Evasão é uma palavra usual na leitura dos poetas
simbolistas. Ela dá conta de um déficit de realidade, de um lado, e de um
ataque sensualizado ao formalismo estanque dos parnasianos, de outro. Foi com a
noção de evasão que Tasso da Silveira definiu os poemas de Ilusão, livro
de Emiliano Perneta, de 1911. Teria sido mais tímido nosso Simbolismo, mera
atividade de cópia dos autores cultuados, como Baudelaire? É o que pensam, em
vias completamente diferentes, críticos como Augusto de Campos ou Flávio Kothe.
O primeiro adverte para uma “comedida prática simbolista brasileira”, marcada
por falhas como exagero retórico, exagero musical, predominância ornamental,
sentimentalismos, adjetivação desmedida; já Kothe defende que o “poema de Cruz
e Sousa intitulado ‘Violões que choram’ é uma imitação da ‘Chanson d’automne’
de Verlaine, sendo o original comumente ignorado ou escamoteado no ensino
brasileiro...”. Teria havido, segundo esses dois críticos, uma atenuação do
potencial inventivo do Simbolismo europeu em terras brasileiras. Foi nesse
plano que o próprio Augusto de Campos defendeu a excepcionalidade de dois
autores daquele movimento, Pedro Kilkerry e Ernani Rosas.
Por outro lado, há correntes da crítica que defendem o
Simbolismo brasileiro como pleno de originalidade. Roger Bastide, por exemplo,
chega a compor uma tríade simbolista mundial: Mallarmé, Stefan George e o
brasileiro Cruz e Sousa. Paulo Leminski fez uma biografia incrível sobre Cruz e
Sousa. E o Simbolismo sempre contou com uma crítica elogiosa feita a partir do
próprio movimento, como no caso de Nestor Vítor e, a seguir, de Andrade Muricy,
autor do monumental Panorama do movimento simbolista brasileiro. De
resto, influências simbolistas (ou penumbristas) estão em vários autores
modernistas, como Bandeira, Cecília Meireles, Ronald de Carvalho e Ribeiro
Couto.
A grande questão do Simbolismo no Brasil parece ser,
portanto, a de se decidir em que medida o movimento foi realmente orgânico em
relação à realidade local e à invenção na literatura. Nesse sentido, a mera
opção de tomá-lo como cópia tão somente da matriz francesa não nos parece a
mais viável, haja vista a própria reverberação simbolista no Modernismo,
caracterizado justamente por ser um movimento que abriu os olhos da literatura
para a realidade brasileira. Parece ser assim que Marco Aurélio de Souza estuda
e refaz o Ilusão de Emiliano Perneta, com olhos nas possibilidades da
evasão dolorida que se faz ao do rés-do-chão.
O trabalho que Marco Aurélio de Souza nos apresenta sob o
título de Ilusão é, em primeiro lugar, uma atividade de pesquisa. Na sua
tese de doutorado, “O Paraná no campeonato nacional das letras: uma leitura do
jornal Nicolau à luz dos problemas da história literária regional” (2020), destaca-se
a ideia de que a partir do jornal capitaneado por Wilson Bueno, entre 1987 e
1996, consagrou-se uma observação mais sistêmica da tradição literária
paranaense: “uma comunidade imaginada de obras, estilos e autores ligados ao
Paraná”. Este livro de poesia mantém com aquela percepção da tese uma homologia
intencional. Trata-se de uma angústia da influência enfrentada com galhardia
(pela homenagem, no plano da continuidade) e galhofa (pela resistência, no
plano da descontinuidade). Este livro de poemas manifesta-se por procedimentos
ou dispositivos de ordem necessariamente restritiva, isto é, o que está em jogo
é uma operação, mais do que um resultado, e podemos chamar tal operação por
diversos nomes, nenhum deles suficiente: tradução, leitura, paródia, pirataria,
reescrita, palimpsesto etc.
Além do plano da pesquisa, o livro também se caracteriza por
uma intervenção num tema fundamental da literatura, a questão da assinatura.
Quem assina os poemas? É possível que Marco Aurélio assine poemas a partir de outros
poemas? Onde fica a alma do poeta, a inspiração, onde estão as musas? Ele não
estaria destituindo a poesia enquanto ferramenta fundamental da originalidade
da linguagem? Há muito da ironia e da concepção transcriativa de Haroldo de
Campos neste novo Ilusão, às voltas com um tema fundamental do fim do
século vinte que foi a morte do autor, enunciada principalmente pelos
franceses, como Michel Foucault. Como escreveu Abel Barros Baptista, falando do
romance S. Bernardo, de Graciliano Ramos, a assinatura do autor consagra
uma operação dúplice: ela é tanto uma autoridade, no sentido de autorização
sobre uma obra, quanto é uma despedida daquela obra, a última presença do autor
sobre a obra que, a partir daí, passa a derivar democraticamente nas operações
de leitura, como enfatiza Jacques Rancière. De fato, o tema da morte do autor é
exatamente esse: morre o autor para nascer a autoridade da interpretação. A
morte do autor é um tema simultâneo às teorias da estética da recepção, da
leitura etc.
