Eduardo Sinkevisque, em Poemas da Branca, novamente
nos oferece um artifício de leitura: a criação de um mundo íntimo para nosso voyeurismo. Já
acontecia no livro Mar dos dias (Árvore Digital, 2018), livro mais
experimental por situar-se em aberturas aos bordejos de gênero, “narrativas,
mas poemas; narrativas, mas cartas”. O mundo íntimo dos textos de Sinkevisque,
na verdade, são dois, e leio-os nos dois livros. O mais construído (artificial
no bom sentido do termo) é o da relação amorosa: há sempre uma encenação em
minueto de insinuação erótica. O outro mundo íntimo é o do narrador lírico, da
função-autor, e diz respeito a um nome entre aspas, "Eduardo Sinkevisque", que
escreve-lê-escreve. Paródia, intertextualidade, heterônimos, máscaras, comunicar-se
por comunicações alheias, está tudo ali. Os dois mundos íntimos, veja-se, são a
rigor distanciamentos discretos. A paixão é cifrada. As máscaras estilhaçam o
eu. Ocorre que funcionam na lógica do despojamento. A tensão ocorre, então,
entre artifícios (os dois mundos íntimos, o da paixão e o do eu) e um despojamento
formal, eu diria, “intencional, mas natural”. Ao abdicar da pose hermética (“intencional”),
Sinkevisque aposta num fluxo sem travas, amigável e civil, na relação com quem
o lê (“mas natural”).
Acaso são estas
as baladas
modernas
aonde dançavas
os anos gostosos?
Berlin Clube? Madame
Satã?
Cupido sobre ti
e sobre mim;
Cupido sobre Berlin
Clube?
É este o Amor
nos anos 2000
todo impulso
e repulsa;
fascínio e medo;
antecipação do fim,
prolongamento
da despedida?
Antidepressivos?
Antipsicóticos,
ópios, éter,
analgésicos?
Medo do enxame
de abelhas?
Medo da dor?
Qual delas
te picou?
A mim me picou?
São estas baladas
são estes; mas eu
o mesmo não sou.
Bianca, tu danças?
Espera, que vou.
No Berlin Clube eu vou.
No Berlin Clube não
vais;
a não ser
quando vou.
Cupido voou.
Cupido não sou.
Mordido estou.
Flechado não estou.
Poemas da Branca sobrepõe duas séries de poemas. Há
os 58 poemas numerados, todos eles desembaraçados (alheios aos modismos herméticos)
e dedicados à composição de uma nova lira paulistana na qual circulam os
moderninhos de uma São Paulo já pretérita e a rediviva Branca, personagem
espelhada na Marília de Dirceu, mas também na Capitu. A outra série é a dos
Intervalos, poemas dedicados/em diálogo com uma infinidade de poéticas, de Orides
Fontela a Drummond, de Mário de Andrade a Clarice Lispector. O belíssimo posfácio de Ana Chiara destaca que esses Intervalos trazem um respiro ao livro, em particular no funcionamento coral, comentando a narrativa do desencontro amoroso. Em jogo, uma dedicação suave à escritura, pois à superfície e mantendo a “delegação
poética” (como lida por Antonio Candido na análise de Tomás Antônio Gonzaga). Assemelha-se
muitas vezes à composição de um diário do fracasso amoroso, discutindo, como
aponta o posfácio de Ana Chiara, os limites do lirismo romântico.
O tom narrativo do conjunto se impõe pelo apreço à clareza,
o que certamente entra em tensão com o apego aos trocadilhos, quando o distanciamento
cultivado com leveza é contaminado pelo jogo verbal condescendente. Também há o
contraponto, consciente, entre as máscaras adotadas e um insistente eu que
intervém, comenta e se define e redefine. É possível ler aí um desencontro
necessário entre afastamento (as máscaras) e discurso de si. Gostei do livro
por essas tensões, apontando um caráter irresolvido na poética de Sinkevisque. Como
numa reescrita de Gonzaga, convivem o controle e a confissão.
De outro lado, atraiu-me imensamente o rebaixamento (patético
no bom sentido da palavra) da narrativa amorosa. Lembrei do protagonista David
Lurie, no romance Desonra, de J. M. Coetzee. No violento romance
sul-africano, o professor David Lurie quer compor uma ópera inspirado nas passagens
finais da vida do poeta Byron. À medida que vai se desconstruindo, vivenciando
a violência social e racial, Lurie vai também rebaixando seus objetivos. Ao fim
do romance, em vez da ópera grandiosa sobre Byron, com árias complicadas, Lurie
se contenta com canções simples dedilhadas num velho banjo e sob a companhia de
um cão moribundo. Não só Byron passa a
ser uma presença fantasmática, como o protagonismo do musical passa a ser de
Teresa, abandonada pelo poeta inglês. O projeto artístico se africaniza,
pode-se dizer. O mesmo ocorre no livro de Sinkevisque. A diferença, porém, é
que não há o trágico a emoldurar o percurso do eu lírico. Em Poemas da
Branca, tudo acontece ao rés-do-chão, como árias leves compostas num simples violão. Algo como no Oswald de Andrade em “Cântico
dos cânticos para flauta e violão”, por exemplo quando Oswald escreve “Para teu
corpo/Construirei o dossel/Abrirei a porta submissa/Ligarei o rádio/Amassarei o
pão”. Eduardo Sinkevisque mostra que a lição de delegação poética de Gonzaga
(falar como pastor e não como erudito, o que também ocorre no poeta do
Pau-Brasil) é importante para estabelecer de modo despojado a lírica paulistana
dos inferninhos noturnos da grande cidade cinza.
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