Tereza Virginia de Almeida, no prefácio “O acontecimento e a poesia”, relaciona de duas maneiras o livro de Telma Scherer a uma ocorrência de 2010, quando Scherer apresentava, numa feira literária em Porto Alegre, a performance “Não alimente o escritor” e por isso foi presa arbitrariamente. A primeira é fundante, dali parte o poema. A segunda é determinante, o poema expande a violência original para outras violências, particularmente a de gênero, evidenciada na mudança do título, agora “Não alimente a escritora”. A amalgamar as duas relações, a concepção da poesia como performance, o que enfatizaria ritmos e sonoridades. Ao que podemos completar: uma poesia do corpo que experimenta. É importante destacar também as materialidades. No “acontecimento” de 2010, o corpo da escritora numa casinha de cachorro, uma advertência aos passantes e às normalizações ordinárias. No livro de 2021, o “pertencimento” a uma coleção da Hecatombe, intitulada “Quem dera o sangue fosse só o da menstruação”, outra advertência do corpo, agora a quem lê o poético sob normalizações ordinárias.
Minha abordagem a Não alimente a escritora começa por
outras duas leituras. A primeira é bell hooks, de quem li pela primeira vez
alguma coisa nas últimas semanas. Eu li bell hooks para a disciplina de Prática
de Pesquisa na universidade, querendo trabalhar com as/os estudantes uma
escrita menos empolada. Algo que, de algum modo, eu tentei no meu último livro,
mas sem a mesma desenvoltura da Telma Scherer. O que me levou à lembrança de
bell hooks foi a opção de Scherer pela poesia que não espanta o leitor com uma
erudição do coronelismo intelectual brasileiro. Palavra falada, a poesia do
livro tem a possibilidade de ser significada por públicos mais amplos. E é uma
palavra encarnada, da experiência e da política, do corpo e do testemunho. Até acho
uma pretensão macha a palavra rara e a construção enigmática, o que eu tanto já
fiz. Não é o caso aqui. A segunda leitura por onde começo é o Poema sujo,
do Ferreira Gullar, rememorado por mim no primeiro contato com o livro-declamação
de Scherer. O fluxo do fôlego, os trânsitos rápidos, as “estações”, a
oralização, a versificação como virgulação de uma narrativa que liga muitos
pontos e que parte de um diálogo da linguagem com o real. O que vejo diferente,
porém, é o escopo. Gullar fala de uma perspectiva de fora, ligando história do
país, do universo, às suas andanças biográficas de exilado. Scherer parte de
dentro, do osso do acontecimento, e dali vai expandindo. O livro começa “No dia
em que me prenderam/eu não tinha um puto”. A materialidade da microeconomia
(que palavra horrível para pensar a talvez-grana cotidiana!) contra o
materialismo das estruturas que orienta o Poema sujo.
Estranho caminho começar por bell hooks e por Ferreira Gullar.
Porventura despreparado para a poesia de Não alimente a escritora e contornando
por analogias um primeiro impacto. De qualquer forma, a voz pública do livro-poema
de Scherer vem numa forma textual pública: o discurso (com algo de fabulação). Eu
formularei melhor a contradição entre o testemunho e a fábula. É que eles se
iluminam reciprocamente e adotam a hibridez, mas sob o nome de permeabilidade e
não de limite. Não se trata nem da fusão em um terceiro termo, entre o
testemunho e a fábula, nem se trata de brecha ou muro entre eles. Melhor dizer
que há um espaço compartilhado, atravessado pelas linhas de força testemunhal e
fabular. O que sustenta tal compartilhamento é a perscrutação do ser pela
linguagem falada (no mundo, na história, na feira do livro em Porto Alegre, no
corpo detido, vitimado e constrangido, quando não expropriado). Scherer opta pela
estrutura de um poema-corpo que cai, e cai e cai. Vamos caindo em degraus (versos)
curtos de uma escadaria infinita (o poema). A fala vai sendo (intensamente) segmentada.
Como os tantos parênteses aqui. Isso ocorre mesmo com a minha experiência de
leitura. Não alimente a escritora parece ser um livro para ser lido
(dito) numa única experiência. Até fiquei em dúvida se não teria sido mais
coerente ter dito (lido) o livro de uma só vez.
O corpo de uma mulher, qualquer corpo de mulher, e em
qualquer lugar, lar ou praça, a quem pertence? A expropriação primeira, o corpo
da mulher, a mais duradoura expropriação da experiência humana. De outro lado,
a abertura da performance de Scherer, descrita no poema: condição mais humana a
de entender a domesticação do artista pela coleira da não-profissão, da
não-renda. A improdutividade crítica contra a submissão da instituição casinha
de cão. Na rua, atrapalhando os passantes! E mesmo que em casa fosse, lá
estaria a mão macha dos policiais e suas motos. Mas não só. Um dos trechos mais
fortes do poema-fleuve é quando, entre as páginas 51 e 55, são nomeados todos
aqueles “sujeitos/envolvidos/na detenção:”. O livro nos reconduz à performance
e, talvez seja isso, à condição de possíveis linchadores. O livro atualiza a
performance, é aqui nesse apanhado de palavras que nos guia à apreensão (seja
por nossa pequenez, seja por nossa conivência com as estruturas de silenciamento)
com a experiência de topar com uma poeta que fala o que a retórica grafa como
parrésia: franqueza corajosa.
Percebo, com o que conheço da Telma Scherer pelo nosso
contato de Facebook, como os textos dela ganham impacto com a listagem. O
procedimento consiste em enunciar em sequência inusitada elementos convergentes
por uma mesma situação. Após listar as inúmeras vertentes de exploração do episódio,
a poeta relata vários momentos das consequências. Há um atordoamento
enumeratório que testemunha o trauma, pontuado pela necessidade de
sobrevivência, isto é, de “estudar/e ver o mar”.
Passava as horas
rondando
a pia
a
procurar
alguma
louça pra lavar
alguma
coisa pra comprar
que
estivesse faltando:
um
livro do Bandeira,
um
pastel oleoso,
um
canivete,
um
cavalete de madeira,
um collant
preto
de
helanca,
um
prato de porcelana,
um
pouco
de
cola branca, um pijama,
um
óleo
essencial pra lavar
as
minhas feridas
depois
das
suas mordidas,
das
suas errâncias,
dos
seus Eros
e
caminhanças
pelo
Velho Continente.
A condição de expropriada (de seu corpo, destino, vontade),
aqui na expressão da mulher silenciada, interrompida, conduzida, tem, noutro
sentido, a perspectiva possível da analogia com a condição da arte na
sociedade. Da/do artista como suicidada/do da sociedade. É por exercitar em beleza
a parrésia, que a/o artista da fome quase não consegue deixar, pantera/o da
escravidão, sua jaula. Seria até porventura mais indicado (não é o poema que
nos diz, eu é que estou dizendo) estar dentro da jaula, sangue nos olhos, mas em
silêncio sacrificial. No texto de Franz Kafka, o artista da fome é abandonado pelo
público e passa a girar em falso, em nome da arte. No livro-liberdade de Scherer,
a poeta “continua” sendo presa, infinitamente. E Scherer parece saber que nem o
poema a libertará. Não será esse o objetivo de quem diz a verdade em arte. A
verdade é dita para libertar quem ouve, quem vê, quem contempla. Contemplação,
como diriam os platônicos, é teoria. Teoria, como diria bell hooks, é entendimento
e planejamento da prática. Há essas personagens no poema-performance Não
alimente a escritora. Aparecem aqui e ali, a única família que existe para
artistas, e mais ainda para artistas mulheres: as das pajelanças, as da
sororidade, a “iluminadora”. Um mundo para dizer sim, um mundo de “plumas de
perfume”, mirras, arrudas, manjericão.
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