segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Não alimente a escritora, de Telma Scherer (Hecatombe, 2021)

Tereza Virginia de Almeida, no prefácio “O acontecimento e a poesia”, relaciona de duas maneiras o livro de Telma Scherer a uma ocorrência de 2010, quando Scherer apresentava, numa feira literária em Porto Alegre, a performance “Não alimente o escritor” e por isso foi presa arbitrariamente. A primeira é fundante, dali parte o poema. A segunda é determinante, o poema expande a violência original para outras violências, particularmente a de gênero, evidenciada na mudança do título, agora “Não alimente a escritora”. A amalgamar as duas relações, a concepção da poesia como performance, o que enfatizaria ritmos e sonoridades. Ao que podemos completar: uma poesia do corpo que experimenta. É importante destacar também as materialidades. No “acontecimento” de 2010, o corpo da escritora numa casinha de cachorro, uma advertência aos passantes e às normalizações ordinárias. No livro de 2021, o “pertencimento” a uma coleção da Hecatombe, intitulada “Quem dera o sangue fosse só o da menstruação”, outra advertência do corpo, agora a quem lê o poético sob normalizações ordinárias.

Minha abordagem a Não alimente a escritora começa por outras duas leituras. A primeira é bell hooks, de quem li pela primeira vez alguma coisa nas últimas semanas. Eu li bell hooks para a disciplina de Prática de Pesquisa na universidade, querendo trabalhar com as/os estudantes uma escrita menos empolada. Algo que, de algum modo, eu tentei no meu último livro, mas sem a mesma desenvoltura da Telma Scherer. O que me levou à lembrança de bell hooks foi a opção de Scherer pela poesia que não espanta o leitor com uma erudição do coronelismo intelectual brasileiro. Palavra falada, a poesia do livro tem a possibilidade de ser significada por públicos mais amplos. E é uma palavra encarnada, da experiência e da política, do corpo e do testemunho. Até acho uma pretensão macha a palavra rara e a construção enigmática, o que eu tanto já fiz. Não é o caso aqui. A segunda leitura por onde começo é o Poema sujo, do Ferreira Gullar, rememorado por mim no primeiro contato com o livro-declamação de Scherer. O fluxo do fôlego, os trânsitos rápidos, as “estações”, a oralização, a versificação como virgulação de uma narrativa que liga muitos pontos e que parte de um diálogo da linguagem com o real. O que vejo diferente, porém, é o escopo. Gullar fala de uma perspectiva de fora, ligando história do país, do universo, às suas andanças biográficas de exilado. Scherer parte de dentro, do osso do acontecimento, e dali vai expandindo. O livro começa “No dia em que me prenderam/eu não tinha um puto”. A materialidade da microeconomia (que palavra horrível para pensar a talvez-grana cotidiana!) contra o materialismo das estruturas que orienta o Poema sujo.

Estranho caminho começar por bell hooks e por Ferreira Gullar. Porventura despreparado para a poesia de Não alimente a escritora e contornando por analogias um primeiro impacto. De qualquer forma, a voz pública do livro-poema de Scherer vem numa forma textual pública: o discurso (com algo de fabulação). Eu formularei melhor a contradição entre o testemunho e a fábula. É que eles se iluminam reciprocamente e adotam a hibridez, mas sob o nome de permeabilidade e não de limite. Não se trata nem da fusão em um terceiro termo, entre o testemunho e a fábula, nem se trata de brecha ou muro entre eles. Melhor dizer que há um espaço compartilhado, atravessado pelas linhas de força testemunhal e fabular. O que sustenta tal compartilhamento é a perscrutação do ser pela linguagem falada (no mundo, na história, na feira do livro em Porto Alegre, no corpo detido, vitimado e constrangido, quando não expropriado). Scherer opta pela estrutura de um poema-corpo que cai, e cai e cai. Vamos caindo em degraus (versos) curtos de uma escadaria infinita (o poema). A fala vai sendo (intensamente) segmentada. Como os tantos parênteses aqui. Isso ocorre mesmo com a minha experiência de leitura. Não alimente a escritora parece ser um livro para ser lido (dito) numa única experiência. Até fiquei em dúvida se não teria sido mais coerente ter dito (lido) o livro de uma só vez.

