Em 2017, Ano 463 da Deglutição do
Bispo Sardinha, Nina Rizzi teve publicado pela Patuá (“livros são amuletos”,
nunca talvez tanto quanto no livro de Rizzi), o seu Quando vieres ver um
banzo cor de fogo. Após um poema prefacial, pode-se dizer que é com “ninadí
ricy” que o livro é inaugurado. Ali já se insinua a poética decolonial que
orienta os textos da obra. Ecoa a deglutição do Bispo e a resistência nomeada
por Oswald de Andrade, no Manifesto Antropófago, como a “peste dos
chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo”.
ninadí ricy
eu já fui u'a índia
falava co fogo co'as águas
plantas y ventanias
coisas da terra e da boca do céu
dançava me banhava nuinha co'a
maloca toda
mai'bão memo
era cumê homi branco
Está em jogo, o tempo todo no
livro, a batalha por um falar selvagem (“deixai falar o animal”). No Catatau,
de Paulo Leminski, para citar só um trecho, o homem racional Cartesius é
invadido por aquele falar animal (“tenho assomos de fera”). A operação no livro
de Nina Rizzi, porém, vem de outra direção, talvez pela sobreposição de fera a
fera. Não se animaliza nada, na medida em que já se parte daquela condição: “o
animal que logo sou” (Jacques Derrida). Já se parte do lugar-Iauaretê. Tanto
assim que Rizzi, na “primeira poema” (para usar a estrutura da poeta, que feminiza
o poema, compondo a própria differánce, estrutura que usaremos daqui em
diante neste texto), postula uma condição que já vem do passado, de quando foi
índia. Um livro assim exige algo da crítica que certamente não alcançarei aqui.
O desafio de tal projeto poético foi enunciado por Jacques Derrida, no texto
supracitado. Para o filósofo, a liberação de animots (algo como animais-palavras)
tinha na recusa da fábula sua primeira condição. Cito o trecho de Derrida: “Como
acolher ou liberar tantos ANIMOTS em mim? Em mim, para mim, como eu? Isto teria
dado ao mesmo tempo mais e menos que um bestiário. Seria preciso sobretudo
evitar a fábula. A afabulação, conhecemos sua história, permanece um
amansamento antropomórfico, um assujeitamento moralizador, uma domesticação.
Sempre um discurso do homem; sobre o homem; efetivamente sobre a animalidade do
homem, mas para o homem, e no homem.” Aí o que se pode pensar como uma das
questões a se fazer ao livro de poemas de Nina Rizzi. Por exemplo: o quanto a
condição prosaica de parte das poemas não reduz o falar animal ao discurso
assujeitado. É só uma dúvida, até mesmo por talvez não haver sujeito ali, o que
discutirei mais abaixo.
Antes, é bom lembrar que a busca
do asselvajado tem uma tradição literária, o que não significa origem,
naturalmente. Está no desregramento dos sentidos das estações no inferno, está
no surrealismo, na poética beatnik, na etnopoesia. Há um quê de escrita em
transe, formas do êxtase das transas, algo ali que me conduziu ao Néstor
Perlongher. Encontro muito da alucinação sintática do argentino nas poemas de
Rizzi. O que, já adiantando a discussão do sujeito ou de sua ausência, deixa a
questão do sujeito lírico em dimensão quase oitocentista. Em Rizzi são poemas
vocativos, interpelativos, dirigidos por pronomes de tratamento: você, tu, “sua
boceta”. Quem fala? Perlongher resolvia o problema com o apagamento: “Flotamos,
no tenemos nombre”. Em Rizzi, corre-se
permanentemente o risco do sujeito, mas é possível porém falarmos numa
ausência, definida por outrem como tendo “olhos de quem nunca existiu”, num
corpo poroso, atravessado (“uma voz me atravessa os olhos, a garganta”), a
piscina dos olhos e as outras poças cristalinas, a boca, a vagina. Suas convocações,
você, tu, “a mulher que deita comigo”, contrapõem ausência a ausência, na
medida em que o diálogo é monologado. O procedimento está em muito da poesia de
Hilda Hilst, como em Da morte. Odes mínimas. Hilst conjuga o gozo com o
outro à condição de poeta e introduz um elemento definidor pela ausência: a
morte. Na ode XXXII, de Hilst: “Por que me fiz poeta?/Porque tu, morte, minha
irmã,/No instante, no centro/De tudo o que vejo.//No mais que perfeito/No veio,
no gozo/Colada entre mim e o outro.” A morte é o que se vê, e sempre colada
causando limes entre os corpos. Já em Ana Cristina Cesar, também pródiga no
lirismo vocativo (intitulando de “A teus pés” uma de suas obras), a questão
seria bem outra. Não há nela a busca do selvagem. Marcos Siscar fala numa “poética
da interrupção” que, se evita a lucidez apolínea, ainda assim não instaura o
fluxo espontâneo do corpo e suas experiências. Interrompe-se, por deslocamento,
nos poemas de Cesar, a própria biografia.
