Duas características literárias são mais evidentes em Negro
disfarce, “noveleta” de Oswaldo Camargo (Ciclo Contínuo Editorial, 2020). Há
uma conformação fragmentada no conjunto textual, o que tem por homologia estrutural
uma dinâmica também fragmentada na dinâmica memorialista. Ainda que haja uma
marcação de origem, quando a personagem narradora Benedito (em assumido papel
autoficcional da trajetória biográfica de Oswaldo Camargo) engaja-se na
rememoração dos tempos de juventude vividos na comunidade negra de São Paulo, e
em particular na ACN (Associação Cultural do Negro), a estrutura narrativa se
compõe de fragmentos de encontros naquele ambiente cultural da população negra do
fim dos anos 1950, evitando amarrar a novela ao final num todo inconsútil. A
segunda característica literária diz respeito a uma postura cautelosa do narrador,
na medida em que articula diferentes posições intelectuais negras (devidas,
também, a diferentes trajetórias biográficas) sem delas exaurir conclusões
judicativas.
As duas características levantadas aqui apontam para uma
espécie de estarrecimento (ou impossibilidade) diante de posições mais
essencialistas quanto à identidade negra operada pelo resgate memorialista, o
que se contrapõe nitidamente a uma dimensão jornalística, eventual, do texto.
De fato, Negro disfarce é um livro que, na sua curta dimensão, apresenta
inúmeros nomes do movimento negro em São Paulo, destacando, por exemplo, as
associações, publicações e intelectuais que o compuseram (a exemplo de Carlos
de Assumpção, Leonardo Bravo e Nair Araújo). O contraponto da dimensão factual,
histórica, que parece almejar a uma dimensão de totalidade – e, de resto,
também são citados inúmeras outras personalidades da cultura negra mais
anterior, como Cruz e Sousa, Machado de Assis, Francisco Otaviano etc. –,
entretanto, não chega a ofuscar aquelas duas características literárias que nos
parecem mais interessantes que tal resgate histórico. A incompletude da
narrativa e a ausência judicativa são aspectos literários que se contrapõem à
pretensão histórica, conferindo valor estético ao livro.
A narrativa percorre itinerários de três personagens.
Benedito, o narrador alter ego de Camargo, jovem de 19 anos que frequenta a
vida cultural da ACN; Deodato, um jovem personagem de contraponto, pois questiona
o encantamento dos salões culturais negros; Dr. Brasílio, já idoso e
bem-sucedido. O debate central se dá entre Benedito e Deodato, pois enquanto o
primeiro aparece como deslumbrado com a vida cultural da ACN, o segundo a
questiona a partir de outras instâncias culturais, não-negras, como a do livro
sobre a vida de Kaspar Hauser. Em torno das comemorações dos setenta anos da
Abolição, as personagens se posicionam em polos opostos, um no da “Beleza”,
outro no da “Verdade”. Para Deodato, órfão que foi adotado por uma família rica
branca, não há beleza naquelas comemorações, pois a situação dos negros no
Brasil não foi alterada pela Abolição e tampouco a vida cultural dos
intelectuais negros expressaria a verdade do negro drama da maioria da população.
Seria, talvez, na figura bastante excepcional da riqueza de Dr. Brasílio que se
configuraria a irrealidade daqueles salões literários e daquelas comemorações.
No entanto, o livro, enquanto obra aberta, evita tais asserções explícitas,
optando por lançar os dados para que nossa leitura os reconfigure.
O que gera a narrativa é o estarrecimento de Benedito, já um
idoso, com a figura de Deodato. É uma busca, portanto, de um entendimento (sempre
fracassado) sobre a postura identitária da personagem que questiona a histórica
coletiva negra institucionalizada em associações como a ACN. Na metade do
livro, há uma concentração mais acurada na trajetória biográfica de Deodato,
mas através de um engenhoso recurso de narrativa indireta. Benedito retorna a
Bragança Paulista e, a partir da narrativa oral da idosa Nhá Flor, conhece
possíveis motivos para a estruturação identitária diferenciada de Deodato. O retorno
à oralidade na narrativa de Nhá Flor é o único momento linear do livro, contrastando
com a configuração fragmentada da memória escrita de Oswaldo Camargo. O livro
também traz outro interessante contraste paratextual, apresentando-nos
sugestivas ilustrações de João Pinheiro, o que acentua o caráter da subjetividade
da memória e, ao final, algumas páginas com referências históricas factuais,
objetivas, das personalidades citadas na narrativa. A noção de “disfarce”,
presente no título da novela e na ilustração da capa, remete-nos, por sua vez,
ao contraste fanoniano de Pele negra, máscaras brancas. A riqueza da
obra, pois, concentra-se nesses tantos contrapontos, que vão de elementos
paratextuais, passam pela estrutura narrativa, com o jogo entre fragmento e completude, entre subjetividade e factualidade, entre memória e história, e ganham relevância nos debates
entre Benedito e Deodato.
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