Resumo
Este
artigo analisa a poesia de estreia de Vinicius de Moraes, posteriormente
expurgada pelo próprio poeta. Os poemas religiosos de O caminho para a distância,
no entanto, sugerem importantes relações com a poesia popularizada de Vinicius,
como a dos sonetos e a das canções. Sendo assim, procura-se analisar aqui as
relações entre forma literária (a poesia religiosa dos anos 1930) e o processo
social, particularmente no tocante à autognose do poeta e à representação de
seu lugar no mundo. Para tanto, atentou-se em especial para os poemas
metalinguísticos do livro.
Palavras-chave: Vinicius de Moraes, poesia católica, metalinguagem.
Abstract
This paper analyzes the debut poetry of
Vinicius de Moraes, later expunged by the poet himself. The religious poems of O caminho para a distância, however,
suggest important relations with the popularized poetry by Vinicius, such as
sonnets and songs. Therefore, we attempt to analyze the relationship between
literary form (the religious poetry of the 1930s) and the social process,
particularly with regard to the poet autognose and the representation of his place
in the world. To this end, we focused in particular at the metalinguistic poems
of the book.
Key words:
Vinicius de Moraes, Catholic poetry, metalanguage.
O título do livro de estreia de
Vinicius de Moraes, O caminho para a distância ,
de 1933, suscita imediatamente que o associemos à poesia evasiva e apegada à
transcendência, uma poesia religiosa com funcionamento aparentemente
“artístico” em que a busca do distante é tanto a da raridade do poético quanto
do isolamento diante do mundo fraturado e, portanto, isolamento dado como
ocasionado por um contexto inapto para a integração com o poeta. Até que ponto,
porém, a indicação do título configura o posicionamento estético do poeta, ou
seja, de que caminho para qual distância se trata em termos de poesia? Além
disso, que relação mantém a obra de estreia com a estruturação de uma postura
particular de Vinicius de Moraes diante das relações entre linguagem e
realidade? E de que modo a postura particular de Vinicius o insere naquela
tradição da ruptura que vem marcando o fazer literário a partir do Romantismo?
Culturalmente, o encaminhamento
poético inicial de Vinicius pretendeu enquadrar-se num movimento
estético-político de base tradicionalista, o catolicismo institucionalizado
surgido nos anos 1920. É também, por outro lado, uma estreia contestadora,
típica dos movimentos de juventude do século XX, cujo sintoma mais explícito
foi a sucessão de vanguardas sobre vanguardas, na primeira metade do século, e
de modas sobre modas na segunda. Porém, para efeitos de sua institucionalização
no campo literário, Vinicius adotou uma visão bastante restritiva quanto ao livro
inicial, renegando-o e o expurgando de coletâneas várias. A poesia que vai do
livro de estreia até o poema “Ariana,
a mulher” (1936), foi caracterizada por ele, na “Advertência” aposta aos poemas da Antologia Poética (1979), como poesia “transcendental, frequentemente mística,
resultante de sua fase cristã”. O livro de estreia é expurgado da
síntese que o próprio Vinicius faz de sua obra supostamente esclarecida – de
resto procedimento adotado por outros poetas, como Cecília Meireles e Murilo
Mendes e até, em parte, Drummond – dentro da consideração de exercício poético
ainda não literário e não autoral. A negação madura da poesia religiosa é fruto
de visão retrospectiva quanto ao que nomeia como os preconceitos de sua classe,
dados como causadores de angústias inúteis. De qualquer modo, o livro inicial é
uma indicação de procedimentos e temáticas que estarão presentes, ao menos como
fantasmas (como no tratamento sublime do amor), na poesia posterior, e mesmo na
fase musical do poeta. Tal investigação foi feita com sucesso, entre outros,
por Eucanaã Ferraz (2006, p. 15) em sua apresentação a Vinicius de Moraes:
Seria possível, no
entanto, adentrar sua obra por outros caminhos, nos quais as questões ligadas
aos temas essenciais e às opções formais estivessem presentes, sem que a
atenção principal recaísse na divisão de fases. Poder-se-ia, nesse sentido,
observar que, em seus primeiros livros, (...) Vinicius empregou o verso livre,
conquistado e consolidado pelos modernistas, de modo antimodernista: retórico,
empostado, à maneira de Claudel ou Augusto F. Schmidt; e, adiante, quando
adotou uma posição francamente moderna, passou a fazer uso constante de
expedientes bastante tradicionais, como metrificação e forma fixa. Além disso,
nesse segundo momento, permanecem algumas constantes temáticas, mas tudo surge
renovado, tratado com grande liberdade.
