Trabalhos do corpo e outros poemas físicos (2007) nos encanta de início por uma voz.
Alguém corporal fala nos poemas, uma história se insinua, ainda que desfeita sempre, ou
surpreendida a discursividade na própria irrupção poética, usualmente pela
imagem: “posto pertencer sempre ao azul-metálico\& atravessar desertos a
seco”, “bagos de um sonho sem retorno”. O fato de estar no final dos poemas o
desfazimento de narrativas insinuadas, também nos conduz à voz, ao fecho de um
argumento ou de uma viagem. Em Mundaneidade,
dedicado a Waly Salomão, poeta de um livro (de vários) chamado justamente Lábia (o que nos confirma a acentuação
do físico, de poemas enquanto discursos-do-corpo-no-corpo-do-mundo, no
procedimento estético de Sandro Ornellas), o corpo é o do gozo-desgosto na
carne do mundo: o poeta é um homem na mesma esponja da cidade, das culturas das
gentes. Um outro procedimento que nos orienta para uma concepção
discursivo-oralizante no livro está na reiteração, como em Quase: “& susto\& pergunto\& até então me movo com um
ímpeto absoluto\até então o sonho fabrica estranhas concepções de quase
mundo\até então, até então o poema não produziu nenhum fruto\até então quase –
bem distante” (procedimento que se repete em Geo\Grafismos e Animalidades,
os poemas seguintes).
Essas possibilidades que o corpo
oferece ao poema (e vice-versa) são materializadas na fatura, isto é, há uma
concepção de atentado à linguagem que possibilite também ao poema (e não só ao
poeta) ‘falar’? Existe por certo nesses primeiros poemas uma rítmica própria da
oralização, do discurso, mas ela em geral é da ordem do devaneio, por isso
mesmo um tanto rebarbativa ou desorientada enquanto crítica de linguagem e\ou
construção de modos perceptivos alternativos. O próprio Ornellas constata a discussão,
seja na crítica aos “mui corretos beletrismos bilaquistas” ou nessa instigante
(justamente por se dar numa forma que, digamos, é exatamente a que o poeta põe
em questão) conclusão do poema Constatação,
todo ele discursivo e contra o discurso, simultaneamente: “em terra de
mudos\mais vivo é quem se cola às coisas como crosta\palavra de carne, sangue e
pelos – pedra lascada\justo ao nervo”. A opção pelo nervo é negada, portanto,
por sua própria enunciação ‘desnervada’. Fico pensando naquela lição do Rodrigo
Naves em A forma difícil, que leva
em conta uma espécie de timidez formal persistente nas artes visuais
brasileiras. Um tanto desse problema ronda certamente a poesia local. A questão
talvez seja de perspectiva, afinal é como o problema da nossa própria
configuração histórica e ideológica: assim, na mesma medida em que o nosso
capitalismo não é o típico das canônicas revoluções burguesas europeias, também
a nossa arte teria o seu ‘desigual e combinado’ enquanto lugar no mundo. E esse
‘desigual e combinado’ seria justamente o que o tal descompasso entre crítica
da modernidade e forma de criticar a modernidade revelaria. Um desarranjo entre
motivo (moderno) e modo (não-moderno). O que não significa, em nenhum sentido
(e estão aí o Candido e o Roberto Schwarz para nos mostrar isso, como nas
análises do Cortiço e do Memórias Póstumas de Brás Cubas, por
exemplo), diminuição da própria obra, mesmo na comparação com o cânone europeu.
(...) Voltamos a um livro de
poemas a partir de um atordoamento, pois quando a leitura parece se esgotar é
tempo de parar e reiniciar o fracasso. O corpo é um intruso interessante no
paradigma do trabalho. Ocorre que o próprio paradigma trabalho também se
esgotou (ou, ao menos, passou a precisar de se justificar todo o tempo e a
conviver com o paradigma dos jogos de linguagem). Os trabalhos do corpo podem
bem ser um centauro, como se o corpo pudesse vencer a cidade, como se o corpo
exercesse cidadania, ainda que nas frestas do discurso oficial e canônico,
representativo a partir ainda da perspectiva renascentista, discurso portanto
onde o corpo não tem voz, uma vez que o corpo dispensa mediações, por
consequência dispensando a representação. Um suporte corporal (menos no sentido
de frame e mais no de lugar material de um trabalho) ou um corpo em sua
configuração de ‘o animal que logo sou’? Um animal que trabalha o poema? Corpos
físicos para Newton ou para a maçã?
Derivas é o primeiro grande poema do livro. O poema, ao firmar um “ando
atrás” como lugar de uma contravenção de linguagem na cidade de “tanto terço
traça caliça que desce”, ao mesmo tempo em que inverte a proposição instituída
de poesia como ponta de lança extremada da linguagem (a poesia é um corpo
estranho na rua, necessariamente a seguir, pelo farejo, e não pela antena
poundiana, o mundo), também afirma a força de uma fraqueza, de um discurso, o
poético, que é simultaneamente incômodo, pois diferença, e bode expiatório,
pois contravenção. Ocupa um lugar barateado, distante da elevação pretendida no
passado (e mesmo no postulado vanguardista do novo). Na mesma medida, em Derivas, Ornellas logra equacionar o
corpo como objeto do dito ao corpo como sintaxe: a sucessão dos versos nos
conduz a um ‘jeito de corpo’, que é não só o da abolição de uma voz em nome da ‘algavaria’,
mas a própria sugestão rítmica de um poema de caminhada (no modelo talvez inaugurado
por Rimbaud nos poemas em prosa).
