terça-feira, 7 de setembro de 2021

A extinção da cinza, de Lino Mukurruza (Gala-Gala Edições, Maputo, 2021)

Livros como A extinção da cinza ajudam na recordação de uma exigência que nunca deveria ser negligenciada: cabe à crítica uma leitura que se recuse à domesticação da poesia. Para que pudessem articular-se em analogia aos poemas, os mapeamentos regulares de qualquer epistemologia precisariam ser imantados pela natureza oracular dos textos de Lino Mukurruza. Meu posfácio, assim, busca meios para não se assemelhar à pacificação judicativa-normativa. Importa-me evitar perspectivas que anulem a operação poética de extinção (fim) das cinzas (fim). A grandiosa e séria operação de fim do fim. O poeta não duvida das possibilidades de sentidos minerais, opacos ou fosforescentes. Lamenta, afirma e aponta, mas não duvida nunca, sequer questiona. Estamos no plano da linguagem não parafraseável. Aquilo que talvez melhor defina o poético: o não parafraseável. Sim, aqui o mimético jaz estilhaçado.

Podemos partir de uma duplicidade fundadora da poesia moçambicana, sugerida por muitos dos seus intérpretes: uma vertente intimista, outra vertente social. Tenderíamos, em tal domesticação catalogadora, a situar os poemas de A extinção da cinza naquela corrente dos afetos íntimos. Lino Mukurruza, porém, nos ajuda a desfazer aquelas caixinhas acadêmicas de enquadrar poesia. Há, no andamento de fundo dos poemas, a “cidade do corpo”, um corpo atravessado por seu tempo, sua fuligem de esquecimento e memória. Os procedimentos dispersivos dos sentidos corroem a mera perspectiva da interiorização, que exigiria ao menos alguma identidade nomeável.

A poética, abstrata e de conjugação em variados arranjos de elementos simbólicos por inespecificidade, invalida pretensões à verdade. Corpo, pássaro, sombra, dor, cinza, lágrima, entre outros, são substantivos destituídos de especificidade semântica pelo arranjo sintático, o que evita o mais óbvio: o aprisionamento identitário, o que não implica em ausência de voz enunciadora. De outro lado, há um tom orientador, autognose e cosmovisão, enredado no luto. Por exemplo, no título da segunda parte: “O luto na extinção da sombra”. Sombra é um outro que é um mesmo. Pranteia-se o fim do fim no título do livro e o fim do outro que é um mesmo na segunda seção de poemas. Como se percebe, a operação é a da negatividade, validando mesmo a indecidibilidade, como em “o labirinto ou abismo é o húmus na labareda”. Cabe a quem lê aceitar verdades tão longínquas do rés-do-chão.  

O tom de exéquia, ele sim, é social e histórico (“é uma época amarga”), o que se evidencia melhor na terceira seção, “Silêncio em estado líquido”. Há ali uma saída para a luz, em textos mais alongados que, justamente por negarem as constrições de ritmo, detalham melhor a operação técnica de montagem dos poemas. A parataxe, justaposição de peças (vocábulos, versos) alheia à coordenação de conjunto, deixa nítida a poética “construída”, paradoxo em poeta tão inspirado. O visionarismo, como mostraram Arthur Rimbaud ou Néstor Perlongher, não implica necessariamente em poesia de confissão. É o caso de Lino Mukurruza. A operação é de descentramento, com o poeta “sendo falado” pela linguagem, em vez de se posicionar de fora dela. Há êxtase, mas o da textura poética sinestésica: “cores da água no rosto”.

Ler A extinção da cinza, como estamos argumentando, passa por uma abertura ao indizível do desregramento dos sentidos. O indizível é a ronda da sombra, do luto, da cinza, da morte. Não há propriamente redenção, exceto pelos vislumbres de memória: “cresci ouvindo o grito dos vagões para além das buzinadelas no Chuala”. Mukurruza, como acima proposto, deixa no chão a pretensão segmentadora da poesia moçambicana entre intimista ou social. A liberdade, motor de sua operação de montagem, recebe no livro o devido respeito, daí também certo tom hierático. Evidencia-se a construção e inutiliza-se a imitação nas derivas e sobreposições. É assim muito nítida no livro a existência de outra lucidez, a que arranja por constelação o caos, a que agencia fragmentos sempre vibráteis, mesmo se o tom é fúnebre e na paleta predomine o gris.

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