Não se quer fazer tal panorâmica
aqui, já tão bem resolvida no volume citado. Restringimo-nos a questões como a
autoconsciência e a inserção do poeta no ambiente literário e aos sentidos que
a escrita do sagrado desempenham na linguagem de Vinicius, unicamente
analisando o primeiro livro. Gostaria, porém de aproveitar a observação de
Ferraz quanto à disjunção que Vinicius operou em seu percurso literário entre a
linguagem empregada e a nebulosa existencial que aceita a modernidade ou que a
renega. Assim, o primeiro momento de sua produção seria o da linguagem
modernista com funcionamento antimoderno. Ou de forma revolucionária para uma
arte contrarrevolucionária, tradicionalista. É, porém, uma visão que merece
análise mais detida, pois o pensamento católico emerge, assim como o pensamento
“revolucionário” da esquerda, como contestação e proposição diante da crise do
liberalismo e da democracia no Brasil, e o mesmo se dá no contexto ocidental.
Ora, a poesia de Vinicius, ao operar tal disjunção, configura de forma não
convencional sua abordagem da relação entre poeta e linguagem e entre poeta e
realidade. Não se julga aqui o acerto ou o erro de tal postura. A compreensão
do sentido da disjunção pode, no entanto, ajudar-nos no entendimento do sentido
de parte da poesia inicial do autor.
Desse modo, em que medida a
autoconsciência de sua condição de poeta pode ser lida em seu livro de estreia?
Vinicius quase não faz metalinguagem no primeiro livro, o que se modificará já
em Forma e Exegese (1935). Apenas dois poemas trazem a
marca explícita em seus títulos quanto à temática do “poeta”. Nos poemas “O poeta” e “O poeta na madrugada”, do livro de estreia, Vinicius dá algumas
indicações de posicionamento poético. As obras posteriores do poeta,
notadamente o livro Poemas, Sonetos e Baladas (1946),
trarão maiores considerações de metalinguagem. Porém, no primeiro livro o poeta
já delineia um rumo particular, caminho que irá sofrendo alterações com o
decorrer dos anos, mas que se manterá como base estruturante dos
encaminhamentos futuros. Assim, em “O
poeta”, a autognose é a do artista como sofredor exemplar:
O poeta é o destinado ao sofrimento
Do sofrimento que lhe clareia a visão de beleza
E
a sua alma é uma parcela do infinito distante
O infinito que ninguém sonda e ninguém compreende. (MORAES, 2008, p.33)
Aparentemente, uma visão do poeta
como aquele que expia os males do mundo através da obtenção transcendental da
beleza: tal a “função” social da poesia. Porém, percebe-se na sequência que o
drama maior do poeta não é bem a função redentora, embora ela exista em outros
poemas, mas sim a consagração de sua subjetividade a seu próprio e particular
fluir. A dor é dele, a angústia é dele, ele é que precisa de consolo, de lugar
social, dilacerado entre o desejo de emancipação e a continuidade de seu
sacrifício, onde a poesia é reverenciada como consolo sagrado. A ênfase de
Vinicius parece se direcionar para o caráter extravagante da opção do
“ser-poeta”. Tanto que reitera tal extravagância reescrevendo a mensagem
principal nos últimos versos. Primeiro:
Ele é o eterno errante dos caminhos
Que vai, pisando a terra e olhando o céu
Preso pelos extremos inatingíveis
Clareando como um raio de sol a paisagem da vida. (MORAES, 2008, p.33)
E nos versos finais, a
reiteração, repetindo, no primeiro deles, o verso com que abre o poema:
A vida do poeta tem um ritmo diferente
Ela o conduz errante pelos caminhos, pisando a
terra e olhando o céu
Preso, eternamente preso pelos extremos
inatingíveis. (MORAES,
2008, p.34)
A angústia é, pois, tanto uma
inevitabilidade quanto uma condenação à oscilação entre a transcendência e a
materialidade. A materialidade chã (“pisando
a terra”) da poesia inicial de Vinicius é expressa na utilização livre
da versificação modernista, recusando-se ao tradicionalismo métrico e ao
vocabulário empolado da poesia anterior aos anos vinte e trinta. Mas não pode
adotar também o ideário coloquial e cotidiano do modernismo da Semana de 22,
pois outra força o divide (“olhando o
céu”): a atitude contemplativa de defesa evasiva do poeta num período em
que a consciência de nosso subdesenvolvimento principia enquanto formulação
política (e não restritivamente estética como na década de vinte). O poema
mostra a autoconsciência fraturada e instável do poeta. O lugar do poeta é o de
tal instabilidade, um “entre” ainda mal resolvido. A errância, portanto, é mais
expressão de estaticidade do que de movimento, uma vez que o poeta está “eternamente”
preso. A errância é constante aqui e em outros poemas, como no soneto “Judeu errante”. Os próprios títulos
de alguns poemas dão conta daquele vácuo expectante de onde fala o poeta: Suspensão, Vazio, Inatingível,
Ânsia, Vigília, Quietação,
Desde Sempre...É um lugar entre
o templo e o tempo.