O desejo pelo outro da linguagem, esse desejo de reescrita
do texto, foi enunciado num poeta caro ao fim do século XIX, Arthur Rimbaud, na
formulação de que “eu é um outro”. Rimbaud escreveu: “Eu é um outro”. Não se
trata de “eu sou um outro”. O que parece estar em jogo ali é qual o lugar do
sujeito no processo criativo. Entra em cena a ideia de “clarividência”, o
visionarismo. Rimbaud, naturalmente, fazia parte de um processo histórico, na
Europa do fim do século XIX, em que se passou a criticar o racionalismo
cartesiano, fundado na autonomia racional do sujeito. O sujeito deixa de ser
mimético (como era na frase famosa “penso logo existo”) e passava a ser
textual, inclusive pela subversão gramatical que punha o Eu, na expressão “Eu é
um outro”, não como sujeito, mas como objeto a ser qualificado pela alteridade.
O “eu” de Rimbaud, diferentemente do de Descartes, tem uma presença virtual,
logo simbólica. É quase como se ele escondesse o “eu” na categoria de “outro”.
Isso diz muito sobre a poesia que se fez no século vinte e diz muito sobre este
Ilusão. O “eu” do poema passa a ser o “eu lírico”, mas isso não é tudo.
Ele deixa de ser mimético e se torna textual, impedindo qualquer ingenuidade no
seu uso. Não há mais “eu” impune na poesia. O novo “eu” será sempre
performático ou gestual. Eu é um outro... o quê? “eu é um outro eu”, um outro
“eu” que não é sujeito, mas texto. Assim, num dos poetas fundadores da
modernidade, o “eu” passa a ser permanentemente um problema, ou melhor, uma
problematização. É claro que o “eu” do poeta continua existindo e participando
ativamente do poema, mas Rimbaud teria introduzido uma desconstrução
fundamental quanto à ideia do gênio romântico e do poema como expressão de uma
verdade individual. Isso tudo passa a ser posto em questão. A partir daí,
diversas desconstruções da autoria passam a atuar, o que, por consequência,
traz significativas implicações estéticas e éticas. A introdução da alteridade
foi um fenômeno sem volta.
Muitos poetas já investiram na poesia criada explicitamente
sobre a intertextualidade, ressaltando-a. O gesto é tanto uma afronta ao texto
original e à condição de autoria, quanto também uma modéstia do autor “final”,
que se debruça sobre outros textos e não sobre seu próprio umbigo ou
identidade. Ilusão conduz a poesia a uma pergunta direta sobre o fazer
poético e sua relação usual com a originalidade. Um dos pontos fundantes desse
procedimento é relatado pela teórica Marjorie Perloff, no livro O gênio não
original. Perloff conta como a recepção do texto central de T. S. Eliot, A
terra desolada, em 1922, foi marcada por uma polêmica. Ainda que elogiado,
o livro foi bastante questionado quanto ao seu caráter “citacional”, o que, na
visão dos críticos, reduziria em muito aquilo que se considerava como essência
da poesia, isto é, a originalidade da voz pessoal do poeta. O desafio de Marco
Aurélio foi o de fazer com que cada poema tivesse um ponto de partida em um
poema de Emiliano Perneta, mas que não dependesse dele, podendo funcionar
sozinho como peça estética autônoma.
No Brasil, muitos poetas se aventuraram na reescrita
poética, rediscutindo, parafraseando ou parodiando outros textos (e não apenas
poemas). Por exemplo, Oswald de Andrade, no livro Pau-Brasil, recortando
os cronistas coloniais. Ou Cecília Meireles, no Romanceiro da Inconfidência
(às voltas com os "fantasmas" de Ouro Preto e dos poetas árcades).
Podem ser citados também Murilo Mendes, Jorge de Lima (como no verso
emblemático: "Dante, falo por ti, por mim, por quem?") e, entre os
contemporâneos, há Mafra Carbonieri, Glauco Matoso etc. Cito, entre tantos
exemplos, Adriano Scandolara, poeta de Curitiba que dessacraliza a poesia de
Olavo Bilac (em Parsona); Mario Domingues, outro curitibano, que
reescreveu alguns de seus próprios poemas (em Musga).
Deixei para o final algumas considerações sobre o livro de
Marco Aurélio. Primeiro quero citar a experiência de leitura de Assombro zen
(2020), a coletânea anterior do poeta. Ali, há vozes ao rés-do-chão
expressando-se pelo haicai. O mundo do calão e principalmente, a polifonia
típica das narrativas entra em cena na destituição/homenagem ao modo poético
que se consagrou como expressão do tempo em relação à natureza. É possível
afirmar que o procedimento antecipa o assalto/afago ao Ilusão de
Emiliano Perneta, poeta que foi severamente criticado por outro ícone da
literatura paranaense, o contista Dalton Trevisan. Minha impressão, lendo o Ilusão
de Marco Aurélio de Souza, é a de que se trata de um encontro entre Perneta e
Trevisan (com o fantasma de Marcos Prado sempre presente, seja pelo cultivo abusado
das formas fixas, seja pelo ângulo rebaixado da enunciação). Uma psicografia
marginal, um reposicionamento da evasão na perspectiva da nomeação concreta do
que antes era símbolo (em Perneta). Há muito dos Nelsinhos, sua tara e seus
risinhos de escárnio, dos contos de Dalton Trevisan, nos poemas deste Ilusão,
bem como o marginal, a prostituta, o michê, o drogado, o burguês e
principalmente o poeta maldito: personagens que vestem máscaras, desconstruindo
o “eu” hipertrófico de Perneta. A estratégia de trazer os poemas para a
narrativa, por fim, abala o culto do símbolo do livro “matricial”, num jogo de
espelhamentos e alteridade. Uma evasão concreta, ao rés-do-chão.
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