Com Nina Rizzi talvez se dê o
mesmo, mas por outros caminhos de deslocamento. Destaco as operações sobre a
língua, pedras no caminho do mero retrato mimético, da mera biografia de alcova.
A transa que às vezes pode ser parafraseada nos poemas vem quase sempre sob uma
forma inconformada (que não é a da rebeldia vazia, entretanto). Acontece na já
mencionada subversão de gênero do poema (“amar a poema”, “nomear a poema/uma
mulher e a poema possível”, “há uma poema que diz” etc.). Acontece também nos
barbarismos e estratégias oralizantes tropicalistas decoloniais (mas com uma doçura
que lembra o porquinho da índia do Bandeira):
moenda
di dia mim pônho a muê
di garapa i di melaço
vô num braço vô cu otro
mai'm noitinha é ocê;
qui mim mói todinha
Também na crioulização da língua,
atravessada de hispanidade, referências índias e inventalínguas. Um gozo da
língua em trânsito, como no poema a seguir:
toré na cidade cheia de olhos
umas horas y listo
quedas para o alto
um rio pra narciso
uns lugares sem olhos y
me exorbita toda sangre
- - até a pura água negra
fios brancos encarnados
esparramados
pela casaoca – y canta a casaoca
óóca
o coyote ri! é um selvagem y uiva
y ri
Penso que Rizzi consegue fazer a
crítica das poéticas brasileiras da razão que, se tiveram bons resultados em
João Cabral de Melo Neto ou na poesia concreta, por outro lado saturaram muito
da poesia dos anos oitenta. Não é algo programado no livro, o livro de Nina não
se faz em função exclusivamente de negação do que também poderíamos chamar de
positivismo da poesia brasileira, mas o que é mais interessante é que o
desfazer daquela herança não se dá na exposição de intimidades biográficas não
mediadas, típicas da poesia de chororô romântico. É com o pan (“o desejo-mundo
todo”) e o trans da sexualidade que as poemas do livro assumem seu lugar. Um lugar
que não apenas é conduzido pelo desejo como atinge mesmo certa melancolia do
silêncio (“que importa metafísica/ranger de dentes/se eu durmo o dia inteiro”).
Uma poema define melhor o que tento dizer sem conseguir:
roteiro pra tanto más
1
não guardar nenhum livro
desgarrar-me do eu-humano
- poupar os enfins
2
descer o sentido corpo contra
qualquer razão,
evitar até o alzheimer todas as
palavras:
...
me despregar de toda composição
e só o S.elvagem
Em 2017, ano de Quando vieres
ver um banzo cor de fogo, também comemorávamos os 47 anos da edição de Banzo,
saudade negra, de Oliveira Silveira, poeta que escreveu “Banzo preto não é
saudade prata./Saudade dói e maltrata/banzo rói, carcome e mata.” Os poemas de
Nina Rizzi, porém, colorem diferentemente o banzo. Há uma positividade
afirmativa (a cor de fogo) no banzo da poeta. Poemas que desejam e tematizam a
boa foda e o encantamento desejante, em nome do que, no Manifesto Antropófago,
vinha como “a existência palpável da vida”, e na promessa de que “a alegria é a
prova dos nove”. Como escreve Nina Rizzi, “é preciso
politizar a ferida”, o que se faz com a reversão de gênero da poema, com o voo
sem escalas pelos jardins selvagens da mulher que já foi índia, que é negra, e em
palavras de abysmo que só dizem amor. Um livro que em cada um dos espaços e
caracteres convoca corajosamente o amor dos corpos em tempos de projetos obscurantistas
de governo que falam em abstinência sexual. Um livro para nos “virar os avessos”.
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