Não se discute aqui o fato
inegável do pequeno potencial estético dos poemas iniciais de Vinicius, embora
ocasionalmente haja neles um frescor juvenil, uma luz amenizada por brisas
românticas que permitem adivinhar parte do poeta futuro. Entretanto, seria
ingenuidade supor que um livro de estreia, por maior desarticulação estética
que possua, conforme indicação do próprio autor ao organizar sua antologia,
seja relegado ao interesse meramente histórico, como aquilo que “ainda não era”
a poesia de Vinicius de Moraes. E o sentido histórico de uma obra não é só o
pitoresco-biográfico, uma vez que mesmo à escrita da ingenuidade se requer um
lugar no campo dos sentidos para o poético. A relação do sujeito lírico com a
linguagem, tão melhor resolvida em momentos posteriores da obra do autor,
potencializada esteticamente por uma abertura horizontal à mulher e ao outro (o
amigo, o operário, o cotidiano, o popular) numa arte do encontro fraterno, tem
na obra inicial, no entanto, um eixo de organização vertical que será a marca
característica da operação poética de Vinicius. Sim, pois o que há na poesia
inicial em termos metafísicos, do ser enquanto “sendo” (e que são também os
termos de seu posicionamento diante da poesia nacional tal como estabelecida),
é a constatação angustiada do poeta de sua própria condição de exceção (“Tem um ritmo diferente”) diante dos
dois mundos: conforme se verifica no poema “O poeta”, o escritor fica em equilíbrio tenso (“Preso, eternamente preso”) entre o chão
–– pois é pecador, logo ordinário, e o céu – pois é poeta, logo extraordinário.
Também no poema “O único caminho”
os dois momentos estão presentes, o da exceção santa e o do pecador ordinário.
É grande a ascendência do
Romantismo sobre Vinícius. A poesia romântica brasileira também falava no
vazio, sentindo o isolamento diante de uma realidade arcaica, e fazendo do
isolamento, por contrapasso, mas também por influência cultural da
subjetividade evasiva do capitalismo central presente nos escritores europeus,
a condição ideal da elocução poética, encaminhada à oratória. Assim, o
isolamento, tanto como condição contextual local, quanto como ideal importado
de escrita poética, prefigura o lugar social do poeta como gênio. O poeta,
estando em contato com o sagrado, pretende ser ele o sagrado, daí definir sua
exceção diante do mundo. Especificamente no poema acima, porém, tal isolamento
não é vivido como sofrimento ou sacrifício. Há certo júbilo e satisfação dados
pela vidência, pela constatação do domínio sobre o poder mágico e transcendente
da poesia. Como assinalado, o poeta tem seus poderes sobrenaturais, que o
permitem pisar no ordinário.