O corpo de uma mulher, qualquer corpo de mulher, e em qualquer lugar, lar ou praça, a quem pertence? A expropriação primeira, o corpo da mulher, a mais duradoura expropriação da experiência humana. De outro lado, a abertura da performance de Scherer, descrita no poema: condição mais humana a de entender a domesticação do artista pela coleira da não-profissão, da não-renda. A improdutividade crítica contra a submissão da instituição casinha de cão. Na rua, atrapalhando os passantes! E mesmo que em casa fosse, lá estaria a mão macha dos policiais e suas motos. Mas não só. Um dos trechos mais fortes do poema-fleuve é quando, entre as páginas 51 e 55, são nomeados todos aqueles “sujeitos/envolvidos/na detenção:”. O livro nos reconduz à performance e, talvez seja isso, à condição de possíveis linchadores. O livro atualiza a performance, é aqui nesse apanhado de palavras que nos guia à apreensão (seja por nossa pequenez, seja por nossa conivência com as estruturas de silenciamento) com a experiência de topar com uma poeta que fala o que a retórica grafa como parrésia: franqueza corajosa.

Percebo, com o que conheço da Telma Scherer pelo nosso contato de Facebook, como os textos dela ganham impacto com a listagem. O procedimento consiste em enunciar em sequência inusitada elementos convergentes por uma mesma situação. Após listar as inúmeras vertentes de exploração do episódio, a poeta relata vários momentos das consequências. Há um atordoamento enumeratório que testemunha o trauma, pontuado pela necessidade de sobrevivência, isto é, de “estudar/e ver o mar”.

 

                                Passava as horas

                               rondando a pia

                               a procurar

                               alguma louça pra lavar

                               alguma coisa pra comprar

                               que estivesse faltando:

                               um livro do Bandeira,

                               um pastel oleoso,

                               um canivete,

                               um cavalete de madeira,

                                um collant

                               preto

                               de helanca,

                               um prato de porcelana,

                               um pouco

                               de cola branca, um pijama,

                               um

                               óleo essencial pra lavar

                               as minhas feridas

                               depois

                               das suas mordidas,

                               das suas errâncias,

                               dos seus Eros

                               e caminhanças

                               pelo Velho Continente.

 

A condição de expropriada (de seu corpo, destino, vontade), aqui na expressão da mulher silenciada, interrompida, conduzida, tem, noutro sentido, a perspectiva possível da analogia com a condição da arte na sociedade. Da/do artista como suicidada/do da sociedade. É por exercitar em beleza a parrésia, que a/o artista da fome quase não consegue deixar, pantera/o da escravidão, sua jaula. Seria até porventura mais indicado (não é o poema que nos diz, eu é que estou dizendo) estar dentro da jaula, sangue nos olhos, mas em silêncio sacrificial. No texto de Franz Kafka, o artista da fome é abandonado pelo público e passa a girar em falso, em nome da arte. No livro-liberdade de Scherer, a poeta “continua” sendo presa, infinitamente. E Scherer parece saber que nem o poema a libertará. Não será esse o objetivo de quem diz a verdade em arte. A verdade é dita para libertar quem ouve, quem vê, quem contempla. Contemplação, como diriam os platônicos, é teoria. Teoria, como diria bell hooks, é entendimento e planejamento da prática. Há essas personagens no poema-performance Não alimente a escritora. Aparecem aqui e ali, a única família que existe para artistas, e mais ainda para artistas mulheres: as das pajelanças, as da sororidade, a “iluminadora”. Um mundo para dizer sim, um mundo de “plumas de perfume”, mirras, arrudas, manjericão.  

 

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