Livros como A extinção da cinza ajudam na recordação de uma exigência que nunca deveria ser negligenciada: cabe à crítica uma leitura que se recuse à domesticação da poesia. Para que pudessem articular-se em analogia aos poemas, os mapeamentos regulares de qualquer epistemologia precisariam ser imantados pela natureza oracular dos textos de Lino Mukurruza. Meu posfácio, assim, busca meios para não se assemelhar à pacificação judicativa-normativa. Importa-me evitar perspectivas que anulem a operação poética de extinção (fim) das cinzas (fim). A grandiosa e séria operação de fim do fim. O poeta não duvida das possibilidades de sentidos minerais, opacos ou fosforescentes. Lamenta, afirma e aponta, mas não duvida nunca, sequer questiona. Estamos no plano da linguagem não parafraseável. Aquilo que talvez melhor defina o poético: o não parafraseável. Sim, aqui o mimético jaz estilhaçado.
Podemos partir de uma duplicidade fundadora da poesia
moçambicana, sugerida por muitos dos seus intérpretes: uma vertente intimista,
outra vertente social. Tenderíamos, em tal domesticação catalogadora, a situar
os poemas de A extinção da cinza naquela corrente dos afetos íntimos. Lino
Mukurruza, porém, nos ajuda a desfazer aquelas caixinhas acadêmicas de
enquadrar poesia. Há, no andamento de fundo dos poemas, a “cidade do corpo”, um
corpo atravessado por seu tempo, sua fuligem de esquecimento e memória. Os
procedimentos dispersivos dos sentidos corroem a mera perspectiva da
interiorização, que exigiria ao menos alguma identidade nomeável.
A poética, abstrata e de conjugação em variados arranjos de
elementos simbólicos por inespecificidade, invalida pretensões à verdade.
Corpo, pássaro, sombra, dor, cinza, lágrima, entre outros, são substantivos
destituídos de especificidade semântica pelo arranjo sintático, o que evita o
mais óbvio: o aprisionamento identitário, o que não implica em ausência de voz
enunciadora. De outro lado, há um tom orientador, autognose e cosmovisão,
enredado no luto. Por exemplo, no título da segunda parte: “O luto na extinção
da sombra”. Sombra é um outro que é um mesmo. Pranteia-se o fim do fim no
título do livro e o fim do outro que é um mesmo na segunda seção de poemas.
Como se percebe, a operação é a da negatividade, validando mesmo a
indecidibilidade, como em “o labirinto ou abismo é o húmus na labareda”. Cabe a
quem lê aceitar verdades tão longínquas do rés-do-chão.
O tom de exéquia, ele sim, é social e histórico (“é uma
época amarga”), o que se evidencia melhor na terceira seção, “Silêncio em
estado líquido”. Há ali uma saída para a luz, em textos mais alongados que,
justamente por negarem as constrições de ritmo, detalham melhor a operação
técnica de montagem dos poemas. A parataxe, justaposição de peças (vocábulos,
versos) alheia à coordenação de conjunto, deixa nítida a poética “construída”,
paradoxo em poeta tão inspirado. O visionarismo, como mostraram Arthur Rimbaud ou
Néstor Perlongher, não implica necessariamente em poesia de confissão. É o caso
de Lino Mukurruza. A operação é de descentramento, com o poeta “sendo falado”
pela linguagem, em vez de se posicionar de fora dela. Há êxtase, mas o da
textura poética sinestésica: “cores da água no rosto”.
Ler A extinção da cinza, como estamos argumentando,
passa por uma abertura ao indizível do desregramento dos sentidos. O indizível
é a ronda da sombra, do luto, da cinza, da morte. Não há propriamente redenção,
exceto pelos vislumbres de memória: “cresci ouvindo o grito dos vagões para
além das buzinadelas no Chuala”. Mukurruza, como acima proposto, deixa no chão
a pretensão segmentadora da poesia moçambicana entre intimista ou social. A
liberdade, motor de sua operação de montagem, recebe no livro o devido
respeito, daí também certo tom hierático. Evidencia-se a construção e
inutiliza-se a imitação nas derivas e sobreposições. É assim muito nítida no
livro a existência de outra lucidez, a que arranja por constelação o caos, a
que agencia fragmentos sempre vibráteis, mesmo se o tom é fúnebre e na paleta
predomine o gris.
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