Apesar do rebaixamento para o
cotidiano durante sua poesia mais madura, assistiu-se também em tal fase a uma
elevação em termos de seleção de formas no repertório da poesia ocidental (como
a insistência no soneto, por exemplo). Tal fato é demonstração de que, a
entrada em cena do outro (a mulher, o social), atua sobre a poesia de Vinicius
de duas maneiras. Em primeiro lugar, tal horizontalização inverte os polos
estético e ideológico. Elevação no primeiro polo e rebaixamento no outro. Ora,
a leitura do próprio Vinicius (e em geral corroborada pela crítica) tende à
constatação de que é por tal horizontalização (a aceitação do outro) que sua
poesia ganha em valor estético, tendo aí seus melhores momentos. Que são seus
melhores momentos, não há dúvida; mas a causa não é só a aceitação do outro. E
aqui se chega à segunda hipótese que quero propor: a horizontalização só inflama
o potencial estético de Vinicius na medida em que o ajuda a estabilizar/nomear
um lugar de elocução para uma linguagem que continuou verticalizada,
essencialmente lírica. Assim, o poeta, apesar de magnetizado inicialmente tanto
pelo céu quanto pelo chão, constata, porém, sua imobilidade e isolamento
justamente por este “estar entre”. A poesia inicial, ao contrário da fase
madura, não apresenta uma dinâmica horizontal (no livro inicial, o lugar de
elocução é o vácuo expectante, logo um não lugar) a estabilizar o eixo
vertical, o que a enfraquece na fatura estética.
Pode-se dizer, a partir de tais
suposições, que a poesia inicial de Vinicius é importante por ter introduzido
um eixo – a relação vertical disjuntiva entre forma e fundo – que só se torna
significativo (e que faz significativa sua presença na poesia brasileira) com a
dinamização através de uma crescente horizontalidade que foi sendo imposta pelo
poeta à escrita no decorrer dos outros livros. Esta horizontalidade, por sua
vez, era potencializada pela concepção verticalizada da poesia inicial de
Vinicius, supondo uma não coincidência inevitável (seu princípio articulador)
entre o “que” e o “como” de sua linguagem: modernidade formal (mas não
“futurista” ou “desvairista”) e tradicionalismo existencial, na fase inicial, e
prosaísmo em estruturas fixas na fase madura. O cruzamento de eixos (do
afastamento vertical com a aproximação horizontal), portanto, situa o poeta num
lugar de grande originalidade na poesia brasileira. Em Vinicius, a manipulação
técnica dos repertórios e formas tem uma perspectiva própria: a continuidade da
relação de não coincidência vertical entre linguagem e realidade, embora com
troca de sinais, interage com a descontinuidade dada na introdução simultânea
de um abrir-se ao mundo e de um abrir o mundo (a horizontalidade). Apenas a
abertura ao outro não garante boa poesia (aí estão milhões de poemas
“engajados” para a confirmação de tal asserção) e, portanto, é essencial à
perspectiva original de Vinicius em nosso sistema literário aquela concepção
vertical de seu lugar “entre” a linguagem e a realidade. Desse modo, pode-se
dizer que é estruturalmente significativa a poesia inicial de Vinicius de
Moraes. Sim, pois a não homologia presente no eixo vertical dá conta mesmo da
relação instável e ambígua do poeta no mundo da mercadoria.
É significativo, portanto, que
seja religiosa/espiritualizada a poesia de O caminho para a distância, produto
de um contexto cultural católico, aristocratizado e que aflora no bojo dos
radicalismos ideológicos de contestação simbólica ao mundo liberal e à situação
de isolamento cultural do intelectual numa sociedade de grandes distâncias
sociais. E é também bastante significativo o distanciamento de não coincidência
entre o repertório de formas e os motivos poéticos. O que seria, porém, só um
sintoma, ou um modo de abordagem da crise moderna entre linguagem e realidade,
é também o que vai permitir a emergência não só da originalidade poética de
Vinicius como sua resposta enquanto intelectual àquela crise, o que se dará
justamente pelas aberturas laterais, horizontais, que sua poesia madura irá
efetivar. No período histórico em que o poeta escreve seus melhores textos, a
poesia mais fraca é justamente aquela que não trata da crise moderna (entre
outras coisas, expressa no não lugar da poesia no mundo organizado) pela sua
internalização, mas que a expõe apenas como dado exterior. O grosso da produção
da geração de 45 supôs a identidade entre linguagem e realidade, ambas sob
tratamento elevado, raro. Embora o tratamento elevado parecesse àqueles poetas
contestação à sociedade massificada, era uma resposta poética de aceitação da
situação excêntrica do poeta muito diferente do posicionamento de Vinicius, de
disjunção entre linguagem e motivos combinando-se à horizontalidade dinâmica na
abertura ao outro. Sua resposta ao mundo é, portanto, da ordem da negatividade
intrínseca.