É exatamente o oposto do que se
lê em Serpentário, cuja reiteração “a
serpente dos meus dedos” faz o poema retornar à voz unificada, sem
problematização ou instabilidade. Para ficar com a perspectiva do erotismo
(presente sim em Derivas), aqui
mostra-se muito, pornografiza-se o poema em enunciados de acessibilidade não
problemática, indiciada: “a incerta hora”, “lancinantes dores frias”, “no sem
fundo dos espelhos” etc., desfibrilam a boa sugestão de uma serpente dos dedos,
sugestão de alquimia e encantamento não configurada nas imagens das estrofes. Não
é uma questão de forma, não é um problema da reiteração. Prova disso é que em Vida, poema com essa mesma estrutura ‘em
feitio de oração’, as relações entre poesia e vida de novo se compactuam num
mesmo corpo toado, “mítica cobra a si mesmo engolindo”, fusão que me parece ser
justamente a procurada pelo poeta neste Trabalhos
do corpo e outros poemas físicos. O desafio para uma proposta dessas é
justamente o de se conseguir ser syntaxier (e necessariamente um syntaxier
peculiar) num mundo de contradição acirrada e de arranjos sociais heterodoxos,
como na constatação da (numa inconfundível dicção beat) “roupa suja do lodo”.
Há um ‘dentro da noite veloz’
neste livro do Ornellas. O poema que vai atrás, não se sujeita ao esmagamento,
bate de frente com a cidade, quebra a cara no concreto, vive a linguagem como
vociferação delicada no mundo. A enunciação recusa a elocubração, o que pode
ser bom, mas que pode também redundar em mero agenciamento dos lugares-comuns
(poesia contra o mundo, poeta como sacrificado, poesia como ‘diferença’ no mundo
etc.). Nem sempre se evita isso, numa pressa talvez do dizer veloz, agrilhoado
de todos os lados o lugar do deleite.
Na procura da fisicalidade dos
corpos, amor e cidade são agenciados. O corpo contra a cidade, um exílio
(in)voluntário. Os poemas ficam mais leves, aerados, o amor é quase um diálogo
de corpos em sobreposição constante como naquele jogo de mãos em que a cada vez
um dos participantes tira a mão de baixo e a coloca sobre as outras e assim
sucessiva e infinitamente. Se é esse o procedimento lógico da luta de corpos,
outro problema é do que essa luta amiga enuncia, e aqui voltamos a certa
fragilidade em torno ao comum e ao vago, plurais excessivos em divagação,
adjetivação: “adolescentes inventam alfabetos\coreografam saltos no paraíso de
seus corpos\experimentam a sensação de respirar\uma linguagem sem script”.
Mesmo que a mira fosse a da canção (um ar de blues se insinua), ainda assim se
faria imprescindível a precisão dos enunciados de modo a (simultaneamente)
buscar certo deslocamento de modos de percepção configurados por linguagem.
Na sequência, cinco grandes
poemas, de Borderline a Desmontagem: difícil escolher o melhor.
O enunciado excessivamente romantizado da série anterior aqui vem substituído
por um agregado mais grumoso entre corpos, mundo e a própria operação poética. Nesse
sentido, talvez seja em Desmontagem,
cuja precisão vocabular e rigor no uso do enjambement nos conduz a uma
experiência intensa e objetiva da relação entre palavra e carne, recorrendo-se
inclusive à materialização do prazer estético através da metalinguagem
evocativa dos poetas cegos, “de glauco, borges, homero”, talvez seja aí,
portanto, que melhor se configure a exigência dupla dos tais corpos físicos: a
perspectiva de Newton, exterior ao corpo, e a perspectiva da maçã, digamos
inconsciente de sua própria condição corpórea.
Uma questão que se pode ler no
livro de Sandro Ornellas diz respeito também à maior parte da poesia
contemporânea: é o problema do inacabamento. O poema moderno, já desde os
alemães Schlegel e Novalis, vem sob a égide do fragmento (deixo de fora aqui a
questão do poema enquanto pensamento) e a poesia, para lidar com essa
insuficiência, usando-a como força estética, precisa necessariamente de não
tentar corrigir a constituição inacabada com fechos de ouro, versos de efeito
ou mesmo a conclusão lógica. Ornellas, na maior parte das vezes, consegue isso,
aceitando bem a potência do limitado. Mas como trabalha com a corporificação
dos poemas, há situações em que o recuo é evidente, e seria essa exatamente a
manifestação daquela forma tímida, a tentativa de se ‘fechar’ o corpo que é o
poema. A questão implica na reavaliação mesmo do lugar do poeta na sociedade, o
chão do poema talvez forçando a um polimento ou amaciamento da forma em nome da
precariedade da própria poesia numa sociedade de formas (também elas)
excludentes.
Não que essa violência entre
corpos e cidade, entre corpo e tempo etc. não seja o tempo todo evidenciada: “ao
mar aberto onde afundo – calhau –\arestas encharcadas de grosso sal” ou “apenas
esse esgotamento, esse cansaço\essa redundância de álcool e éter na varanda”. O poeta sente no poema esse próprio
achatamento das possibilidades formais. Uma poesia do corpo, da caminhada, do
embate erótico etc. é a resposta possível a tal reificação. A discussão que
fica é até que ponto a própria poesia não responde com o discurso inimigo, o
oficial, o da comunicação amenizada. Pois se o diálogo (corpo e cidade, poema e
mundo etc.) quase nunca é possível, caberia justamente ao poema explicitar que
a ausência muitas vezes da distinção entre forma e fundo não implica que forma
e fundo não sigam existindo e contornando, cerceando, orientando nossas vidas e
nossos poemas: “vivemos\ em tempo\ vil – e ao vivo” ou “e o sonho é
pré-programado com segurança. o sonho não é mais deslocamento”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário