ali que me conduziu ao Néstor Perlongher. Encontro muito da alucinação sintática do argentino nas poemas de Rizzi. O que, já adiantando a discussão do sujeito ou de sua ausência, deixa a questão do sujeito lírico em dimensão quase oitocentista. Em Rizzi são poemas vocativos, interpelativos, dirigidos por pronomes de tratamento: você, tu, “sua boceta”. Quem fala? Perlongher resolvia o problema com o apagamento: “Flotamos, no tenemos nombre”.  Em Rizzi, corre-se permanentemente o risco do sujeito, mas é possível porém falarmos numa ausência, definida por outrem como tendo “olhos de quem nunca existiu”, num corpo poroso, atravessado (“uma voz me atravessa os olhos, a garganta”), a piscina dos olhos e as outras poças cristalinas, a boca, a vagina. Suas convocações, você, tu, “a mulher que deita comigo”, contrapõem ausência a ausência, na medida em que o diálogo é monologado. O procedimento está em muito da poesia de Hilda Hilst, como em Da morte. Odes mínimas. Hilst conjuga o gozo com o outro à condição de poeta e introduz um elemento definidor pela ausência: a morte. Na ode XXXII, de Hilst: “Por que me fiz poeta?/Porque tu, morte, minha irmã,/No instante, no centro/De tudo o que vejo.//No mais que perfeito/No veio, no gozo/Colada entre mim e o outro.” A morte é o que se vê, e sempre colada causando limes entre os corpos. Já em Ana Cristina Cesar, também pródiga no lirismo vocativo (intitulando de “A teus pés” uma de suas obras), a questão seria bem outra. Não há nela a busca do selvagem. Marcos Siscar fala numa “poética da interrupção” que, se evita a lucidez apolínea, ainda assim não instaura o fluxo espontâneo do corpo e suas experiências. Interrompe-se, por deslocamento, nos poemas de Cesar, a própria biografia.
Com Nina Rizzi talvez se dê o mesmo, mas por outros caminhos de deslocamento. Destaco as operações sobre a língua, pedras no caminho do mero retrato mimético, da mera biografia de alcova. A transa que às vezes pode ser parafraseada nos poemas vem quase sempre sob uma forma inconformada (que não é a da rebeldia vazia, entretanto). Acontece na já mencionada subversão de gênero do poema (“amar a poema”, “nomear a poema/uma mulher e a poema possível”, “há uma poema que diz” etc.). Acontece também nos barbarismos e estratégias oralizantes tropicalistas decoloniais (mas com uma doçura que lembra o porquinho da índia do Bandeira):

moenda

di dia mim pônho a muê
di garapa i di melaço
vô num braço vô cu otro
mai'm noitinha é ocê;
qui mim mói todinha

Também na crioulização da língua, atravessada de hispanidade, referências índias e inventalínguas. Um gozo da língua em trânsito, como no poema a seguir:

toré na cidade cheia de olhos

umas horas y listo
quedas para o alto
um rio pra narciso

uns lugares sem olhos y
me exorbita toda sangre
- - até a pura água negra

fios brancos encarnados esparramados
pela casaoca – y canta a casaoca óóca
o coyote ri! é um selvagem y uiva y ri

Penso que Rizzi consegue fazer a crítica das poéticas brasileiras da razão que, se tiveram bons resultados em João Cabral de Melo Neto ou na poesia concreta, por outro lado saturaram muito da poesia dos anos oitenta. Não é algo programado no livro, o livro de Nina não se faz em função exclusivamente de negação do que também poderíamos chamar de positivismo da poesia brasileira, mas o que é mais interessante é que o desfazer daquela herança não se dá na exposição de intimidades biográficas não mediadas, típicas da poesia de chororô romântico. É com o pan (“o desejo-mundo todo”) e o trans da sexualidade que as poemas do livro assumem seu lugar. Um lugar que não apenas é conduzido pelo desejo como atinge mesmo certa melancolia do silêncio (“que importa metafísica/ranger de dentes/se eu durmo o dia inteiro”). Uma poema define melhor o que tento dizer sem conseguir:

roteiro pra tanto más

1
não guardar nenhum livro
desgarrar-me do eu-humano

- poupar os enfins

2
descer o sentido corpo contra qualquer razão,
evitar até o alzheimer todas as palavras:
...
me despregar de toda composição
e só o S.elvagem

Em 2017, ano de Quando vieres ver um banzo cor de fogo, também comemorávamos os 47 anos da edição de Banzo, saudade negra, de Oliveira Silveira, poeta que escreveu “Banzo preto não é saudade prata./Saudade dói e maltrata/banzo rói, carcome e mata.” Os poemas de Nina Rizzi, porém, colorem diferentemente o banzo. Há uma positividade afirmativa (a cor de fogo) no banzo da poeta. Poemas que desejam e tematizam a boa foda e o encantamento desejante, em nome do que, no Manifesto Antropófago, vinha como “a existência palpável da vida”, e na promessa de que “a alegria é a prova dos nove”. Como escreve Nina Rizzi, “é preciso politizar a ferida”, o que se faz com a reversão de gênero da poema, com o voo sem escalas pelos jardins selvagens da mulher que já foi índia, que é negra, e em palavras de abysmo que só dizem amor. Um livro que em cada um dos espaços e caracteres convoca corajosamente o amor dos corpos em tempos de projetos obscurantistas de governo que falam em abstinência sexual. Um livro para nos “virar os avessos”.

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