Em que medida a poesia inicial de
Vinicius reage à modernidade poética num contexto de incultura?
Aproveitando-lhe a lição simbolista, mas sob um ponto de vista extremamente
romântico, o do poeta-gênio, do poeta vidente à Rimbaud, onde o caráter de
exceção o protege do entorno arcaico, mas o dignifica como modelo de
sofrimento/iluminação exemplar. Assim, a atitude religiosa na poesia do início
de Vinicius, aparentemente contemplativa, assim como a figura do fracassado
nos romances de trinta, a figura do assinalado na tradição católica e a
do evasivo rumo a Pasárgada – aquele que dispõe de condições objetivas
para tanto, que habita o mundo da “cultura” – implicam todas num reconhecimento
da angústia para o enfrentamento (ou a fuga, que pode estar expressa na
necessidade de um discurso de enfrentamento) do presente tempestuoso e
arcaico-inculto.
A angústia diante do presente,
porém, tem implicações para a vontade de mudança, embora não a garanta. Os
intelectuais querem dar o salto, mas não há muita consciência de para onde. Os
anos trinta foram um momento de acentuação da tentativa de ajuste entre os
valores da modernidade e modernização estrutural. Mas ainda estamos no nível
voluntarista, dentro de um sentimento que combina impotência e vontade de ação.
Tal instabilidade está diretamente relacionada ao contexto da intelectualidade
do período, absorvida pelo Estado, mas com papel subalterno, impotente. O catolicismo,
por exemplo, surge como um outro modo de organizar o salto, pautando as
relações entre modernidade e modernização, que no ponto de vista católico não
podem ultrapassar certos limites. Há uma pretensão católica de grande otimismo
quanto a recuperar o mundo. Lúcia Miguel-Pereira (1992, p. 134) fez
considerações a esse respeito no calor da hora da publicação de Tempo
e Eternidade, o que nos permite captar a questão ideológica
envolvida naquele contexto. No mesmo ano em que saiu o livro, ela fez uma
entusiasmada defesa de que a essência das coisas estaria, finalmente, vencendo
seu aspecto. É com grande otimismo que vê Jorge de Lima como aquele que “(...) traz a Cristo o apelo dos oprimidos, dos
sofredores, dos negros se lamentando nos navios negreiros.”
Os radicalismos (à esquerda e à
direita) dos anos trinta, consequência do fechamento político e da descrença no
liberalismo impuseram à literatura intimista um bloqueio cultural que
obscureceu sua contribuição no momento literário. Parte da crítica contemporânea
tem atuado no sentido de ressaltar a criação de autores como Cornélio Penna ou
Lúcio Cardoso. Como podem ser situados diante de tais fenômenos o poeta
Vinicius de Moraes e sua poesia aparentemente de exclusividade religiosa? Se a
considerarmos poesia intimista, descolada dos temas nacionais, estaremos
aceitando a hipótese de que existem discursos neutros em literatura. Sabe-se,
porém, da dimensão de intervenção social que o pensamento católico veio
reconhecendo como próprio da relação com o sagrado já a partir dos anos vinte.
É importante esclarecer que nem todo o pensamento católico se encaminhou à
direita no espectro político (como Octávio de Faria), haja vista a poesia
socializante de filiação religiosa em um Murilo Mendes. Embora não tenha havido
alinhamento explícito entre comunismo e catolicismo, como em períodos
posteriores, houve, em facções do pensamento religioso, orientação social.
Contudo, não é o caso do Vinicius inicial, onde o poeta entra mais como vidente
suavizado e modelo ideal de atuação, pelas vias do sofrimento e da iluminação,
do que como guia paternalista.
Assim, a perspectiva católica,
embora fortemente egocentrada no Vinicius estreante, traz no seu projeto de
intervenção cultural uma proposta de enfrentamento do presente, porém através
do ponto de vista da elite, da organização pelo alto. Daí o caráter permanente
de “exceção” presente na ideologia dos poemas de O caminho para a distância.
Seu engajamento é às avessas, na medida em que nega, ao ressaltar sua
excepcionalidade e sua genialidade egocêntrica, a organização autônoma e
espontânea das bases populares. O discurso de exceção é, por outras vias, a
formulação poética tanto do discurso autoritário quanto da perspectiva de um
Estado de exceção, de fechamento político. A elite se impõe a tarefa de dar
forma à matéria nacional disforme. Dentro da variação de opções, o pensamento
católico emerge, em Vinicius, como a busca de uma essência universal. No
entanto, tal busca está diretamente vinculada à realidade nacional, marcada
pela incultura e pelo início de consciência de nosso subdesenvolvimento, o que
lhe impõe ser o porta-voz de um discurso de exceção. O discurso do “entre” pode
ser lido como uma simulação do desejo de engajamento no terreno e, ao mesmo
tempo, uma (auto) justificativa da impossibilidade de efetivar tal engajamento.
Que relação existe entre os
poemas sobre a autoconsciência poética que aqui estamos analisando e o fato de
Vinicius defender, em seu prefácio para O caminho para a distância, que
seu livro é um todo contínuo, sem interrupções? Além disso, que relações
podemos traçar entre os dois poemas sobre poesia inseridos num livro que se
pretende em contato com o sagrado? Nos dois poemas metalinguísticos de O
caminho para a distância, o segredo de Vinicius está em vinculá-los
ao fluxo do corpo sagrado que pretende para seu livro, pois o propõe quase que
como um grande e único poema: “São
cerca de quarenta poemas intimamente ligados num só movimento, isolando-se no
ritmo e prolongando-se na continuidade, sem que nada possa contar em separado.
Há um todo comum indivisível.”(MORAES, 2008, p. 7), o que lhe dá ares de
uma experiência mística revelada textualmente. É preciso, pois, que a
metalinguagem (os poemas sobre o poetar) seja também expressa em poemas da
vida, logo da sagração da vida, da aparente não literatura. Ora, integrar a
arte na vida é a utopia de toda a vanguarda do século XX:
O POETA
A vida do poeta tem um ritmo diferente
É um contínuo de dor angustiante.
O poeta é o destinado do sofrimento
Do sofrimento que lhe clareia a visão de beleza
E a sua alma é uma parcela do infinito distante
O infinito que ninguém sonda e ninguém compreende.
Ele é o eterno errante dos caminhos
Que vai, pisando a terra e olhando o céu
Preso pelos extremos intangíveis
Clareando como um raio de sol a paisagem da vida.
O poeta tem o coração claro das aves
E a sensibilidade das crianças.
O poeta chora.
Chora de manso, com lágrimas doces, com lágrimas
tristes
Olhando o espaço imenso da sua alma.
O poeta sorri.
Sorri à vida e à beleza e à amizade
Sorri com sua mocidade a todas as mulheres que
passam.
O poeta é bom.
Ele ama as mulheres castas e as mulheres impuras
Sua alma as compreende na luz e na lama
Ele é cheio de amor para as coisas da vida
E é cheio de respeito para as coisas da morte.
O poeta não teme a morte.
Seu espírito penetra a sua visão silenciosa
E a sua alma de artista possui-a cheia de um novo
mistério.
A sua poesia é a razão da sua existência
Ela o faz puro e grande e nobre
E o consola da dor e o consola da angústia.
A vida do poeta tem um ritmo diferente
Ela o conduz errante pelos caminhos, pisando a
terra e olhando o céu
Preso, eternamente preso pelos extremos
intangíveis.
Em “O poeta”, Vinicius de Moraes faz uma leitura íntima da
metalinguagem. O distanciamento que o tratamento respeitoso dispensado ao
“poeta” traz, aparece bastante suavizado por toques de cuidado e graça
romântica, toques de leveza, de quem melodicamente “chora de manso” e que “sorri
com sua mocidade” a “todas”
as mulheres. Aliás, o poema em si é aquela polarização, com um início mais
exasperado e um direcionamento suavemente emotivo na segunda estrofe, de quem
tem “o coração claro das aves”.
Vinicius é tão pudico que abdica do eu e trata do poeta na terceira pessoa.
Parece-me, portanto, que o que há no poema de solene é clichê, é lugar-comum do
pensamento religioso e do romantismo choroso de matriz europeia que Vinicius
aplica aos seus textos iniciais. As brechas de leveza, com suave luz tropical
(e que seriam na sua alma de poeta as razões para seu perfeito encaixe
posterior junto à bossa nova), estão presentes em fenômenos como a simplicidade
sintática e a proposta de um léxico universal. São brechas, porém, que não são
força suficiente no poema para salvá-lo da insistência discursiva muito forte no
início, em que o poeta é o da dor e da angústia, poeta que volta a discursar no
final. O melhor Vinicius posterior foi o que soube depurar-se da eloquência, o
que não significa que todo o Vinicius da fase madura tenha sido leve, como nos
momentos de tratamento via sublime de temas da leveza e mesmo nos maneirismos
dos sonetos camonianos. Mas não nos desviemos. Vejamos o outro poema:
O POETA NA MADRUGADA
Quando o poeta chegou à cidade
A aurora vinha clareando o céu distante
E as primeiras mulheres passavam levando cântaros
cheios.
Os olhos do poeta tinham as claridades da aurora
E ele cantou a beleza da nova madrugada.
As mulheres beijaram a fronte do poeta
E rogaram o seu amor.
O poeta sorriu.
Mostrou-lhes no céu claro o pássaro que voava
E disse que a visão da beleza era da poesia
O poeta tem a alegria que vive na luz
E tem a mocidade que nasce da luz.
As mulheres seguiram o poeta
Oferecendo a tristeza do seu amor e a alegria da
sua carne
O poeta amou a carne das mulheres
Mas não envelheceu no amor que elas davam.
O poeta quando ama
É como a flor que murcha sem seiva
Porque o amor do poeta
É a seiva do mundo
E se o poeta amasse
Ele não viveria eternamente jovem, brilhando na
luz.
Quando a nova madrugada raiou no céu distante
O poeta já tinha partido
E seguindo o poeta as mulheres de peitos fartos e
de cântaros cheios
Falavam de ardentes promessas de amor.
A base romântica é nítida em
Vinicius. Tudo são estados de espírito. Aqui o poeta já não é o sofredor,
atingiu a ascese, mesmo amando a “carne
das mulheres”. Todas aquelas brechas de luz que tentavam amenizar o
expressionismo do assinalado sofredor no primeiro poema, agora invadem a
paisagem inteira. A luz é sempre suavizada, as claridades da aurora, a beleza
da madrugada. A luz, quando aparece explicitada, não é a luz que cega, não
angustia, é uma luz que embala, um escudo de pureza do poeta. É o culto do
frescor, dos cântaros, do iluminado, do céu claro, da mocidade, do “eternamente
jovem, brilhando na luz”. Afirmação
geracional, necessidade do choque sensual dos “peitos fartos”, culto da juventude: fenômenos massificados de
fins do século vinte que Vinicius antecipa, em sua formação aristocrata, de
“exceção”.
Repetem-se os personagens: o
poeta, mocidade sofredora no primeiro poema e exaltação do frescor viril no
segundo, e as mulheres “castas”
e “impuras” no primeiro texto e
que oferecem “a tristeza do seu amor e
a alegria da sua carne” no segundo, o que expõe agora uma aceitação
sensual, e não o julgamento moral que diferencia, como no primeiro poema. Digamos
que o primeiro poema é onde o poeta se justifica, onde precisa “proclamar” sua
santidade, justificando-a pelo sofrimento, seu caráter assinalado diante dos
males do mundo da modernidade. O otimismo é, por outro lado, em sua irritante
certeza do brilho infindável, a marca do segundo texto, onde a liberdade
encantada do poeta coaduna melhor com a própria liberdade rítmica do poema. Não
só o poeta, ainda tratado na terceira pessoa, como personagem, agora não
precisa mais julgar as mulheres, como também não se encontra dilacerado em sua
estaticidade angustiada. Aqui, ele vem à cidade e depois se vai. Seu brilho é
evidente, as mulheres o seguem e o respeitam. Ele é um assinalado, mas já
transcendeu o sofrimento. Em sua ilusão de classe, pensa já estar salvando o
mundo.
Referências
Bibliográficas
FERRAZ,
Eucanaã. Vinicius de Moraes. São
Paulo: Publifolha, 2006. (Folha Explica) p.15.
MIGUEL-PEREIRA,
Lúcia. Jorge de Lima e Murilo Mendes: harmonias e diferenças. In: A leitora e seus personagens. Rio de Janeiro:
Graphia Editorial, 1992, p.134.
MORAES,
Vinicius de. O caminho para a distância.
São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
MORAES,
Vinicius. Antologia Poética. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1979.
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